Neliz
era uma espevitada de trincar os dentes. Não deixava passar uma, tinha opinião
própria desde pequenina. Peitava o povo todo, se precisava. Quando o prefeito
foi na casa dela pedir a Dona Jacira para coordenar a ceia de Natal, cozinheira
de mão cheia e respeitadíssima que era Dona Jacira, Neliz se meteu na conversa.
▬ Cês não vão fazer o
povo passar mal de novo, como no ano passado, né?
Armaria, Dona Jacira nem tinha um buraco pra se enfiar, de
tão acabrunhada que ficou. Pálida, ainda olhou pra filha, tentando dizer alguma
coisa. Saiu foi nada. E olha que a Neliz era filha dela, Dona Jacira já devia era
de tá acostumada. Mas quem é que se acostuma com uma tirada dessa de uma
mocinha de dezessete anos? Dá não. E o prefeito? O homem ficou como se tivesse
levado um chute nos... No estômago. Estômago empachado e pescoço curto. Careca
lustrando de suor.
▬ Quê isso, Neliz? O
povo passou mal por causa da gula, que a comida tava ótima...
▬ Na, não, seu
prefeito. O povo passou mal porque com um calorão da porra se encheu de comida
pesada e foi dormir.
▬ Me respeite, minina!
Tá botano defeito na minha comida, é?
▬ Quê isso, mainha?
Deus o livre! Os prato é que não combinava com o calor. E eu sei que a sinhora
só fez o que pediram pra sinhora fazê. Então, quem pediu, pediu errado.
▬ É o cardápio de
Natal, tem nada de errado não, Neliz.
▬ Tem sim, seu
prefeito. Quem é que come peru, pernil, salada russa e aquele monte de nozes no
Natal aqui?
▬ Ué, todo mundo! Eu
sempre comi isso no Natal...
▬ O sinhô, né? Deve ser
por isso que tem esse barrigão e sua feito um cavalo... Com todo respeito, seu
prefeito. O povo comeu porque era de graça e porque nunca tinha visto tanta
comida junta.
▬ Vocês não comem porco
e peru no Natal? Que estranho...
▬ Estranho é comer isso
com esse calor. Aqui a gente vai de manhã cedinho comprá peixe dos pescadô na
véspera e bota pra mariná e assá na folha de bananêra de noite. Depois, é só
fazê uma salada, arroz e fruta, muita fruta. Quando Jesus nasceu eles eram
pobres. Tinha essa fartura não.
Dona Jacinta tava muda e muda ficou. Só balangava a cabeça,
que sabia que num carecia discutir com Neliz, não. Era cria sua, sabia como era
feita. E Neliz era feita assim, falava o que pensava e capaz que pensava
errado!
▬ Mas é parte da nossa
tadição...
▬ Né não, seu prefeito.
Isso é tradição lá das Oropa. E lá agora é inverno, faz frio e tem neve. Não
esse sol escancarado cozinhando as carne da gente.
▬ Então você sugere
adaptar a nossa festa para o nosso clima?
▬ Ué, e vamo ficá
imitano estrangêro até quando? Todo ano a prefeitura gasta dinhêro pra comprar
e trazer uma árvore gigante e enfeitá ela pra parecê neve. Uma árvore que nem
existe por aqui. Que nem a neve. Que ôtro lugá tem uma praça bonita como a
nossa? E tem as duas palmeira mais lindas do mundo na frente da igreja. Põe
umas luz alumiando as palmeira e a igreja, umas fita, bandeirinha, luzinha e
pronto. Nem tem que pagar pra levá a árvore de volta e a bichinha vai vivê
feliz lá no lugá dela. E no dia vinte e cinco, faz um bolo pra gente cantá “Parabéns”,
bota música pro povo dançá...
▬ Bolo? Parabéns? Que
ideia maluca é essa, meu Deus?
▬ Maluco é o sinhô, que
num sabe que dia vinte e cinco de dezembro é o aniversário de Jesus. ...Com
todo respeito, seu prefeito.
O prefeito prestava atenção e matutava. Matutava e fazia
conta e pensava na economia e lembrava da eleição. Sabia que da boca de Neliz
não saía besteira. Dona Jacira tava ali, sentada na cadeira dela seguindo as
ideias da filha. Ficava besta de tanta sabedoria na cria sua.
▬ Então, vamos combinar
o seguinte: Dona Jacira vai ficar livre para criar um cardápio com base nas
tradições locais, com produtos da estação e peixe fresco dos pescadores. Tudo
coisa daqui. A senhora me prepare uma lista do que vai precisar e para quando,
que a prefeitura providencia tudo. Vamos usar a cozinha da escola, como no ano
passado. E vamos contratar você também, Neliz. Você vai organizar todas essas
ideias e vamos fazer um Natal como você sugeriu. Anote tudo e passe na
prefeitura para conversarmos.
▬ Seu prefeito, bora
colocá isso preto no branco?
Já passaram quarenta e dois anos. Os filhos do prefeito se
revezam na poltrona da prefeitura, que o velho bateu as botas com as veias entupidas. Dona
Jacira ainda acompanha tudo da cadeira de balanço, que a parte dela já fez. Agora
é a Laura, sobrinha da Dona Jacira, que cozinha a ceia da véspera e os quitutes
do dia vinte e cinco. Aliás, Dona Laura. Criada na casa da Dona Jacira, aprendeu
com a tia todos os truques da cozinha. Neliz organiza grandes eventos por toda
a região e é a funcionária da prefeitura responsável pelas festas da cidade.
Sim, cidade. Deixou de ser conhecida como vilarejo de pescadores para se tornar
uma cidade turística, famosa pela preservação da cultura, da geografia local e
pelas festas. Os moradores alugam quartos para turistas, que os dois hoteis
construidos não comportam todo o movimento. Neliz criou uma cooperativa para
produzir e divulgar a arte e o artesanato local, promover cursos que permitiram
expandir o comércio e melhorar a qualidade de vida dos habitantes. São eles os
novos pequenos empresários e funcionários dos estabelecimentos. Inclusive o
mais famoso restaurante da região, que leva o nome da proprietária: Restaurante
da Jacira.
Aquele primeiro Natal – o segundo patrocinado pela
prefeitura – popular, chegou a sair na televisão. A igreja e as duas palmeiras enfeitadas e
iluminadas; o mastro na frente da prefeitura, onde Neliz
mandou colocar uma imensa rede de pesca esticada em baixo e presa na areia que
os caminhões levaram, imitando uma árvore de Natal tradicional, cheia de
conchas, estrelas do mar, ouriços e luzes azuis, foi um espetáculo de se ver. Todo
ano falta espaço para o povo que chega de longe, que vem participar e admirar a festa mais
tradicional da região.
E nunca mais passaram mal com a comida estangeira.
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2 comments:
Estimado Allan
Desejo a vc e família um Feliz Natal e um Ano Novo abençoado.
Bj
quase ano novo e a atrasilda freitas tá lendo história de emocionar sobre o Natal. que essa história seja nosso norte pro futuro. com o pé no real e peito pronto pra encarar bullies no poder.
beijo queridão.
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