Diário de um mundo novo – dia 1
Segunda-feira, 18 de maio de 2020. Para nós, na Itália, começa um novo
mundo. Ele não é igual a ontem, tampouco é igual aos dias de fevereiro, antes
que o primeiro caso oficial de Covid-19 fosse registrado aqui. É um mundo
diferente que iremos construir juntos, com a esperança de podermos voltar a
tocar as pessoas em breve, apostando na confiança mútua. Sim, todos precisamos
seguir as orientações para evitar uma segunda onda e tornarmos à quarentena.
O que vi pelas ruas hoje foi um gesto de responsabilidade coletiva.
Pessoas procurando manter distância das outras pessoas, máscaras em todas as
faces e poucos passageiros nos ônibus. Talvez uma cidade grande tenha mais
dificuldade na aplicação do protocolo de prevenção, principalmente no
transporte público, mas em Piacenza a obediência foi total.
Um amigo do Brasil me mandou uma matéria sobre a distribuição de
cloroquina nas farmácias italianas. Gente, sério que ainda tem quem fique em
dúvida com esse tipo de mentira? Sério?
Aproveitei o dia para cortar a mão. Nada de grave, só um pequeno corte
numa parte incômoda na palma da mão, entre o indicador e o polegar. O legal é
que quando alguém pergunta, posso inventar uma aventura qualquer.
Informo que esse diário irá resistir até que o Brasil consiga sair da
quarentena que ainda nem entrou. Espero que seja muito em breve. Torço por vocês
e não sei se gosto de escrever diários e terminei um ontem.
Diário de um mundo novo – dia 2
cêis num sabe o ki é sê dono desses bestão. eles num mim dá folga dia
ninhum. primêro eles saía di manhã i mim dexava tomano conta da casa, dispois
eles ficaro um tempão aki cumigu mim enxenu o saco (cêis sabe ki eu num tenho,
né?) i agora eles mim dêxa sozinhu di novo. eu tô té gostanu di tê um pôco di
paiz di novo, mais só ki eu tenhu ki toma conta di tudu. mais é tudu tudu
tudinho mesmo.
magina ki tem us passarinhu ki vem aki pertinhu gritá nin nóis, gritá
pra nossa casa. craro ki sô eu ki tenhu ki mandá eles imbora. eles vai mais
dispois eles volta tudu di novo. i teim us cachrru sarnentu ki fica andano lá
fora na rua pra kerê intrá nas casa dus ôtru. tamém sô eu ki tenhu ki briga
preles si mijá notru lugá, ki aki sô eu ki manda. as vêiz eu tô durminu i u
dylan fica latinu prus sarnento ki passa na rua i eu tenhu ki acordá pra inxotá
eles.
u bestão num passia cumigu u dia intêru, comu ki eu pessu pra ele fazê.
ele é muito burru mesmo. ele só mi passía um pokinhu i eu keru fica lá fora u
dia intêro. dispois eles chega i ela fica cum u celulá té dá uma dormidinha.
intão eu dô uma durmidinha cum ela, ca cabeça im cima das perna dela. isso eu
gostu. u bestão só chega dispois i fica nu poncutadô i aí eu vô lá mordê ele
mais ele mim mordi. i mim leva pra passiá tamém. é disso ki eu gostu, di
passiá, cherá, corrê atraiz di passarinhu i num gostu si ôtru cachorro vem mim
inchê as paciênça.
quanu ki eles sai eles tira um monte di coisa gostosa di mordê i eu fico
só cus meus brinkedinhu, mais eu kiria era brinca di mordê u bestão, mesmu si
ele mim mordi tamém.
peraí ki eu vô mijá la fora, tá?
Diário de um mundo novo – dia 3
Gente, trabalhei como nunca e cheguei em casa ainda pouquinho. Tô podre.
Já fumei um charuto, passei com o abestado do Shiva, e agora tô aqui tomando
cerveja com grana, acarinhando o pilantra do meu cachorro. Me deixa.
u bestão mim pidiu pra iscrivinhá
aki. eu dissi ki não, ki si o seu facecoiso num mim dexá mais iscrevê aki eu
mordu todu mundu. mandei ele iscrevê di papel procêis, mais ele mim falô ki só
vai iscrevê essas bosta ki ele iscrevi lá no coiso dele. mim isplicô ki si
manda cartinha vai ficá sem dinhêro pra comprá papá pra mim. num sei u ki é
dinheiro, mais num kero ficá sem papá. aí ele mim deu papá com muita carni, mim
dexô mordê ele bastante e eu dexei ele usá u poquinho meu coiso.
Diário de um mundo novo – dia 4
Você tem ou já teve um cão? Você sabe oque é um cão? Pois bem, um cão é
um mamífero quadrúpede que late – nem todos – e morde (absolutamente todos).
Mesmo que seu cão nunca tenha mordido outros seres, ele sabe morder. Não o
provoque. E você sabe o que é um molosso? Molosso é um tipo de cão de físico
forte, normalmente usado para pastoreio, combate e guarda. Outra grande
característica desses descendentes do Molossus grego é a quantidade de água
necessária à disposição. No caso do abestalhado aqui de casa, são uns dez
litros por dia. Não se preocupe, ele ingere menos de três litros por dia. O
resto ele espalha pela casa ou, quando há alguém presente, para lavar as pernas
do vivente. Ele adora beber água e apoiar o queixo no colo de qualquer um. De
preferência, eu. Outra coisa, os cães soltam pelo, não importasse longos ou
curtos. É possível que o tutor do cão encontre pelo em qualquer e todo lugar da
casa. Aliás, mais que possível, é certeza.
Cães não deveriam ser comercializados. Nem todos os criadores são sérios
e tem muito parasita vivendo de explorar até o osso o pobre animal. Animais
sendo abusados por bestas quadradas. Não compre, adote. E antes de adotar,
conheça bem as características do cão que você vai levar pra casa e veja se
atende o que você espera dele. Beagles são dóceis, brincalhões e agitados,
precisam de espaço. São ótimos para cavar buracos na sala, seja ela de
cerâmica, madeira, mármore ou aço. O lado bom é que seu fornecedor de pisos irá
presentear você com uma caixa de uísque todos os natais. Outra coisa, beagles
levantam o focinho pra cima e avisam com um latido longo quando encontram
alguma caça. Que pode ser um outro cão, gato, pássaros ou o brinquedinho que
caiu do sofá. De tédio você não vai morrer. Akitas são sociáveis distantes.
Quando você chegar em casa ele vai fazer uma festa danada por uns dez segundos.
Depois vai cuidar da vida dele e pedir paz. São muito educados e higiênicos,
você terá dificuldade em descobrir que parte do quintal ele escolheu como
banheiro. E até sabe latir, mas é provável que você nunca ouça o latido dele. É
do tipo intelectual e não como os doidos dos daschunds que latem pras
andorinhas voando a quinze metros de altura e pulam tentando pegá-las,
arrebentando as costas no chão. Pinscher é desaconselhado para quem tem
vizinhos. Eles gostam de latir. Até dormindo. Se você não gosta ou não pode
sair com o cão diversas vezes por dia, sugiro adotar um bulldog. Ele vai estar
na mesma posição de quando você saiu. Arranje uma almofada para ele que subir
em sofá não é o esporte predileto dele. Pra falar a verdade, ele não gosta de
esporte nenhum, só de dormir. Já os pitbulls têm muita energia e necessitam de
muito espaço. São ideais para quem vive em chácaras de superatletas. Aquele
tipo de atleta que corre, anda de bicicleta, nada, pula de paraquedas, escala
montanhas e é campeão de bung jump. Ele vai te seguir em todas. E depois vai
querer brincar.
Muito importante: um cão não é brinquedo. Nunca dê animais de estimação
de presente. Antes de ter um animal, lembre-se de que você será responsável por
ele até o último dia de vida do bichinho. Os cães vão agir como criança sempre,
não importa a idade.
Visite um abrigo, você vai se assustar com a quantidade de animais
doidos para serem adotados. O pessoal do abrigo vai orientar você sobre as
características do seu futuro amigo. Verifique se você tem condições de atender
às necessidades dele (cuidados médicos, vacinas, comida decente, passear,
espaço, tempo...). O abestalh... Er, o nosso amiguinho foi adotado no abrigo
municipal. É um cão da raça American Pit Bull Terrier (ABPT), mas teria vindo
conosco mesmo que fosse um vira-latas, a melhor do mundo. Doeu muito ver aquele
pobre diabo desesperado dentro do box, com alambrado fechando tudo pelos lados
e por cima, as patas machucadas por viver escalando na tentativa de sair, mal tratado
e se automutilando. A voluntária nos alertou sobre a peculiaridade dele em
destruir casas. O último que o levou e o devolveu depois de uns meses, teve um
prejuízo de dez mil euros. Sempre foi uma empresa de demolição ambulante, não
sobra nada. Mas nada mesmo. Mesmo assim o adotamos. Depois de destruir dois
sofás, um computador, almofadas, objetos de decoração, cadeiras e outros
móveis, uns dez controles remotos, o interfone e a cozinha toda (incluindo a
geladeira de aço e o pinguim de cima dela), hoje ele está mais calmo. É
diversão garantida. Daqui ele não sai de jeito nenhum!
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Temos um vaso de flor que desabrocha uma vez por ano. Nos primeiros
anos, nada. Até que saiu a primeira flor. Acreditamos que a cada ano mais uma
flor aparece. Temos cinco e um botão. Ou seja, se estamos certos, tem seis anos
que a primeira brotou.
u bestão mim pediu pra iscrivinhá
aqui di novo. eu ia pidí um negóço pra ele mas isquiçí. si lembrá, eu peço
aminhã
atençãu: us comentário aí imbáxo num
representa a pinião du dono desse coiso.
assinado, eu, u shiva
Diário de um mundo novo – dia 5
Como é bom cruzar com pessoas que não tive notícias durante a
quarentena. Sabe como é, ambos com medo de ligar, mandar mensagens ou perguntar
e descobrir que o vírus andou aprontando. Sim, encontros casuais, obedecendo a
distância de segurança e de máscaras. Hoje foi um desses dias. Gente que eu não
via há mais tempo do que seria saudável e até um que vi cedo demais. E foi pro
Shiva também. O pilantrão encontrou com vários amigos e amigas. Tá ficando mais
sociável. Eu sabia que a soma da minha paciência com a idade dele iam acabar
fazendo efeito.
A propósito, mais alguém respira com a boca aberta quando sai de
máscara?
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— Ô Allan, como é esse negócio de “café suspenso”?
— Olha, Ademar, não é em todo lugar, não. Em algumas cidades é normal,
mas nem todos os bares aceitam participar. Tem que fazer a notinha na hora do
pagamento e dar a quem tomar no momento do consumo. Pode acontecer de a nota
ter sido impressa de manhã, o cara do bar coloca num lugar separado e só tira
de lá quando serve a pessoa que entrou e perguntou “tem um café suspenso aí?”
Claro que o bar pode ir trocando a cada hora, mas ninguém presta mita atenção
nisso. E aí, se tiver um controle, o bar pode se encrencar por entregar uma
notinha de horas antes do consumo, apesar de estar fazendo o certo.
— E como funciona?
— É assim: você toma um café no bar e, espontaneamente, deixa um outro
pago, para quem não puder pagar.
— Pra um amigo ou pra qualquer um?
— Não, pra qualquer um. Um mendigo, alguém com o dinheiro contado...
— E por que não um pão, então?
— Porque muitas vezes a pessoa tem que escolher entre o pão e o café.
Escolhe o pão pra parar em pé, mas morre de vontade dum café.
— Legal, isso! Italiano adora café, né?
— Ô! Italiano sem café, sem pizza e sem vinho não é italiano.
— Todo italiano toma vinho, Allan?
— Rapaz, pode até existir italiano que não beba vinho, mas grazadeus eu
não conheci nenhum.
Diário de um mundo novo – dia 6
O pilantra mor tentou me chantagear. Disse que só me deixava publicar o
diário na conta dele se pudesse provar uma cerveja. O quê??? Eu não preciso de
outro sócio na cerveja aqui de casa. Já basta a Eloá e as meninas quando vêm
aqui. Era só o que faltava! Fui na deep web e descobri que o Zucka está
desenvolvendo um treco que permite interação 3D. Algo muito além do virtual.
Liguei pro número dele – tem lá, só precisa procurar – e quando ele atendeu
estiquei o braço pra fora, peguei na goela dele e berrei “me dá a minha página
agora!” Ele ainda titubeou, mas quando o Shiva rosnou (não pra ele, mas porque
não queria que ele me devolvesse o que conquistei com muitas horas de preguiça
e quilômetros de besteiras escritas) ele se apavorou. Apertou um botão e voilà!
É por isso que você tá lendo isso aqui agora. Rê rê.
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Dia de calor, de almoçar tarde, de passear com o nosso amigo, de tarde
com vento fresco ameaçando chuva. Pelas ruas o que vi foi uma quase
normalidade, e sorrisos por trás das máscaras.
Aproveitei pra concluir o conto que vou mandar pro concurso. “Concluir”
significa que a primeira parte, o esqueleto, foi terminado. Agora só preciso
editar, lapidar, editar, cortar, editar, colar, ficar doido com a quantidade de
vezes que vou editar e editar e editar.
Agradeço a todo mundo que torceu pra minha conta no fêisbuk ser
reabilitada e pra quem torceu pra que não fosse.
Diário de um mundo novo – dia 7
Bom dia de domingo de sol, de primavera de pássaros e flores, de
baforadas de charuto e frango marinado no forno!
Ela acordou e tomou suco de pó de mico. Botou nós dois no balcão – eu e
o CSI de Piacenza (cês precisam ver ele cheirando a rua procurando não sei o
quê) – e passou aspirador r pano na casa toda. Aquele aspirador que comprei
essa semana pra substituir o que quebrou no início do isolamento e que eu usava
pra limpar a calha do balcão. Tem cinco dias que estou desentupindo aquilo.
Como moramos no primeiro andar de um prédio de cindo andares, cai muito lixo na
calha. Pregador de roupa, folhas e restos de plantas, pedaços de pano de chão,
pó, papel e, vez ou outra, uma bituca de cigarro. Claro que o pelo do CSI
também vai parar lá. E se não aspiro, acaba indo tudo pro tubo. Tentei com bicarbonato
de sódio e vinagre, água fervendo, cabo flexível pra desentupir calhas, apelei
pros produtos químicos e sertanejo universitário. A única coisa que está
ajudando é o aspirador. Tá indo. Devagar e sempre, mas tá indo. Inda bem que
parou de chover.
O corte na mão começou a infeccionar. Tirei o curativo, limpei com
aquele trem laranja usado em cirurgia e coloquei um fiapo de algodão. Precisava
de ar pra secar. Bem que podia ter dado uns pontos ou usar Super Bonder. Tá
melhor e quase seco. Acho que o que está ajudando mesmo foi a minha receita
caseira de dois dentes de alho com uma colherinha de plutônio.
A mulé fez almoço, passou umas roupas que precisam ser passadas, lavou
toda a louça do dia, descascou e cortou abacaxi, cuidou de mim, se ofereceu para
cortar o meu cabelo de novo e desistiu diante do meu olhar, brigou com o CSI,
fez e aconteceu. Quanto tempo dura o efeito do pó de mico? Será que ele não vai
dormir não, é?
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1 comment:
Aqui o povo não sumiu totalmente das ruas, porém teve vizinho totalmente recluso. Que bom que as coisas estão se encaminhando...puts...difícil esta linguagem do K rs tem que ler em voz alta pra poder entender hahaha
Eu fico arrasada com notícias de maus tratos de animais. Aqui eu tenho uma gatinha que não é minha. É dos vizinhos. No entanto vive aqui em casa, dorme na minha cama, fila a bóia e domina tudo...se esconde e aparece do nada na minha frente quando menos espero. Já tive cada susto! Como diz o meu marido...é a alegria da casa hahaha
Impressionante como são mais inteligentes do que nós! hahaha
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