De repente o pedaço de carne na minha boca fica com gosto de couve-flor, de repente. Como o ex-operário da fábrica de cerveja que tem o nariz impregnado de cevada e que não encontra prazer na cerveja, mesmo anos depois de não trabalhar mais lá. Tudo começa a ter gosto de couve-flor e a minha vida escorre como um rio diante dos meus olhos.
Às quartas e sábados saía correndo da escola e ia direto pra Rua do Muro, onde tinha a feira, antes que estação fosse construída. A mãe me esperava com as sacolas, que ela ia enchendo com os produtos encalhados – xepa, mesmo – que os feirantes vendiam por poucas liras, pra não ter que trocar pela dignidade das famílias pobres como a nossa. 20 liras. Era quanto custava uma sacola de couve-flor. Voltávamos pra casa e a mãe cozinhava sobre a lenha catada nos dias de sol, amontoada na cabana que o pai construiu antes de desaparecer. Como havia fartura de couve-flor e pouca coisa mais, comíamos couve-flor todos os dias. Couve-flor tem gosto de lira velha. 20 liras. Eu era garoto mas entendia tudo. Com a cabeça enfiada no prato, sentia o olhar da mãe e podia ouvir seu coração apertado, eu entendia tudo. Comia de limpar o prato e ela suspirava aliviada. Almoçava e saía pra catar lenha e vender nas ruas do centro. A mãe usava o dinheiro pra ir à feira.
Nas férias de verão trabalhava na poda das videiras e, depois, na colheita da uva. Aquele dinheiro era importante e a mãe rezava pra que a safra não atrasasse e eu pudesse voltar pra escola em setembro, no início do ano escolástico. Durante a colheita os outros levavam pão pra comer com uva. Como não tínhamos dinheiro pra farinha, levava apenas couve-flor e trocava com um pouco de pão, eu trocava. Couve-flor alimenta os calos das mãos. Pão com uva sob o sol é a lembrança bela e dura das minhas férias.
Quando deixei a escola pra ir trabalhar na construção da estrada de ferro, levava a couve-flor que a mãe cozinhava às cinco da manhã. Comia longe dos outros operários, que o cheiro de couve-flor é desagradável e denuncia os mais miseráveis. Couve-flor fede como suor, fede.
Íamos a poucas festas. Uns poucos casamentos e a festa da padroeira. Pobre tem pouco a festejar, mas quando casei teve festa. Pouca, mas teve. E não teve couve-flor, que comida assim, pobre, come-se escondido e não se oferece a ninguém. Massa, peixe, pão, vinho. Couve-flor, nunca. Couve-flor é a vergonha da pobreza.
Cresci meus filhos com calos e resignação. O salário mal dá pras despesas e não podemos nos permitir os supérfluos da modernidade, mão não posso privar os garotos de desejarem ser iguais aos demais, não posso. O dinheiro dos serviços ocasionais e da campanha da uva, nas férias, fica separado pra ser usado com falsa naturalidade em algumas poucas, das muitas vontades deles. No próximo verão levo os meninos pra ajudar na uva e eles começam a ganhar o próprio dinheiro. Até lá, carne só muito de vez em quando, que pobre tem que suportar privações e eu sou um que suporta. E tem o primo dela, feirante, que trás sempre um saco de couve-flor. Mas quando ela leva os meninos pra velha benzer, uma vez por ano, antes da festa da padroeira, como carne. É por isso que esse pedaço deve ser mastigado devagar, fingindo não ter o gosto da couve-flor que os meninos não comem de jeito nenhum, e que está impregnado no meu nariz pra sempre. Nem enfio a cabeça no prato pra comer depressa e me livrar logo, como fiz a vida inteira, não. Hoje como devagar, pensando no primo dela que só aparece quando estou trabalhando; na lira que nem existe mais: vinte liras equivalem a menos de um centavo de euro (aquela moedinha de cobre azinhavrado), nem existe mais, nem existe; na estrada de ferro que ajudei a construir e que hoje leva a gente embora daqui; no almoço de pão com uva durante a colheita; na lenha catada e vendida por poucas liras pra quem nem precisava dela; na dignidade que restou.
Tento lembrar dos momentos alegres e esquecer a vida dura que sempre tive, tento lembrar. Esquecer da carne sem gosto de carne; do peso das sacolas da feira; do olhar desviado das pessoas pra quem vendia a lenha; do cheiro de couve-flor em baixo da lona, onde almoçávamos em dias de chuva, na construção da estrada de ferro; das poucas festas; dos calos nas mãos irremediavelmente grossas; do dinheiro sempre pouco; da frase dela encerrando a discussão essa manhã, pouco antes que saísse com os meninos pra pegar o trem das sete e meia: “você nem imagina os sacrifícios que tive que fazer pra não faltar nunca a couve-flor que você tanto gosta.”
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8 comments:
De quem é o texto, Allan?
Muito bom. Faz a gente pensar muito na vida e em suas injustiças.
abraço, garoto
Gostei muito. Lembro da minha própria mãe dizendo que tinham que comer muito pão com banana pra sobreviver na infância..Acho que a gente pega birra não da comida mas da miséria. Eu, por ex,, detesto mortadela. Porque era o que tinha em casa. Da vagabunda e barata. Peguei nojo até hoje. E pensar que tanta gente nem isso tem..:(
Oi Allan.
Minha mãe e minha irmã adoram couve-flor, então já sei: se num dia tiver couve-flor cozinha no outro dia tem sopa feita com a água do cozimento, pedacinhos das mesma e ovos cozidos.
Elvira
Amanhã, VOCÊ estará no Pq Hj é Sábado.
Grande abraço.
:)
Muito bom o texto. Suponho que seja seu..
Puxa Allan, que texto bonito. Me emocionou e me fez lembrar algumas passagens da infância. Abçs.
Foi para o copy-paste. Obrigado!
Você tem o dom de encantar com seus textos. Quando pequena, levava de lanche, para a escola, pão com mortadela ou pão com salsicha ( filha de açougueiro )e trocava com minhas colegas que levavam bolo ou pão com manteiga. Como foi bom relembrar a infância no seu texto!
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