Sunday, May 27, 2007

Passeando

Sábado de manhã, as meninas estão na escola, o sol bate fora e decido sair para comprar o jornal. Eloá faz-me companhia até o mercado. “Preciso comprar uns iogurtes.” Logo na esquina encontramos um cidadão beirando os setenta, vestindo calças laranjas, sapatos ocre e um paletó verde maçã. Vai na direção oposta. “Oh, que bonitinho! Compra um daquilo pra mim?” Ela ri e entramos no bar para um café. Saímos do bar e acendo um charuto, surpreso com a observação dela sobre a gravidez da moça que nos serviu: “Grávida? A menina…?” “Allan, não é uma menina, é casada e está grávida de uns quatro meses. Não reparou a barriga?” Quando digo que sou muito distraído, poucos acreditam.

Na via XX Settembre, pertinho da Piazza Cavalli, ela entra no supermercado e me abandona. Domingo é dia de eleição e a praça está mais vazia. Semana passada havia dezenas de stands distribuindo material de campanha aos passantes. Uma multidão caminhava com panfletos, fitinhas, botons e santinhos. Vários carros de polícia circulavam lentamente, vigiando. Tem muito ladrão nessa época. Um trenzinho convidava a uma volta os eleitores do cidadão no cartaz engraçado. Tinha a foto do candidato sorridente, mas não o nome. Vergonha, eu acho.

Aproveito a calma do último dia antes da campanha para perambular entre as barracas da feira. Reparo que a maioria dos feirantes são chineses. E que os furgões dos chineses são novinhos em folha, enquanto aqueles dos comerciantes italianos são velhos e pouco conservados. Ou feridos das batalhas cotidianas. Em um poste, restou um cartaz do candidato do Partido Verde: “Verde na cabeça”, diz o slogan sob a foto do candidato com os cabelos pichados de verde. Uma baforada abre espaço entre donas de casa que conversam bloqueando o trânsito da feira.

Vou até a Piazza Santo Antonino, espaço reservado aos poucos que comercializam produtos alimentares. Salames, queijos, vinhos, frutas, verduras e mel. Odores que bailam e flutuam na manhã de sol. Uma mulher empurra um carrinho de bebê com um menino de uns cinco anos, treinando-o para uma futura obesidade preguiçosa. O vendedor de salames me cumprimenta de longe com um sorriso e um aceno. Colesterol alto e triglicérides idem. Volto à Piazza Cavalli e passo na banca de jornal. Três pessoas atendem freneticamente a pequena multidão que se renova. O jornaleiro me sorri e prepara, sem perguntar, os jornais e revistas que compro normalmente. No final, enfia tudo dentro de uma sacola e me deseja um bom dia sorrindo. Dou uma passada nas outras três bancas da praça e confiro que todas estão lotadas. Na volta para casa, ainda vejo a menina grávida que limpa as mesas fora do bar. “Tomara que ela faça aquela criança caminhar”, é meu último pensamento antes de jogar o toco do charuto e subir para ler.

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14 comments:

Anonymous said...

Antigamente, por aqui, meninas barrigudinhas eram sinônimo de "bichas" como dizia minha mãe. Hoje, como moro perto de algumas favelas, já percebi, com pasmo e profunda tristeza, que meninas barrigudinhas estão sim, grávidas. Fora as que a gente vê carregando crianças. Criança carregando criança. Embora a falta do uso de camisinha e a gravidez precoce não sejam vistas só nas camadas mais pobres, nas mais ricas existem babás e toda uma infra pra ajudar. Dá um aperto no coração.

Anonymous said...

Piacenza convida mesmo à reflexão.

Anonymous said...

talvez a criança seja deficiente física. Tenho uma aluna que carrega no colo o filho deficiente de 10 anos, pois não pode comprar uma cadeira de rodas pra ele.
Boa semana!
abraço, garoto

Yvonne said...

Allan, esses seus posts são cinematográficos. Leio e ao mesmo tempo vejo os lugares e as pessoas. Se duvidar sinto até os cheiros. Beijocas

Anonymous said...

Bom, Allan, muito bom... Poesia total com o cotidiano, você é mestre nisso, estava com saudades de suas prosas-poéticas...
Nada como um dia na feira, para um "não-observador" como vc!
hehehe
Bjo

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ said...

Allan, muito bem escrito. Belíismo como você descreve cada coisa e dá vida a uma simples acao de alguém estar servindo à mesa.
Tem algo prá você lá na Saia Justa. Passe por lá.

Boa semana prá vocês!

Luma Rosa said...

O Atropelo do tempo, faz esquecer o que fazíamos na mesma época. Talvez a "menina" tenha a mesma idade de sua esposa, quando quando ela se casou com você. Pode ser muito distraído mesmo ou o tempo que lhe distraiu!?
Vai saber!
E a vida corre sem freio...
Boa semana! Beijus

Anonymous said...

Cinematográfico é a expressão correta! Estou planejando algumas mudanças e você, amigo Allan, vai ter um lugarzinho certeiro na minha nova vida. Aguarde as cenas dos próximos capítulos...

Unknown said...

Senti como se fosse eu mesmo a passear, mas me engasguei umas três vezes com o charuto, pois não sou fumante.

Anonymous said...

Allan,

Se eu tivesse essa capacidade de descrição, Saint-Hillaire não iria me causar tanta inveja.

Grande abraço.

Anonymous said...

Você tem noção de como é bom te ler?
Ler tuas histórias é viajar. Vi o senhorzinho com as roupas nitidamente, caminhei contigo até a banca...

Sem mais o que dizer.

Beijos

Anonymous said...

bela crônica ou roteiro de curta-metragem. : )

SACANITAS said...

parece que vi todas as cenas, ate o charuto rolando no chao molhado.

*na minha mente o chao tava molhado heh*

beijo grandao!
:)
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Claudio Costa said...

Senti o aroma do charuto, a brisa mansa do dia, o odor dos salames e queijos. Até mesmo um leve perfume da mocinha grávida, mesmo que você não o tenha mencionado. Ah! e "caminhei" por Piacenza...