Sunday, May 31, 2009

San Lazzaro

A Planície Padana é uma região muito particular. Situada no centro-norte da Itália e circundada pelas montanhas dos Alpes e dos Apeninos, possui um clima que muitos preferem evitar: pouco vento e muita umidade. Pois são essas características que contribuem para a produção de queijos, embutidos e vinhos de qualidade. A cidade de Piacenza, por exemplo, fica apenas a 68 metros acima do nível do mar. Nas colinas piacentinas espalhadas pela província produz-se um vinho de razoável qualidade. Além disso, Piacenza é a única província em toda a Europa a ter conquistado o selo DOP (Denominazione d’Origine Protetta) para três produtos regionais, o que significa que tais produtos são certificados pela CE e controlados rigorosamente. Isso lhes confere uma qualidade particular e distinta.

Mas esse pedaço de terra é, também, repleto de tradições. Nem pense em confundir os tortelli de Cremona com a vizinha Crema. Tortelli é toda e qualquer massa recheada, como cappelletti ou ravioli, por exemplo, e ambas as cidades produzem tortelli de ótima qualidade. Sendo cidades vizinhas, estão sempre em competição, apesar de Cremona ser a cidade de Antonio Stradivarius e de um torrone de virar os olhos.

Com o tempo, muito do que era parte do orgulho local acaba sendo esquecido. As pessoas se acostumam e o inusitado passa a fazer parte do cotidiano. Não é raro que um turista ou forasteiro tenha informações que os habitantes do lugar não possuem mais.

Observando o mapa da Itália, nota-se que a Pianura Padana tem apenas uma parte livre de montanhas, a leste, onde se encontra o delta do rio Po. Pois bem, acreditava-se que as doenças eram transmitidas pelo vento, que, no caso da nossa planície, vinha sempre do leste [não é bem assim, os ventos altos que atingem a região podem vir de qualquer direção, mas estamos nos referindo a um tempo em que as crendices populares tinham um peso maior que os fatos] e, por esse motivo, toda construção deveria considerar tal informação. É por isso que os lazzaretti das cidades da região se situavam fora do perímetro urbano e sempre na parte oeste. Lazzaretto era o local construído para confinamento e isolamento dos portadores de doenças contagiosas, como a lepra e a peste. Construído na parte oeste da cidade e com o vento que soprava do leste, a cidade estaria livre da contaminação, pois o vento impediria a doença de entrar.

Lázaro de Betânia é um personagem do Evangelho segundo João que teria ressuscitado. Seu nome derivaria, muito provavelmente, do grego correspondente ao hebraico Eleazar, que significa “Deus ajudou”. Segundo a tradição católica, após ressuscitado teria ido para a Provença depois da morte de Jesus. Também teria sido o primeiro bispo de Marselha e acabou tornando-se o padroeiro dos leprosos pela associação equivocada com o leproso Lázaro, narrado na parábola do “Lázaro e do Rico”, mencionada por Lucas. Muitos artistas usaram a figura do Lazzaro mendigo da parábola pela referência que faz da vida após a morte. Apesar de se tratar de um personagem de uma parábola, a tradição da Igreja Católica o venera como um santo e muitos crêem ser este o protetor dos doentes de lepra, até porque, sendo o único personagem indicado por um nome, acredita-se tratar de uma pessoa que realmente existiu.

Como o tempo passa sempre, os lazzaretti já não existem na região, o mal de Hansen pode ser tratado sem assustar e os ventos já não vem mais só do leste. As cidades cresceram e o que se encontrava fora do perímetro urbano hoje é bairro. É por isso que toda cidade da região tem um bairro chamado San Lazzaro, situado na parte oeste, em relação ao centro histórico da cidade.

Faltou dizer que os três produtos DOP de Piacenza são o salame piacentino, a pancetta piacentina e a coppa piacentina, frutos de uma tradição cultivada por muitas gerações e muito apreciados por este forasteiro. Mas isso já é assunto para uma outra carta.

4 comments:

Anonymous said...

Mais do que informativo, você é educativo. Eu mesmo só penso na Toscana quando quero um vinho italiano, nem precisa ser algum precioso, até o Agrestino serve, mas sempre olho os da Toscana.
A tradição do fabrico de violinos se mantém?
No Brasil também achava-se que correntes de ar provocavam doenças, ao mesmo tempo, o higienismo considerava que a falta de ventilação provocava doenças, o Rio, por exemplo, tinha "miasma", daí a grande reforma urbana do início do século passado ter removido morros centrais.
Creio que poucos católicos sabem o que você disse sobre Lázaro.
Manoel Carlos

Claudia Souza said...

Mês passado tive um bloqueio na mandíbola e continuo com as gengivas inflamadas. Todo mundo por aqui disse que foi um "colpo di vento". Será? A sabedoria popular ainda é muito forte aqui pela Italia. E eu tendo sempre a acreditar nela.

Segunda impressão said...

Tudo interessantíssimo! Adoro sua maneira de escrever! Viajo aqui...rs. Só faltou fotinho desta vez!:-D

Marco Antônio said...

E eu adoro o vinho de Piacenza. Recebi um caixa de presente e fiquei muito feliz ao saboreá-los. Grande abraço