Tuesday, May 26, 2020

Diário de um mundo novo - parte 1


Diário de um mundo novo – dia 1
Segunda-feira, 18 de maio de 2020. Para nós, na Itália, começa um novo mundo. Ele não é igual a ontem, tampouco é igual aos dias de fevereiro, antes que o primeiro caso oficial de Covid-19 fosse registrado aqui. É um mundo diferente que iremos construir juntos, com a esperança de podermos voltar a tocar as pessoas em breve, apostando na confiança mútua. Sim, todos precisamos seguir as orientações para evitar uma segunda onda e tornarmos à quarentena.
O que vi pelas ruas hoje foi um gesto de responsabilidade coletiva. Pessoas procurando manter distância das outras pessoas, máscaras em todas as faces e poucos passageiros nos ônibus. Talvez uma cidade grande tenha mais dificuldade na aplicação do protocolo de prevenção, principalmente no transporte público, mas em Piacenza a obediência foi total.
Um amigo do Brasil me mandou uma matéria sobre a distribuição de cloroquina nas farmácias italianas. Gente, sério que ainda tem quem fique em dúvida com esse tipo de mentira? Sério?
Aproveitei o dia para cortar a mão. Nada de grave, só um pequeno corte numa parte incômoda na palma da mão, entre o indicador e o polegar. O legal é que quando alguém pergunta, posso inventar uma aventura qualquer.
Informo que esse diário irá resistir até que o Brasil consiga sair da quarentena que ainda nem entrou. Espero que seja muito em breve. Torço por vocês e não sei se gosto de escrever diários e terminei um ontem.

Diário de um mundo novo – dia 2
cêis num sabe o ki é sê dono desses bestão. eles num mim dá folga dia ninhum. primêro eles saía di manhã i mim dexava tomano conta da casa, dispois eles ficaro um tempão aki cumigu mim enxenu o saco (cêis sabe ki eu num tenho, né?) i agora eles mim dêxa sozinhu di novo. eu tô té gostanu di tê um pôco di paiz di novo, mais só ki eu tenhu ki toma conta di tudu. mais é tudu tudu tudinho mesmo.
magina ki tem us passarinhu ki vem aki pertinhu gritá nin nóis, gritá pra nossa casa. craro ki sô eu ki tenhu ki mandá eles imbora. eles vai mais dispois eles volta tudu di novo. i teim us cachrru sarnentu ki fica andano lá fora na rua pra kerê intrá nas casa dus ôtru. tamém sô eu ki tenhu ki briga preles si mijá notru lugá, ki aki sô eu ki manda. as vêiz eu tô durminu i u dylan fica latinu prus sarnento ki passa na rua i eu tenhu ki acordá pra inxotá eles.
u bestão num passia cumigu u dia intêru, comu ki eu pessu pra ele fazê. ele é muito burru mesmo. ele só mi passía um pokinhu i eu keru fica lá fora u dia intêro. dispois eles chega i ela fica cum u celulá té dá uma dormidinha. intão eu dô uma durmidinha cum ela, ca cabeça im cima das perna dela. isso eu gostu. u bestão só chega dispois i fica nu poncutadô i aí eu vô lá mordê ele mais ele mim mordi. i mim leva pra passiá tamém. é disso ki eu gostu, di passiá, cherá, corrê atraiz di passarinhu i num gostu si ôtru cachorro vem mim inchê as paciênça.
quanu ki eles sai eles tira um monte di coisa gostosa di mordê i eu fico só cus meus brinkedinhu, mais eu kiria era brinca di mordê u bestão, mesmu si ele mim mordi tamém.
peraí ki eu vô mijá la fora, tá?

Diário de um mundo novo – dia 3
Gente, trabalhei como nunca e cheguei em casa ainda pouquinho. Tô podre. Já fumei um charuto, passei com o abestado do Shiva, e agora tô aqui tomando cerveja com grana, acarinhando o pilantra do meu cachorro. Me deixa.

u bestão mim pidiu pra iscrivinhá aki. eu dissi ki não, ki si o seu facecoiso num mim dexá mais iscrevê aki eu mordu todu mundu. mandei ele iscrevê di papel procêis, mais ele mim falô ki só vai iscrevê essas bosta ki ele iscrevi lá no coiso dele. mim isplicô ki si manda cartinha vai ficá sem dinhêro pra comprá papá pra mim. num sei u ki é dinheiro, mais num kero ficá sem papá. aí ele mim deu papá com muita carni, mim dexô mordê ele bastante e eu dexei ele usá u poquinho meu coiso.

Diário de um mundo novo – dia 4
Você tem ou já teve um cão? Você sabe oque é um cão? Pois bem, um cão é um mamífero quadrúpede que late – nem todos – e morde (absolutamente todos). Mesmo que seu cão nunca tenha mordido outros seres, ele sabe morder. Não o provoque. E você sabe o que é um molosso? Molosso é um tipo de cão de físico forte, normalmente usado para pastoreio, combate e guarda. Outra grande característica desses descendentes do Molossus grego é a quantidade de água necessária à disposição. No caso do abestalhado aqui de casa, são uns dez litros por dia. Não se preocupe, ele ingere menos de três litros por dia. O resto ele espalha pela casa ou, quando há alguém presente, para lavar as pernas do vivente. Ele adora beber água e apoiar o queixo no colo de qualquer um. De preferência, eu. Outra coisa, os cães soltam pelo, não importasse longos ou curtos. É possível que o tutor do cão encontre pelo em qualquer e todo lugar da casa. Aliás, mais que possível, é certeza.
Cães não deveriam ser comercializados. Nem todos os criadores são sérios e tem muito parasita vivendo de explorar até o osso o pobre animal. Animais sendo abusados por bestas quadradas. Não compre, adote. E antes de adotar, conheça bem as características do cão que você vai levar pra casa e veja se atende o que você espera dele. Beagles são dóceis, brincalhões e agitados, precisam de espaço. São ótimos para cavar buracos na sala, seja ela de cerâmica, madeira, mármore ou aço. O lado bom é que seu fornecedor de pisos irá presentear você com uma caixa de uísque todos os natais. Outra coisa, beagles levantam o focinho pra cima e avisam com um latido longo quando encontram alguma caça. Que pode ser um outro cão, gato, pássaros ou o brinquedinho que caiu do sofá. De tédio você não vai morrer. Akitas são sociáveis distantes. Quando você chegar em casa ele vai fazer uma festa danada por uns dez segundos. Depois vai cuidar da vida dele e pedir paz. São muito educados e higiênicos, você terá dificuldade em descobrir que parte do quintal ele escolheu como banheiro. E até sabe latir, mas é provável que você nunca ouça o latido dele. É do tipo intelectual e não como os doidos dos daschunds que latem pras andorinhas voando a quinze metros de altura e pulam tentando pegá-las, arrebentando as costas no chão. Pinscher é desaconselhado para quem tem vizinhos. Eles gostam de latir. Até dormindo. Se você não gosta ou não pode sair com o cão diversas vezes por dia, sugiro adotar um bulldog. Ele vai estar na mesma posição de quando você saiu. Arranje uma almofada para ele que subir em sofá não é o esporte predileto dele. Pra falar a verdade, ele não gosta de esporte nenhum, só de dormir. Já os pitbulls têm muita energia e necessitam de muito espaço. São ideais para quem vive em chácaras de superatletas. Aquele tipo de atleta que corre, anda de bicicleta, nada, pula de paraquedas, escala montanhas e é campeão de bung jump. Ele vai te seguir em todas. E depois vai querer brincar.
Muito importante: um cão não é brinquedo. Nunca dê animais de estimação de presente. Antes de ter um animal, lembre-se de que você será responsável por ele até o último dia de vida do bichinho. Os cães vão agir como criança sempre, não importa a idade.
Visite um abrigo, você vai se assustar com a quantidade de animais doidos para serem adotados. O pessoal do abrigo vai orientar você sobre as características do seu futuro amigo. Verifique se você tem condições de atender às necessidades dele (cuidados médicos, vacinas, comida decente, passear, espaço, tempo...). O abestalh... Er, o nosso amiguinho foi adotado no abrigo municipal. É um cão da raça American Pit Bull Terrier (ABPT), mas teria vindo conosco mesmo que fosse um vira-latas, a melhor do mundo. Doeu muito ver aquele pobre diabo desesperado dentro do box, com alambrado fechando tudo pelos lados e por cima, as patas machucadas por viver escalando na tentativa de sair, mal tratado e se automutilando. A voluntária nos alertou sobre a peculiaridade dele em destruir casas. O último que o levou e o devolveu depois de uns meses, teve um prejuízo de dez mil euros. Sempre foi uma empresa de demolição ambulante, não sobra nada. Mas nada mesmo. Mesmo assim o adotamos. Depois de destruir dois sofás, um computador, almofadas, objetos de decoração, cadeiras e outros móveis, uns dez controles remotos, o interfone e a cozinha toda (incluindo a geladeira de aço e o pinguim de cima dela), hoje ele está mais calmo. É diversão garantida. Daqui ele não sai de jeito nenhum!
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­_____________________________

Temos um vaso de flor que desabrocha uma vez por ano. Nos primeiros anos, nada. Até que saiu a primeira flor. Acreditamos que a cada ano mais uma flor aparece. Temos cinco e um botão. Ou seja, se estamos certos, tem seis anos que a primeira brotou.

u bestão mim pediu pra iscrivinhá aqui di novo. eu ia pidí um negóço pra ele mas isquiçí. si lembrá, eu peço aminhã
atençãu: us comentário aí imbáxo num representa a pinião du dono desse coiso.
assinado, eu, u shiva

Diário de um mundo novo – dia 5
Como é bom cruzar com pessoas que não tive notícias durante a quarentena. Sabe como é, ambos com medo de ligar, mandar mensagens ou perguntar e descobrir que o vírus andou aprontando. Sim, encontros casuais, obedecendo a distância de segurança e de máscaras. Hoje foi um desses dias. Gente que eu não via há mais tempo do que seria saudável e até um que vi cedo demais. E foi pro Shiva também. O pilantrão encontrou com vários amigos e amigas. Tá ficando mais sociável. Eu sabia que a soma da minha paciência com a idade dele iam acabar fazendo efeito.
A propósito, mais alguém respira com a boca aberta quando sai de máscara?
_______________________________

— Ô Allan, como é esse negócio de “café suspenso”?
— Olha, Ademar, não é em todo lugar, não. Em algumas cidades é normal, mas nem todos os bares aceitam participar. Tem que fazer a notinha na hora do pagamento e dar a quem tomar no momento do consumo. Pode acontecer de a nota ter sido impressa de manhã, o cara do bar coloca num lugar separado e só tira de lá quando serve a pessoa que entrou e perguntou “tem um café suspenso aí?” Claro que o bar pode ir trocando a cada hora, mas ninguém presta mita atenção nisso. E aí, se tiver um controle, o bar pode se encrencar por entregar uma notinha de horas antes do consumo, apesar de estar fazendo o certo.
— E como funciona?
— É assim: você toma um café no bar e, espontaneamente, deixa um outro pago, para quem não puder pagar.
— Pra um amigo ou pra qualquer um?
— Não, pra qualquer um. Um mendigo, alguém com o dinheiro contado...
— E por que não um pão, então?
— Porque muitas vezes a pessoa tem que escolher entre o pão e o café. Escolhe o pão pra parar em pé, mas morre de vontade dum café.
— Legal, isso! Italiano adora café, né?
— Ô! Italiano sem café, sem pizza e sem vinho não é italiano.
— Todo italiano toma vinho, Allan?
— Rapaz, pode até existir italiano que não beba vinho, mas grazadeus eu não conheci nenhum.

Diário de um mundo novo – dia 6
O pilantra mor tentou me chantagear. Disse que só me deixava publicar o diário na conta dele se pudesse provar uma cerveja. O quê??? Eu não preciso de outro sócio na cerveja aqui de casa. Já basta a Eloá e as meninas quando vêm aqui. Era só o que faltava! Fui na deep web e descobri que o Zucka está desenvolvendo um treco que permite interação 3D. Algo muito além do virtual. Liguei pro número dele – tem lá, só precisa procurar – e quando ele atendeu estiquei o braço pra fora, peguei na goela dele e berrei “me dá a minha página agora!” Ele ainda titubeou, mas quando o Shiva rosnou (não pra ele, mas porque não queria que ele me devolvesse o que conquistei com muitas horas de preguiça e quilômetros de besteiras escritas) ele se apavorou. Apertou um botão e voilà! É por isso que você tá lendo isso aqui agora. Rê rê.
_____________________________

Dia de calor, de almoçar tarde, de passear com o nosso amigo, de tarde com vento fresco ameaçando chuva. Pelas ruas o que vi foi uma quase normalidade, e sorrisos por trás das máscaras.
Aproveitei pra concluir o conto que vou mandar pro concurso. “Concluir” significa que a primeira parte, o esqueleto, foi terminado. Agora só preciso editar, lapidar, editar, cortar, editar, colar, ficar doido com a quantidade de vezes que vou editar e editar e editar.
Agradeço a todo mundo que torceu pra minha conta no fêisbuk ser reabilitada e pra quem torceu pra que não fosse.

Diário de um mundo novo – dia 7
Bom dia de domingo de sol, de primavera de pássaros e flores, de baforadas de charuto e frango marinado no forno!
Ela acordou e tomou suco de pó de mico. Botou nós dois no balcão – eu e o CSI de Piacenza (cês precisam ver ele cheirando a rua procurando não sei o quê) – e passou aspirador r pano na casa toda. Aquele aspirador que comprei essa semana pra substituir o que quebrou no início do isolamento e que eu usava pra limpar a calha do balcão. Tem cinco dias que estou desentupindo aquilo. Como moramos no primeiro andar de um prédio de cindo andares, cai muito lixo na calha. Pregador de roupa, folhas e restos de plantas, pedaços de pano de chão, pó, papel e, vez ou outra, uma bituca de cigarro. Claro que o pelo do CSI também vai parar lá. E se não aspiro, acaba indo tudo pro tubo. Tentei com bicarbonato de sódio e vinagre, água fervendo, cabo flexível pra desentupir calhas, apelei pros produtos químicos e sertanejo universitário. A única coisa que está ajudando é o aspirador. Tá indo. Devagar e sempre, mas tá indo. Inda bem que parou de chover.
O corte na mão começou a infeccionar. Tirei o curativo, limpei com aquele trem laranja usado em cirurgia e coloquei um fiapo de algodão. Precisava de ar pra secar. Bem que podia ter dado uns pontos ou usar Super Bonder. Tá melhor e quase seco. Acho que o que está ajudando mesmo foi a minha receita caseira de dois dentes de alho com uma colherinha de plutônio.
A mulé fez almoço, passou umas roupas que precisam ser passadas, lavou toda a louça do dia, descascou e cortou abacaxi, cuidou de mim, se ofereceu para cortar o meu cabelo de novo e desistiu diante do meu olhar, brigou com o CSI, fez e aconteceu. Quanto tempo dura o efeito do pó de mico? Será que ele não vai dormir não, é?

.

1 comment:

Eliana said...

Aqui o povo não sumiu totalmente das ruas, porém teve vizinho totalmente recluso. Que bom que as coisas estão se encaminhando...puts...difícil esta linguagem do K rs tem que ler em voz alta pra poder entender hahaha
Eu fico arrasada com notícias de maus tratos de animais. Aqui eu tenho uma gatinha que não é minha. É dos vizinhos. No entanto vive aqui em casa, dorme na minha cama, fila a bóia e domina tudo...se esconde e aparece do nada na minha frente quando menos espero. Já tive cada susto! Como diz o meu marido...é a alegria da casa hahaha
Impressionante como são mais inteligentes do que nós! hahaha