O diabo, que ouvia quietinho enquanto mascava um naco de fumo de corda, sentado à sombra do último mandacarú naquela imensidão deserta, sorriu com o canto da boca e cuspiu.
Um sabichão da cidade, desses que estuda na universidade, me explicou que uma lei da física impede que dois corpos ocupem o mesmo lugar na mesma hora. Pensei que um corpo também não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, e é por isso que não acho certo ter duas canoas, ou, pra vocês da cidade, ter dois carros. Mas isso é uma outra prosa.
Quando a explosão verde aconteceu, adubada pela saliva do demônio, a imensa caatinga cobriu-se de árvores e arbustos. Plantas que pertenciam a outras florestas distantes foram chupadas para cá, esvaziando as matas pelo mundo até virarem imensos descampados. A vida que morria lá brotava nova aqui. Os seres humanos se reproduziram e foram preparar as lavouras, primeiro, e construir fábricas, depois. Onde era mata, hoje é cidade.
Lá os rios secaram. Os que não secaram enchem com a primeira chuva e inundam tudo. Os bichos morreram, foram extintos e só uma parte conseguiu sobreviver, se escondendo em pequenas matas ou se ajeitando com a vida nas cidades. Só o bicho homem se espalhou por todo lugar, parasita das catástrofes que é.
Mas a nova floresta logo atraiu os insetos, que polinizaram as plantas e multiplicaram a mata. Pássaros e outros bichos vieram depois. A umidade evaporava, virava chuva e evapora outra vez. Os ventos informavam e guiavam os bichos até o norte do que um dia seria chamado de América do Sul, mas que naquela época ainda não tinha nome, como ainda não tem hoje, para os que nela vivem. Os bichos foram chegando de mansinho e se emocionaram com toda aquela belezura, com plantas e árvores diferentes, de diferentes lugares, misturadas mas em harmonia. Emocionados, os bichos choraram. As lágrimas formaram os rios, córregos e riachos. Embaixo das folhas secas que aos poucos viravam húmus, a vida dos insetos se movimentava. A movimentação mudou a composição do solo e brotaram pedras preciosas e minerais. Ar, terra e água; plantas e animais. Tudo se completa e forma dependência, criando aquilo que vocês chamam de biodiversidade, mas que nós conhecemos simplesmente como “mata”.
A nova floresta tinha que ser protegida, impedindo que o diabo fugisse daquela imensa jaula de árvores. Ao norte, o mar; no sul, onças e jacarés vigiam. Os peixes criaram dentes afiados e piranham as águas. Os pássaros aprenderam gritos assustadores e controlam o ar; na terra, cobras e roedores vasculham cada buraco. Alguns macacos resolveram se parecer com o demo para fingir uma maior vigilância, e o macaco berrador, debochado que é, imita o som do tinhoso quando o fumo lhe queima a goela e ele lembra que não pode cuspir de novo.
O desequilíbrio de hoje só terá fim quando levarem o diabo para as áreas das extintas florestas e o verde retomar o espaço ocupado pelo homem. É por isso que tem tanto desmatamento na Amazônia: todos querem ajudar. Estão procurando o diabo.
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Este post faz parte da blogagem coletiva sobre o Dia da Amazônia,
estimulada pelo nosso blog coletivo Faça a Sua Parte.
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9 comments:
Que estão procurando o diabo, lá isto estão mesmo...só que ele não vai fazer renascer mais floresta em lugar nenhum, tudo estará acabado!
Interessante e original esta lenda explicando as origens da Amazônia e de seus problemas.
Um abraço e bom fim de semana.
Adorei a lenda...
Então, estou passando uns tempos na minha terra, Goiânia.
Até o final do ano retorno para a Europa, desta vez para a Itália.
Abraços,
"Essa terra é tão desgraçada que, se cuspir, nasce um pé de filho-da-puta." Tô rindo até agora, Allan! ;)
Allan, tô que nem o Juliano e rindo até agora com o início do seu post que por sinal está ótimo. Beijocas e um lindo domingo.
Oi Allan.
Bem interessante a história.
Gostei.
Bjs.
Elvira
Vixe, é ruim de achá-lo, viu.
Allan, adorei o primeiro parágrafo, tô rindo até agora.
Boa semana
Interessante a lenda. Sabe, não sei porque procurar um demônio, as vezes penso que basta olhar para dentro de cada um de nós e pronto. Lá esta ele... Abraços meus.
O sabichão da cidade destrói as matas por conta do capitalismo, mas não é certo pensar na 'inocencia' do capiau; ele destrói sabendo da dor da natureza. Lembra da frase publicitária "Aqui plantando tudo dá"? Não é mais assim, não é Allan?
Estou tão afogada em trabalho que me esqueci desta blogada.
Ah, vi esse video do Greenpeace - achei até que tinha acessado algo errado - http://www.youtube.com/watch?v=3AEZbWtELQI
Beijus
Oi Allan
Sou sua leitora desde o inicio do blog. Me divirto muito com essa sua lenda e volto de vez em quando pra reler. Foi atraves do Carta da Italia que conheci o Faca a sua parte, o blog verde que tanta gente inspirou. Gracas a ele mudei de vida, tomei coragem de fazer o que gosto e, mesmo ganhando menos e morando longe da cidade, adquiri o equilibrio que sonhava e sou feliz. Faco o que gosto e colaboro para um planeta melhor incentivada pelo trabalho de voces. E eh por isso que fico muito triste quando vejo o blog abandonado e sem nenhum esclarecimento aos leitores. Tudo tem um ciclo e acredito que o Faca a sua parte cumpriu o ciclo dele, mas porque nao informar aos leitores? porque nao transferir o blog para onde estava antes e deixar tudo o que voces escreveram para consulta? Fica a sugestao.
Beijos da Nenna
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