Sunday, December 14, 2014

Passageiro Garcia



Fomos conhecer o canil municipal de Piacenza um dia depois da Luiza ter partido para Londres. Eu, que sempre fui contra ter cachorro em apartamento, sabia que desta vez deveria ceder. Não haveria mais – por exemplo – aquela turma de jovens invadindo a casa inesperadamente, capitaneada pela Lu que ia logo avisando: “viemos jantar, mas não se preocupem, a gente se vira na cozinha.” O espaço que o cotidiano dela ocupava nas nossas vidas permaneceria terrivelmente vazio e... Bem, precisávamos de um cão. A Bia – vivendo em Pavia por causa da universidade – ainda arriscou: “mas mãe, cachorros pequenos costumam ser histéricos. Adota um de raça média.” Claro que eu também preferia um silencioso akita, um divertido labrador ou um espaçoso são bernardo, mas não era o momento de criar atritos. Ela tinha decidido adotar um cão pequeno e esperava encontrar um west higland white terrier; eu torcia por um simpático jack russel, mas a realidade é que adotaríamos o primeiro vira-lata que nos agradasse.

O canil tinha acabado de acolher uma leva de mais de sessenta cães, sequestrados de agricultores cheios de boas intenções, mas sem possibilidades de cuidar de modo adequado da matilha com tantos recém nascidos. Um caos. Era a nossa primeira visita [sempre tive medo de entrar lá e sair com o carro lotado de cachorros que não caberiam no apartamento] e ficamos impressionados com a quantidade de pessoas que estavam ali para adotar um cão. Enquanto aguardávamos a nossa vez, Eloá conversava com os cães nos boxes da entrada, com empatia e pena. Notei um cão branco num dos últimos boxes, quase escondido. Mancava e se lamentava. Não gania nem uivava, mas se lamentava. Me aproximei e ele encostou a cabeça no alambrado. Olhar profundo, emitia sons quase humanos. E eram sons tristes.

A voluntária nos chamou para uma volta pelo canil. Esclarecida a nossa – dela – preferência por uma raça pequena, com um ou dois anos de idade, direcionou a visita entre os hóspedes que mais se adaptavam. No final perguntei do branquinho manco e a veterinária me dissuadiu: era um cão de onze anos, quase cego, meio surdo, com artrite, problemas renais e uma cardiopatia; tinha sido deixado pelo antigo proprietário no canil, que não podia mais cuidar dele. Enquanto vagávamos sozinhos para avaliar os que tínhamos visto, uma outra voluntária veio nos fazer companhia. Convencemos a senhora a nos deixar visitar o cachorro manco, com o auxílio de um outro voluntário, que tinha contato frequente com o cão. Daquele momento em diante era nosso. Enquanto a segunda voluntária esclarecia estusiasmada as dificuldades do animal, eu balançava a cabeça negativamente à Eloá, que a cada aceno se apaixonava ainda mais pelo infeliz. O melhor jeito de convencê-la é deixar que ela me convença.

Mais de três semanas depois, saíamos do canil com o Garcia no carro e um atestado de adoção, direto para a primeira ducha dele em sabe-se lá quanto tempo. No início foi fácil; com o tempo as coisas vão melhorando. Só a artrite dele parece não responder ao tratamento. Dias de prostração se alternam com dias de puro vigor canino. Nem parece que no dia 3 de janeiro completará 12 anos.

O espaço que ele ocupa não preenche o vazio deixado pelas meninas. Na primeira vez que ele subiu no sofá, apontei para as almofadas que a Eloá fez para ele. De orelha resignadamente baixa, desceu e foi para o canto dele. É bom deixar claro regras e limites, tanto quanto é essencial deixar ao cão um espaço que seja só dele. Acontece que na segunda vez que o encontrei no sofá, ele cochilava com a Eloá. Perdi meu lugar e fui deitar no sofá menor. Vez ou outra ele decide que é o caso de me fazer companhia, sem entender que o sofá pequeno é... Pequeno.

Não é meu filho, não é um ser humano. É um cachorro, idoso e doente que necessita de cuidados e de um lugar quente para passar o inverno. Pouco mais de um mês e parece que vivemos juntos desde sempre. Daqui não sai mais. Amigo, resmungão, divertido, manipulador, fiel, chantagista, destruidor oficial de bolinhas de tênis e que detesta chuva e frio. Noutro dia me mordeu; os dentes inferiores no meu queixo e os superiores na testa. Culpa minha, eu mordi primeiro. Menos mal que foi uma mordida de brincadeira ou de advertência, ou ele teria triturado meu crânio.

A Bianca faz muita falta, mas ela volta para casa nos finais de semana; a Lu faz muita falta, mas apoiamos e incentivamos a decisão que ela teve quando completou dezoito anos e avisou – depois de ter passado uma semana em Londres – que iria mudar-se quando concluísse o liceu artístico. Londres é onde cursará a faculdade no ano que vem e ela quiz ir antes para melhorar o inglês, mas, principalmente, para ser dona do próprio nariz, com apenas dezenove anos. Ela está bem, trabalhando e entusiasmada. E o entusiasmo – sabemos – costuma ser maior que a saudade.

Filhos são insubstituíveis. Duas filhas maravilhosas o são ainda mais. A verdade é que precisávamos de um cão. E o Garcia precisava de nós. Garcia, o nosso amável e brincalhão pit bull.

Abaixo, duas fotos do dia em que fomos buscá-lo no canil. As outras são de um passeio nas margens do rio Po e de quando ele decidiu me fazer companhia no sofá pequeno (que virou hábito).




 .

12 comments:

Lunna Guedes said...

Meu caro Allan, lembrei de meus primeiros dias em Sampa, quando vivia no hotel e sem meu cão... meses depois, certa que ficaria por aqui, mudei para um apartamento, mas não permitiam cães... me contentava em paparicar os cães dos vizinhos na pacata rua da Barra Funda.
Encontrei um sobrado com características comum aos italianos me mudei, semanas depois chegou um filho e Boxer, presente do mio amore que, naqueles dias ainda era apenas um amigo... amor a primeira vista.
Ele completou recentemente 11 anos e as vezes, olho pra ele e penso em tudo que já fizemos juntos. Ele é um cão, mas aprendi e aprendo com ele muito mais que com muitos humanos que conheci.
Enfim, um cão nos humaniza, não tenho dúvida. Mas tenho consciência plena que, depois dele, precisarei de um tempo comigo porque não vai ser nada fácil para outro cão preencher o espaço que o Patrick ocupa em nossas vidas. Mas espero que isso leve algum tempo. Uns dez (impossível, eu sei) mas que seja o máximo que ele conseguir existir de maneira saudável e decente junto a nós.
Pronto, me emocionei...

Bacio

Milton Ribeiro said...

Belo texto, cheio de humanidade.

BLOGZOOM said...



Allan,

vc e sua esposa são duas pessoas maravilhosas, porque além de adotar escolheram um senhor de idade. Ao que me parece, na ultima foto, voces já estão "velhos" amigos.

Então este Natal vai ter mais um integrante na família. Por acaso, será que ele gosta de experimentar ceias?! rssss....

Beijinhos

cucchiaiopieno.com.br said...

Bom dia Allan!
Emocionei-me ao ler o teu post!
Sou contra a compra de animais e quando tiver um também irei adotá-lo, embora já cuido de oito gatos de rua que estão sempre no meu condomínio.
Identifiquei-me com a tua filha que mora em Londres, pois na idade dela entrei na universidade e também fui morar sozinha para ser dona do meu próprio nariz :)
Em relação a pergunta que você me fez lá no blog, comprei o melado na erboristeria L'isola verde, que está em toda Itália. Nessa erboristeria também compro água de coco e tapioca.
Um abraço
Léia

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ said...

Allan, uma graca este relacionamento de vocês com o Garcia. Sabe, o que me chamou mais atencao na estória de vcs, foi pensar no grande Amor de deus por nós. Onde Ele nos olhou, viu que éramos cegos, pois nao enxergávamos e ainda nao enxergamos bem o seu Amor, que somos tb mancos e aleijados diante desse grande Amor de Deus por nós. Que sofremos do coracao e de surdez, pois por mais que Ele tenha nos enviado a Jesus seu Filho, teimamos em nao aceitá-lo e continuamos a culpá-lo por cada erro. E mesmo assim Ele, aquele velhinho como costumamos dizer, continua nos amamando e esperando que um dia caiamos na real e que possamos reconhecer esse grande Amor dele por nós. A vcs parabéns por tao sábia decisao. A Eloá como sempre atirando no centro do coracao de uma bela mae. E a vc só resta mesmo o pequeno sofé com umas boas mordidas do Sr. Garcia.
Quanto as meninas... elas voltam, pode ter certeza...

Forte abraco, post que me comoveu.

Luma Rosa said...

Oi, Allan!
Amo cães e achei que nunca mais teria outro depois do Max, até que chegou o Otto Luigi. Eles mandam na casa! Tem brinquedo espalhado pela casa toda... Fez muito bem em adotar um cão. Eles são gratos! Parabéns! Quero saber mais do sr. Garcia!
Boas festas para você e sua família!
Beijus,

checaribe said...

o filme é o mesmo, Allan, só muda o lugar do cinema...Também nossos filhos sairam de casa, também temos cachorras (duas) que nos fazem a maior companhia. Quando saímos de casa e viemos para apartamento pequeno, as pessoas achavam que era um absurdo trazê-las, como se amores a gente deixa pra trás, só porque o lugar é pequeno! Vieram e se aboletaram no escritório do maridão, debaixo da mesa. Uma tem 16 e a outra 13 anos. Sei que estão velhas e logo vou perdê-las, mas afinal, nós também estamos velhos :)
Vieram a mim largadas na frente de casa, filhotes de vira-latas as duas. Eu não poderia ter amigas caninas melhores. Espero que elas também achem isso.
Um abração e ótimas festas pra vcs todos, com duas ou quarto patas!!

Anonymous said...

Imagino que Garcia escolheu vocês, se não preenche o vazio deixado pelas filhas, vocês preenchem o vazio deixado pelos ex-donos dele.
Racionalmente a gente apóia e fica feliz com a independência dos filhos, o difícil é nós ficarmos independentes deles. :D
Manoel Carlos

Gisley Scott said...

Allan, seu bebê canino é um amor. Meu vizinho tem um pitbull que é assim, nossa, um coração dentro de um cachorroe não um cachorro com um coração. As pessoas do bloco 2, onde moro gostam muito dele. Aqui e acolá ele chora na minha porta querendo ver o meu cachorro.Deixo ele entrar e dou umas guloseimas a ele hahahaha!

Parabéns por adotar o Garcia!

Gisley Scott | A Exportada

Nely L. said...

Seja bem-vindo ao blog, Garcia :)

Thais Miguele said...

Eu saí de casa quando tinha 21 anos. Voltei com 23 e saí novamente com 25. Depois disso, nunca mais voltei. Senti muito falta, mas também senti libertação. Não que eu tivesse que me libertar dos meus pais… mas, na verdade tinha, porque eu precisava crescer. No processo, fui me afastando cada vez mais, em distâncias, quero dizer.
Minha irmã também já saiu da casa dos meus pais algumas vezes, mas sempre voltou, e neste exato momento, está vivendo com eles. Quando nos vimos neste Natal, ela me contou que a minha mãe lhe pediu para que não saísse mais de casa.
Foi só aí que eu me die conta da coragem dos pais que deixam os filhos voar pra longe.
Espero que o Garcia possa lhes ajudar nesta nova jornada cheia de coragem.

Anonymous said...

Dizer o quê? Fiquei feliz ao ler o texto. =)