Thursday, September 23, 2004

Arquitetura

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Os dias 29, 30 e 31 de janeiro, na Itália, são chamados i giorni della merla (os dias da merla). A merla é a fêmea do melro (merlo, em italiano), um pássaro preto comum por esses ares.

Conta a lenda, que quando os melros ainda eram brancos, sofriam muito com o rigor do inverno neste período. Os três últimos dias de janeiro costumam ser os mais frios do ano. Assim, nestes dias a fêmea do melro passou a fazer o seu ninho nas chaminés, quando estas foram inventadas. Com a fuligem os melros e os seus filhotes ficaram pretos.

Uma chaminé pode ser um detalhe na arquitetura de uma casa. Mas, como todo os outros detalhes em arquitetura, tem uma função específica. As chaminés nos centros das cidades na nossa região diminuíram com o tempo. Nas capitais de províncias e na maioria das cidades italianas é proibido a queima de madeira para o aquecimento das casas. Usa-se o aquecimento a gaz ou outros combustíveis fornecidos pelo concessionário público local. Lenha, só para as consideradas casas de campo ou em algumas periferias. As atuais chaminés servem somente para dispersar o vapor e os gases do aquecedor de água.

Um amigo italiano lamentou não ter reconhecido a pequena cidade no Paraná, vinte anos depois de ter passado três meses por lá. A cidade chamava-se Londrina. Inútil tentar explicar-lhe que temos muito pouco a preservar. Nem me atrevi a contar-lhe que a Rua Henrique Schaumman, em são Paulo (que ele conheceu num mês de trabalho, ano passado), era uma rua que ligava o nada a lugar nenhum, quando eu morava em Sampa. E que a vi crescer e desenvolver-se comercialmente com a habitual pressa paulista. E que depois de muito conhaque, chope e fritas, a vi entrar em decadência, por pouco não me arrastando junto. Até virar uma pequena mas importante ligação entre bairros. Como tantas outras ruas que fizeram parte de algum período do meu humilde mas divertido exercício de sobrevivência naquela cidade.

A realidade é que as cidades italianas não mudam, ou mudam pouco. Os centros históricos são protegidos pelas leis de conservação do patrimônio histórico e não podem ser modificados. As casas são reformadas por dentro, mas a fachada e até as telhas devem ser preservadas.

A cidade é usada como referência da história pessoal de cada um. As casas onde habitaram os avós, os pais e onde habitarão os filhos, são as mesmas e, provavelmente, sobreviverão à história de outras gerações que, espera-se, virão. Às vezes, já com trezentos, quinhentos anos de construção.

Observando bem, é possível reconhecer as diversas invasões e colonizações das cidades italianas. O estilo de cada prédio revela a época de construção e as eventuais misturas de estilo informam sobre os restauros efetuados, assim como as datas aproximadas e as utilidades de tais modificações.

Piacenza, a cidade onde moramos, era um acampamento romano, fundado em 31 de Maio de 218 a.C. e usado como a primeira base militar para a expansão do Império Romano rumo ao norte, contra os longobardos. Construída às margens do Rio Po, era protegida por altos muros, com alguns trechos ainda hoje intactos. Suas ruas foram detalhadamente planejadas, de modo a facilitar a movimentação de tropas em momentos de necessidade. Pena que tenham sido projetadas para a passagem de bigas e carroças. As ruas do centro são muito estreitas.

Foi, também, a cidade de onde partiu a primeira cruzada e o local onde se enterravam os corpos dos escravos romanos. Toda a sua história está impressa na sua arquitetura e toda a sua arquitetura reflete o resíduo cultural desses mais de dois mil anos.

A geografia de uma casa reflete, também, o modus vivendi dos seus habitantes. E aqui surge uma curiosidade: somente a partir de 2000, uma lei obriga aos proprietários de casas acima de determinada metragem à construção de um segundo banheiro. Encontram-se pouquíssimas casas de um, dois ou três quartos com mais de um banheiro. Muitos tentaram convencer-me que o custo de construção de um banheiro é muito alto, ou que o aquecimento de muitos cômodos torna-se complicado no inverno, além de custoso. Em vão, até porque, as casas antigas também estão nesta situação. Realmente não consigo entender como um povo que passa tanto tempo em torno da mesa, possa dar tão pouca importância ao banheiro.

Assim como o merlo que mudou de cor, (pássaro que no Brasil chama-se graúna ou pássaro-preto) vamos nos adaptando e aprendendo a não usar o banheiro da casa dos outros. Salvo emergências.


Ciao.

6 comments:

Anonymous said...

Allan,
Mais uma vez venho divertir-me com as suas observações de bom cronista. Chamar à atenção para a arquitetura cotidiana em um país de enorme arquitetura pública é coisa de quem possui muita sensibilidade. Quer dizer que tem "passu preto" também na Itália? Muros, bigas e Cruzadas italianas se misturam com a cosmopolita São Paulo: ótimo!
Lenine
PS - acabei de fazer um comentário sobre o post anterior, responsável pela mudança de uma opinião pessoal.

Claudio Costa said...

Allan, como leitor fiel (e, na minha casa, minha filha Ana [http://mineirasuai.blogspot.com] e minha mulher me seguiram o caminho) posso "elogiar" sem "beijar a mão". Mais uma vez, divirto-me e aprendo. Acho, mesmo, que faço uma viagem à Itália, percorro essas ruelas estreitas, chego a sentir o cheiro das comidas, toda vez que leio sua Carta. Obrigado.

Mineiras, Uai! said...

Allan, compartilho a mesma opinião de Papai, acima.
Lembro-me de que na casa de minha bisavó tinha um Pássaro Preto, e que ela xingava a gente se o chamássemos assim: tinha que falar "Melro", a qualquer custo, pois era muito feio o outro nome. Cresci chamando tudo quanto é "passu preto" de Melro, até que um dia perguntei pro meu pai se aquele que eu estava vendo na estrada era um desses... Meu pai, riu, pois tratava-se de um urubu!!!
Abçs
Ana Letícia
(mineirasuai.blogspot.com)

Anonymous said...

Allan,
Entendemos e admiramos a sua crítica quanto ao beija-mão do texto anterior. Felizmente somos simples anônimos e não precisamos de subterfúgios para elogiá-lo.
O texto "Arquitetura" está impecável!
Como sempre.

Frank & Gaia

Anonymous said...

Allan, eu ja conhecia a historia o merlo, mas quis saber quem era o merlo no Brasil e vc me contou, obrigado.
Esta historia das construçoes aqui è interessante.
Aqui na minha regiao, nao aprovam projeto de construçao...alegam que a Italia è pequena, que isso que aquilo...e a terra que voce compra fica ali parada...Sabia que nem murar voce pode? verdade, pra murar voce precisa fazer a tal 2doamnada" e isso passa uns 2 anos pra vir a resposta.
Primeiro mundo, bah!

Tutt'ok said...

Allan,
Meu namorado trabalha no setor imobiliário e me conta cada absurdo... um comune de uma cidade do norte, por exemplo, exigiu a construção de uma garagem subterrânea para centenas de carros em um complexo que eles estão construindo. Pois bem, aí um outro setor do comune não aprovou a guia rebaixada para entrar nas garagens! O lema é complicar sempre...
Um abraço,
Simone