Monday, April 11, 2005

Dreams

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Pic, …pic, …pic…
Eram como gotas ocas e transparentes caindo num vazio escuro, formando, pouco a pouco, uma bolha maior. Plic, …plic, …plic… Eu desviava a atenção para outras fantasias, vozes, rostos e objetos que marcavam o meu quotidiano. Ping, …ping, …ping… Mas a idéia da bolha me voltava e percebia que o som ficava mais consiste, tornando-se uma bolha enorme e disforme, alimentada pelo ritmo constante e incessante das pequenas gotas que, uma a uma, faziam a bolha aumentar. Pling, …pling, …pling… Ela era enorme, maior que um prédio. Ploc, …ploc, …ploc… Maior que um navio. Pong, …pong, …pong… Ficava maior que o universo e não parava de crescer. Plong, …plong, …plong… Neste momento eu escolhia acordar (tinha consciência de estar dormindo) e ficava assustado. Horas tentando não dormir (pareciam horas) até ser vencido pelo sono e sonhar de novo. O pesadelo durou até que eu completasse três anos e é das poucas lembranças que tenho dos meus primeiros anos. Acho que o sonhava desde o nascimento. Mas a partir daquela festinha e do bolo em forma de navio pirata com as três velinhas – naquele tempo não existiam velas com números – que eu tinha dificuldade em mostrar com os dedos (e tenho até hoje!), o pesadelo sumiu. Ficou somente a sua lembrança, como num filme de Akira Kurosawa.

Plic, …plic, …plic…
Pouco depois aprendi a sonhar acordado e olhava o mundo como uma imensa tela à espera de ser colorida, refeita, experimentada, cancelada e novamente colorida. Sonhava com um conjuntinho de canetas hidrocor, mas ele custava muitas vezes mais que a pequena mesada recebida ocasionalmente. As canetinhas Pelikan moravam na vetrine da papelaria que ficava na praça, onde eu parava para observá-las cada vez que passava por ali. E eram muitas vezes por dia. É verdade, poderia ter economizado nas figurinhas ou bolinhas de gude. Bastaria ter evitado um pouco do amendoim japonês ou dos picolés de manga, mas tudo aquilo era urgente demais para ser deixado para depois. Afinal, a única coisa importante para uma criança é o presente, por mais que os adultos tentem ensinar o conceito de futuro.

Ping, …ping, …ping…
No início da adolescência sonhava em ter um agasalho Adidas. Aquele azul-marinho com as três listas brancas. Mas o tal agasalho custava muitas vezes mais que as canetas Pelikan. Lembro que poucos o possuíam. Os garotos e garotas do basquete, além de um ou outro do futebol de salão, e era raro ver alguém com o agasalho se não fosse dia de educação física. Quando começaram a aparecer os agasalhos de outras cores, o máximo era possuir dois de cores ou tonalidades diferentes. Sonhava em jogar basquete, mas era pequeno demais. Jogava futebol, como goleiro, mas não era lá grandes coisas. Aliás, era pequeno demais para ser goleiro. Jogava bolinha de gude, e era bom nisso! Era bom também em Geografia, História, Artes e toda matéria onde o importante era viajar com a imaginação.

Pling, …pling, …pling…
Observo minhas filhas e procuro prestar atenção aos sonhos delas. Eles não devem ser satisfeitos imediatamente, pois os sonhos perdem o encanto quando realizados. Dão mais prazer quando são uma conquista e fruto de uma espera. Às vezes são sonhos simples, como as canetinhas Pelikan, que nem existem mais. Talvez custassem muito e, por isso vendiam pouco, sei lá. Às vezes são impossíveis de realizar ou de entender, como o sonho confessado da Luiza de pular como um coelho, quando ela ainda tinha seis anos. Mas são sonhos simples, como deve ser simples para uma criança o salto de um coelho. Aprender a letra da canção do momento, ter o cartucho do game boy mais recente ou ter um gato.

Ploc, …ploc, …ploc…
A possibilidade de concretizar os próprios sonhos com uma certa facilidade pode causar frustração. A vida perde os segredos e tudo se torna uma questão de preço. Quando vejo o imenso tráfego de carros pelas estradas italianas, com placas de todos os lugares da Europa, ou o intenso vai e vem de aviões nos dois aeroportos internacionais de Milão, sem falar nos trens que estão sempre cheios, sei que muitos sonhos estão se realizando naquele momento. Muitas férias planejadas estão acontecendo. No próximo ano os sonhos serão algum outro lugar e serão realizados com a mesma simplicidade e negociação de preços. Um ano inteiro de trabalho em troca de uma semana branca (na neve, durante o inverno), uma semana de férias em casa para fazer a limpeza de primavera (explico em outra carta) e quinze dias em algum lugar sonhado e planejado por meses (e entupido de gente!).

Pong, …pong, …pong…
Que graça tem sonhar com algo que se pode alcançar?

Plong, …plong, …plong…
Hoje saio de bicicleta com meu agasalho Adidas, mas ele já não tem as três listas nem o glamour da minha adolescência. Minhas filhas têm toneladas de canetas hidrocor que usam como se fossem produtos descartáveis (e algumas o são) e os europeus viajam o mundo inteiro atrás de sonhos a realizar. O mundo mudou mas muita coisa permanece igual: ter um gato era sonho também na minha infância. Mas, pular como um coelho…

Pic, …pic, …pic…

Ciao.

10 comments:

Lucia Malla said...

Sonhar... não custa nada, e é tão bom!!!! Mas eu acho q alguns sonhos merecem ser realizados. Não é frustração, e sim felicidade! :-)
Bjs, seu texto é muito amável.

Anonymous said...

não ficou muito clara aquela história de não conseguir fazer o número de anos com os dedos...era porque fazer 3 significa unir polegar e mindinho ou fazer os de hoje significa unir mulher e talvez filhas pra completar a conta?:)

Anonymous said...

Plac, plac, plac!

Parabéns pelo texto. Esse sim é um blog bom, pena ter ficado tempo sem lê-lo, acreditando nos que auto diziam bons. Fazer o que...

Estou de volta!

Ah, e tô fazendo aula de italiano.

Ciao

Anonymous said...

O sonho é um blefe prá vida, jogamos nossas cartas apostando onde vamos ganhar. Será que quem tem sorte nos sonhos tem azar na vida prática?

Leila Silva said...

Allan,

Texto inspiradissimo, lindo mesmo. Sonhar 'e preciso...
Nos tambem temos uma Luisa na familia, tem sete anos e como fala!
Ah, os sonhos, me identifiquei muito com essas suas reflexoes. Ate essa historia ai de Adidas...
Abracos
Leila

Anonymous said...

Não vou falar de sonho não! é papo pra horas!
e sim o bolo de pirata!
Eram lindos os bolos com formas e enfeites. Tinha a tia que os fazia. Mas os da vitrine do Cirandinha..

Angela

Felicia said...

Allan,
Sabe o que me comoveu? Nossos sonhos eram quase os mesmos, exceto pelo fato de que as desejadas canetinhas se chamavam Silvapen. E como fui triste um tempo por não ter um uniforme Adidas. Ambos inacessíveis para minha família. Que coincidência!
Uma frase que gosto de desejar a mim e aos outros é: "Que o que você busca esteja a sua procura". Fiquei pensando que seri abom que nossos sonhos se realizassem na medida da sua bondade para conosco.
Beijos

Mineiras, Uai! said...

Oi Allan!
Lembro-me de quando meu irmão Ângelo revelou, aos 5 anos de idade, que seu sonho era ser SANTO! Juro! Eu ri demais, e lembro-me como se fosse hoje o beliscão que minha mãe deu no meu braço, me reprimindo pela risada constrangedora... Lembro que eu sempre sonhava que estava voando, ou caindo... Lembro de brincar e falar com passarinhos... Até hoje não sei se era sonho ou realidade! Meu irmão tb queria ser cientista (de "alimais"), na mesma época em que queria ser santo, e hj o seu sonho se concretiza, pois está estudando Medicina Veterinária... Sempre sonhei em ser artista, cantora, ou Astronauta... Também queria muito ser bailarina. Até que tentei bastante, mas admito que não possuo o físico longilíneo necessário. Adorei o texto (prá variar!).
Beijos
Ana Letícia

Claudio Costa said...

Gosto de citar a frase do Freud:"Os sonhos são a realização dos desejos recalcados". O termo "recalcado", aqui, não tem sentido pejorativo, pelo contrário, refere-se às marcas que ficaram e que não nos deixam esquecer o desejo: como os "pic, pic, pic" e suas bolhas... O desejo é insistente (desde que não seja imediatamente satisfeito) e é mobilizado por um objeto sempre inalcançável. Os reencontros, os destinos turísticos, as canetinhas ou o gameplay, tudo serve para amainar o desejo. Mas a falta continua. Enquanto for assim, estaremos vivos.

Anonymous said...

Allan, que texto bom. Fiquei com vontade de escrever sobre sonhos e pesadelos infantis...eu era uma fábrica deles.