Quem viveu o Rio nos anos setenta, conhece bem a Escola XV (Ginásio Industrial Quinze de Novembro – GIQN). Quem não viveu, não vai entender o que ela representava. Códigos, regras e gírias próprias. Grandes comprimidos placebo produzidos localmente (com pão…?) lotavam os enormes vidros da enfermaria. Eram indicados para tudo. E funcionavam. Enterrávamos sapoti para amadurecer e torrávamos castanhas de caju em latas vazias. O orgulho era a sala de troféus e os muitos atletas que de lá saíam. “Djonca” era sinônimo de perigo, cuidado, se manda.
1)
1970, dia de vacinação. Mil e quinhentos alunos em fila e em silêncio. Duas enfermeiras
com pistolas, uma para cada braço. A organização era por ordem de classe e
alfabética. Nem mesmo as moscas se
atreviam a voar. O aluno passava e tomava a primeira vacina no braço direito,
dava um passo e tomava a segunda no esquerdo. Quem teria resitido à tentação?
Eu não. Primeiro da fila: Allan, da Primeira A. Segurei o riso e berrei o mais alto que pude. Duas vezes. Lembro do
desespero dos poucos inspetores tentando capturar os fujões medrosos. Perdeu-se
o dia com a vacinação. Houve, inclusive, quem duvidasse da minha dor.
2)
Driblamos a vigilância e fomos roubar goiaba na chácara do vizinho – longe pra
caraca! Corremos quando a sentinela avistou o proprietário e deu o alarme. Manhã
seguinte, depois do café e antes da formação para a aula, Seu Glaston – chefe de
disciplina – apareceu na varanda cinco degraus acima do pátio e apitou com estridência:
“Priiiii!” Naqueles momentos todo mundo brincava de estátua. Nem virar a cabeça
podia, só o barulho da bola rolando e a voz do Seu Glaston no microfone: “Formação
de disciplina – Priiiii!” Pronto, podia-se voltar à pelada. Sem muito
entusiasmo, porque formação de disciplina anunciava merda.
Tínhamos
três tipos de formação, uma para aula, por classes e ordem alfabética; uma para
o refeitório, que se formava a partir de quem chegase primeiro, sem correria;
uma de disciplina, por dormitório e altura, com os mais baixos na frente. Cinco
minutos depois Seu Glaston apareceu de novo no balcão: “Priiiii!” Naquele
momento não precisava dizer mais nada, cada um sabia o seu lugar. Seu Glaston
pegou o microfone e fez um discurso de meia hora sobre responsabilidade,
honestidade ou coisa parecida, que ninguém escutava. Só nos
preocupávamos em permanecer perfeitamente alinhados, em posição militar de
descansar e sem se mexer. Após concluir a ladainha, esclareceu que um grupo de
alunos tinha roubado goiabas no vizinho. Informou que o vizinho – o senhor al
lado dele – ouvira o nome de um de nós e, batendo a “mãe preta” na mão (uma tira
de borracha rígida de uns quarenta centímetros de comprimento, cinco de
largura, por um de espessura – usada nas mãos oferecidas pelos infratores como
sinal de arrependimento) chamou o senhor ao microfone. Frio na espinha. Quem
teria esquecido a regra de nunca usar nomes? Até porque, éramos conhecidos pelo
número de matrícula. Eu era o 405 (quatrocentos e cinco), meu irmão, 897 (oito,
nove, sete) e por aí vai. Quantos josés deveriam ter? Sei lá. Poucas,
pouquíssimas exceções; Hulk era o aluno mais forte da escola; Doinha era a
estrela do basquete; Clidão (Euclides) o mais alto e mais magro. E tinha o Negão
Dois Dez (210), que era um monstro. No bom sentido, claro. Tinha dois metros de
altura por dez de largura. Cinematográfico lutador de judô que ignorava a
filosofia daquele esporte (que eu e meu irmão também praticávamos, além do
xadrez – este, com honras): “usar a força do adversário contra ele mesmo”. Dois
Dez simplesmente levantava o adversário, se ajeitava embaixo e liquidava a luta
com um ipon, independente do tamanho ou do peso do opositor. Não era raro ver o
outro lutador desmaiar ao ser arremessado no chão com tanta força. Mesmo o Hulk
mantinha distância dos debates sobre a força dele. Professor Paquetá ria e
tinha o cuidado de ser gentil ao corrigir Dois Dez.
Voltando
à disciplina, o vizinho recebeu o microfone das mãos de Seu Glaston e repetiu
em voz alta o nome ouvido: “Djonca.” O chefe de disciplina ria tanto quanto
nós. Supervisores gargalhavam e a formação estava desfeita, impossível
recompor. O vizinho saiu em silêncio, ciente de que algo dera errado e de que os
culpados não seriam identificados. Quase cinquenta anos depois ainda acho
graça.
3)
A escola tinha uma mascote, uma viralatas brincalhona e paparicada por todos.
Acostumada com o falatório da multidão que ocupava o pátio nos momentos livres,
só atendia se chamada pelo nome ou para correr atrás de bola.
Num
meio de semana fomos informados que deveríamos nos preparar para uma visita
importante. À noite, troca de uniformes por peças novas, o que significava
visita imprtante. Manhã seguinte e um grupo de homens bem vestidos acompanhado
de madames chegou. Formação de refeitório, sorrisos, dentes escovados e perfume
de sabonete. As visitas tomaram café no refeitório, o que era ótimo. Café
caprichado para imperssionar, bis a vontade e serventes simpáticas (ao
contrário dos outros dias, quando os alunos que trabalhavam na cozinha serviam
café com leite preparado com a água onde eles costumavam lavar os sapatos).
As
atividades começariam meia hora mais tarde, para que as visitas tivessem a
oportunidade de passear entre os bem comportados alunos. Metade dos alunos estudava
pela manhã e metade pela tarde. Quem não estava estudando, estava em uma das
muitas oficinas de formação (mecânica, tornearia, sapataria…) ou – como eu e
meu irmão – no curso de música. Mas não nos dias de visita. Precisávamos causar
ótima impressão.
Os
visitantes se dividiram em dois grupos, masculino e feminino. Pouco antes da
formação para aula, os grupos se reencontraram num ângulo do pátio, onde dormia
preguiçosamente a nossa viralatas. “Como ela se chama?” Perguntou uma madame
que parecia ser a esposa do mais importante. “Tem nome não. A gente chama
assim: 'vem, tsc, tsc' e ela vem. Mas hoje tá com preguiça.” Os visitantes
começaram a chamar, assobiar, abaixaram-se para que ela se sentisse confiante mas,
nada. Insistiam, numa competição para ver quem era mais simpática. Nada. De
repente a cachorrinha levantou abanando o rabo e foi em direção à multidão de
alunos, de onde alguém a tinha chamado pelo nome, que todos conheciam: “Piroca!”
*
5 comments:
Você me surpreendeu agora. Jamais imaginei você na Escola 15.
Por muitos anos,as pessoas tinham medo de passar Quintino. Havia um preconceito e temor dos alunos de lá. Mas era muito comum os pais mandarem seus filhos para colégios internos. Meu ex-marido estudou num desses colégios em Campos.
As histórias pitorescas resgatados são as melhores. Estava com saudades desse espaço aqui.
abraço, garoto
Chama a Piroca que ela vem!
Meu amigo.
Não me lembro de você, mas sei que fomos colegas lá na Escola Quinze. Estudei lá de 1966 a 1970. Só tenho boas recordações e só falo bem daquela época lá na escola, pois fui muito feliz. É muito legal ouvir histórias daquela época, só não concordo com o que você falou sobre a cozinha e o café da manhã, pois a comida lá era muito boa.
Minha formatura de ginásio foi em 1970 e tivemos um grande baile. Depois dali fui pra Marinha onde servi por 32 anos e saí com os proventos de capitão de corveta. Hoje lembro com muito carinho dessas duas casas que me acolheram tão bem, Escola Quinze e Marinha e que forjaram em mim o homem que sou hoje.
Foi um prazer ler o seu texto.
Um abração.
Jorge Koruja.
sou ex aluno deste estabelecimento de ensino de 1955 a 1962 dai fui servi na paraquedista hoje sou pai de 5 filhos,10 netos maravilhosos,se tivesse que voltar a minha infancia,voltaria atraz esse inspetor narrado ai no texto e gladstone,onde diz e dionca giria usada na epoca. QUERIA TER CONTATOS COM OUTROS EX ALUNOS MEU EMAIL: oniramsilva@gmail.com
Nossa. Eu fui aluno da Escola xv e voltei ao passado lendo seu texto. Eu estava nesse dia do "djonca", na fila feito uma estátua...bons tempos, viveria tudo outra vez. Abraço!
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