Thursday, December 24, 2020

Diário de um mundo novo - parte 31

 Diário de um mundo novo – dia 211

Gosto muito pouco de panetone, gosto muito de stollen e gosto de pandoro. Sou maluco por pandoro com recheio de limoncelo. Sou capaz de comer um inteiro sozinho. Aliás, eu como um inteiro sozinho.

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A matemática é uma barca furada. Como é possível engordar dois quilos depois de comer um pandoro de setecentos e cinquenta gramas?

*

Neste período pandêmico, segunda-feira é o meu dia pessoal, mundial e internacional da boa-ação. É quando eu passo nos clientes para oferecer o ombro e alugar a orelha para ouvir a choradeira deles. Se tá ruim pra eles, imagina pra mim.

 

Diário de um mundo novo – dia 212

Hoje não é nenhuma data histórica, é somente mais um desses dias que começaram duzentos e setenta e nove dias atrás. Duzentos e doze desde que a Itália saiu da quarentena (que chamo de “diário de um mundo novo”, na esperança de que a raça humana aprenda uma nova – ainda que difícil – lição), mais os sessenta e sete em que ficamos trancados em casa, o “diário do fim do mundo”. Tinha prometido que continuaria esse diário enquanto a situação no Brasil não fosse resolvida, acreditando que do lado de cá tínhamos nos livrado da pandemia.

 

Claro que a esperança de uma vitória rápida contra o vírus adoeceu e morreu. Contaminada pela insistência em não respeitar as medidas de prevenção pela maioria da população.

 

Nesse meio tempo vimos um avanço magnífico da Ciência que mudará para sempre o modo como enfrentaremos novas dificuldades. Do mesmo jeito, assistimos a catástrofe causada pela doença e as diversas maneiras de enfrentá-la, algumas certas e outras desastrosamente equivocadas. Nos assustamos pela África não sofrer o que imaginávamos. Felizmente. Somente a China tomou as decisões acertadas. Duras, eficazes e acertadas. Em poucas palavras, não saberemos tão cedo muita coisa desse vírus. Acompanhamos, também, o crescimento do negacionismo com os consequentes efeitos, mais imediatos e catastróficos que nunca.

 

Portanto, cara amiga, caro amigo, a minha pergunta é: quando devo dar um fim a esse diário? Quando o Brasil sair dessa situação? Quando a Itália sair da terceira onda que parece estar entrando sem nem mesmo ter passado a segunda? Quando começar a vacinação ou quando for concluída? Marcar uma data qualquer ou significativa? Qual? A minha impressão é que antes de 2023 dificilmente sairemos todos dessa e não acredito ter fôlego pra tanto. Nem você.

 

Diário de um mundo novo – dia 213

— Qual é a capital da Estônia?

— Santiago.

— Não, cara! Santiago é a capital do Chile.

— Cê tá doido? Não tem Chile na Ásia, não.

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2020 promete piorar.

O sangue de San Gennaro, cuidadosamente guardado na Capela de San Gennaro, na Duomo de Nápoles, não se liquefez, como é costume. A falta do milagre é um péssimo presságio. Já anunciou catástrofes como o terremoto da cidade.

Acaba, 2020, ano saúva.

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— Reparou que políticos como Trump, Johnson, e Bolsonaro pegaram o vírus mas se curaram rapidinho?

— Reparei.

— E o que você acha?

— Acho que esse povo não sabe se comportar nem durante uma pandemia.

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Noutro dia comentei que não poderia existir um jogador chamado Umtiti (por sinal, grande jogador). Hoje quem joga é o Kalulu vai jogar. Se juntar mais um, dá para fazer um bit-box legal.

Umtiti, Kalulu

Umtiti, Kalulu, Kalulu

Umtiti, Kalulu

Umtiti, Kaká

Umtiti, Umtiti

Kaká, Kaká, Kaká

Kalulu

 

Diário de um mundo novo – dia 214

O humor oscila em função do clima e dos acontecimentos. Num dia estou todo sorrisos de Poliana, no outro poderia estar melhor. Quer me ver feliz? Me encontra num dia de sol, comendo acarajé e tomando cerveja na beira da praia. Quer me ver de mau humor? Pra quê?

 

Ontem Shivinha do Meu Coração não acordou bem. Tinha beliscado a comida, passeamos logo cedo e ele quis voltar para casa logo. Logo cedo, antes mesmo de beber água ou fazer pipi, um vômito líquido amarelo, típico de, de quê mesmo? “Gastroenterite”, respondeu Pippo, o super veterinário dele, às duas e meia da tarde, quando conseguiu me responder. Tinha acabado de operar um paciente e o celular fica desligado nesses momentos. Viu as fotos, ouviu a descrição dos sintomas, temperatura ok, língua, olhos, gengivas, hálito, abdômen contraído, humor no chão e tudo mais que enviei por mensagem. “Suspende água e comida por vinte e quatro horas, um comprimido desse remédio por dia, durante sete dias, três latas por dia dessa ração úmida a partir de amanhã. Vai me atualizando.” O bichinho só não ficou de mau humor porque estava realmente ruim.

 

Fome e sede. Vocês já viram um endemoniado com fome e sede? Eu vi. O armário do balcão, com porta blindada e fechadura de cofre elaborada pela Scotland Yard, à prova de explosões, também. Foi uma surpresa quando cheguei em casa. Depois de lavar sala e cozinha, dei água e comida. No final apoiou o queixo nas minhas pernas na cadeira do computador e apertou: “quero mais comida, bestão!” Vai devagar, não pode comer muito e cada lata custa três euros.

 

Devo ser a única pessoa no mundo que tem um cachorro que, no final do dia, me chama para fumar. Ele sai no balcão e vai até a cadeira que tem no fundo, volta, para na porta da cozinha, me olha e refaz o percurso. Pego charuto, uma cerveja ou grappa ou vinho ou conhaque ou – vá lá! –, um bom pedaço de grana, o colchão dele, uma coberta (para ele), o laptop e uma caixa de papelão para ele destruir. O companheiro se senta, o cubro, dou-lhe a caixa e acendo o charuto. Ele deita para destruir o brinquedo e fica ali, comigo fazendo companhia. Está até fazendo um calorzinho de sete graus. Está bem, estou bem, estamos bem, meu bem.

 

 

Diário de um mundo novo – dia 215

Eu sempre acho que é possível melhorar uma situação, mas também dá para piorar. Como se não bastasse o ano do vírus, com o governo batendo cabeça todos os dias, mudando de ideia a cada hora e meia e a oposição sambando na crista da crise, os casos de feminicídio e agressão contra a mulher começam a não alarmar mais os jornais. Não vou citar nenhum em particular, mas a coisa aqui anda feia. Muito. Há casos de penas exemplares – principalmente se o réu for imigrante de fora da UE – e casos de absolvições baseadas em patologias que só acometem o sexo masculino. Ou assim parece.

 

Quando uma mulher mata o marido/companheiro/ namorado/ex, eu parto do princípio de que foi por legítima defesa. Cada vez que leio, ouço ou assisto a notícia, mais me convenço desse meu princípio. Normalmente são casos de anos de agressão e a mulher realmente precisou matar para não morrer.

 

Existe na terra de Dante – pasmem! – a condição patológica de “delírio de ciúmes”, que recentemente absolveu um réu. Ele ficará internado por um período entre três e cinco anos, antes de uma nova avaliação psiquiátrica, mas não cumprirá um dia sequer de cadeia. Considerando que passará o tempo isolado e controlado, numa instituição que pode ser definida como manicômio, e que – dada a avançada idade – há grandes possibilidades de não sair vivo de lá, é uma punição disfarçada de tratamento. E uma chance de fugir à justiça.

 

Muitas entidades vêm notando o aumento da violência doméstica durante a pandemia. Infelizmente as denúncias desses crimes diminuíram em 2020, em função da mesma pandemia e não está sendo possível mensurar esse crescimento.

 

Por que infernos alguns homens acreditam ser proprietários de suas parceiras? De onde vem tanta insegurança? Cedo ou tarde será descoberta uma patologia chamada “legítima defesa preventiva feminina”. E aí eu quero ver. Vai, macho!

 

Diário de um mundo novo – dia 216

Desde quando raça de cachorro é moda? Desde sempre. Cada raça foi desenvolvida com alguma finalidade laborativa. Cães de guarda, de pastoreio, de caça, etc. Por esse motivo, cada uma tem características particulares e é preciso conhecer o padrão comportamental de um cão antes de adquirir um. Sou contra o comércio de animais de companhia, mas se alguém decidir comprar um cão, é melhor escolher bem o criador. Existem muitos criadores que exploram as matrizes (mães) até que sobre bem pouco de vida nelas. Prefiro e sugiro sempre adotar, ao invés de comprar. Os abrigos estão cheios de cães ávidos por ter uma família,  que se tornam eternamente gratos e serão os melhores companheiros.

 

O problema é quando uma raça vira moda. Os cães com prognatismo, por exemplo, vêm sofrendo com a seleção de criadores que escolhem esse defeito genético acentuando essa característica, o que faz o animal ter muita dificuldade respiratória. Agora, na Itália, estão moda as raças Jack Russel e Weimaraner. Duas raças bem diferentes, mas que têm em comum as características de serem raças que necessitam de espaço, têm energia para vender, são atentos, entusiasmados e não são fáceis de gerir. O pequeno Jack Russel é o mais difícil entre os terrier, acredite. Em pouco tempo estarão abarrotando os abrigos, como acontece hoje com os pitbulls.

 

A adoção de animais durante a pandemia aumentou muito. Felizmente. Só tenho medo do que acontecerá com os adotados quando a situação passar e chegar o verão, época de abandono de animais.

 

Adote com responsabilidade, um animal de estimação não dura só uns meses.

 

Diário de um mundo novo – dia 217

Esse Natal será o do colesterol. Tomara que eu chegue a 2021.

 

A Bia chegou hoje com acarajés pro almoço. A baiana mora lá pros lados dela e nos fez chorar de emoção. E trouxe um monte de presentes: vinho, muito vinho e mais vinho. Não que aqui em casa falte vinho, mas vai que eles resolvam estender a quarentena... Trouxe queijo, mais queijo e um monte de queijos. Uma fieira de cacciatore, que é um salame que se pode comer fresco ou maturado. Eu prefiro comer fresco ou maturado. Meia cura também vai muito bem, obrigado. Outro salame caseiro, feito lá pelas montanhas da região de Bérgamo. Claro, não poderia faltar a farinha para polenta bergamasca, moída artesanalmente em moinho de pedra. Coisa de caipira, sabe? Panetone premiado? Tem. Vamos ter que guardar os queijos e cacciatori que comprei para outros dias.

 

— Allan, quanto você tá pesando?

— Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Não tenho me pesado.

— Mas a balança fica no banheiro...

— Ah, eu passo sem olhar. Brigamos.

— É por isso que ela tá sempre encolhidinha lá no canto?

— Num sei. Nem olho praquele lado.

 

Meu desejo para 2021 é sobreviver. Não tanto pela Covid, mas pelos efeitos colaterais gastronômicos e as consequentes dificuldades digestivas. A balança que se arranje.

1 comment:

Eliana said...

Aqui eu comprei um panetone muito bom por 3,99. Só o marido comeu porque eu não posso mais com o glúten. 1kg! Comeu feliz da vida.
Gente, eu vi que este ano não teve o milagre de San Genaro. Ainda mais esta! Até mandei uma mensagem pra minha vizinha italiana que é lá da região de Nápole. Ela ainda indignada retrucou com o que mais falta acontecer! Dio mio! Eu respondi que só faltava era o vulcão se manifestar! Eu desconhecia este feito religioso. E justo agora o sangue de San Genaro não se liquifez?
Feminícidio...uma realidade horrorosa. Impensável e que acontece em todos os níveis sociais. É um atraso pra sociedade em geral saber de tais acontecimentos.
Espero que o Shiva tenha se recuperado bem. Deve ter sido difícil ficar sem comida e sem água por um dia! Mas nada que um charuto na varanda não o alegre hahahah