Wednesday, October 24, 2012

Calendário parado



Não foi o tempo que parou, só o calendário. Ela trocou o calendário para a parede entre a sala e o quarto para evitar que a umidade o estragasse. A casa também é velha, do tempo em que as casas eram construídas com materiais simples, que respiram, filtram a temperatura e a luz. Além do calendário, só uma medalha póstuma. Um pequeno pedaço de metal amarelado e envelhecido, recebido muito tempo depois que ele se foi.

Uma pequena casa sem flores no quintal e sem cerca para as galinhas que ciscam e destroem parte da horta. Dentro da casa moram lembranças embaçadas pela idade, cheiro de minestra fresca e uma velha que não sorri. Observa o calendário e toca o dia 26 de fevereiro para não esquecer do frio daquele dia, da notícia de que ele não voltaria e que teria caído como heroi da resistência. Um dia que dura para sempre e que a mantém prisioneira de um futuro que não aconteceu. Um coma consciente.

Ele não cumpriu todas as juras de amor que fez, nem voltou para ser o pai dos filhos que sonharam juntos. Se rebelou contra a chamada às armas por uma causa que não acreditava, para lutar clandestino em guerrilhas e montanhas. Nem uma foto ou carta de amor, somente o calendário que ninguém mexe, esquecido por todos. Como a velha na horta.

Ela refaz a horta toda semana a espera que o tempo dela também chegue. Tem medo de virar a página do calendário e descobrir que o mundo já virou muitas páginas, de muitos outros calendários. Ela respira devagar. Assim como a casa, a pequena panela de minestra e as galinhas. Só o calendário não se move na penumbra da velha casa, distante dos dias ensolarados desse início de outono, perdida numa montanha do centro-norte da Itália.

Um dia o calendário desaparecerá, a velha terá ficado velha demais, a cerca não fará mais falta e as galinhas terão ido parar na minestra.

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10 comments:

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ said...

Esse cenário tem sido cada vez mais raro em nossos dias.
As pessoas das cidadezinhas têm se modernizado.
Nem tanto eu sei, há muitos vilarejos que continuam vivendo sem as cercas para as galinhas...

O caso é que todos nós de uma certa forma também temos fases que nao queremos virar a folha do calendario seja por qual motivo for.

Um dia o nosso calendario também desaparecerá mas vamos continuar marcando dias nas lembrancas dos nossos filhos.

Lindo texto.

Abracos

Thais Miguele said...

Lindo texto! Inspirado pelas noites de Angola? Não me parece! Heheheheh!

denise rangel said...

Allan,
Além de parar o tempo, na tentativa de resgatar aquilo que lhes é caro, também se fecham em si mesmas e não veem o tempo passar. Tão comum isto.
abraço, garoto

Anonymous said...

Que maravilha!
Nossa geração trilhou caminhos indesejados, forçados por escolhas fundamentais.
Muitos de nós partimos, não tombamos, porém não pudemos voltar, pois como diz Paulinho da Viola "voltar, quase sempre é partir para um outro lugar".
Manoel Carlos

myra said...

sim, meu querido Allan,os calendarios so servem para nao esquecer que dia é---e como diz o Manoel Carlos nas palavras de Paulinho da Viola:"voltar quase sempre é partir...."
pena que daqui ja nao posso partir...à Italia...ou ao Brasil...
abraços

Luma Rosa said...

Lembrei-me de Proust "Em busca do tempo perdido", apesar de que aqui não se busca o tempo perdido, mas fica-se preso a um tempo perdido.

"Mas esses fragmentos, esses momentos do passado não são imóveis; guardaram a força terrível, a feliz inconsciência da esperança, que então se lançava ao encalço de um tempo hoje convertido em passado, mas que a alucinação nos faz, por instantes, tomar retrospectivamente como futuro."

A reminiscência interna e o envelhecimento externo, universos entrecruzados, passado e presente, rememorações e rastros do
vivenciado. O tempo é algoz e somos recipientes de um tempo passado, nada mais.

Boa restinho de semana!!

BLOGZOOM said...

Eu me lembrei de meu falecido pai. Nos ultimos anos, a casa se deteriorando, a umidade avançando e na parede, de frente a cama dele, somente um quadro: com minha foto aos 5 anos. As bordas amareladas. Hoje, a saudade.

Beijos

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ said...

Repensando o teu texto me veio a idéia de que vc teve aniversário.
É vero?

Adorei a idéia dos lápis, porque nao pensamos nisso antes??? Estaríamos agora no Estadao, rs.

Vou mostrar ao Daniel quando ele chegar da escola.

Bom fim de semana

Abracos

Lili Detoni said...

Allan!!! Que texto perfeito! Na verdade, acho que beeeeeem lá no fundinho do meu coração, tem tbm um calendário parado, num tempinho que, às vezes, volta nos pensamentos... Mas,graças a Deus, eu me sinto mais relutante do que essa velhinha, pois eu me jogo na vida,vivo tudo o que eu posso, para que esse tempinho que ficou pra trás permaneça lá, onde ficou. Parabéns por essas palavras tão lindas!
Abraços do Brasil!!!!!
Lili.

Inaie said...

morri de pena da velhinha que não sorri, que vive do que nunca foi. DAs juras de amor não cumpridas, da tristeza de promessas quebradas.

Acho que todo mundo corre o risco de ter dentro de si, a velhinha do calendário empacado.
As vezes ele empaca em momentos bons e nao consguimos ver mais nada a nossa frente. tudo desbota em comparaçao. Outras vezes são moentos tristes que nos mantem cativos. De qualquer forma, a briga contra as barras de ferro é inacabavel!