Friday, October 08, 2004

Fragmentos de vidas

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Antonio: branco do Sul da Itália. 49 anos, casado, quitandeiro. Discursa sobre tudo, de política a construção civil, de economia a futebol. Seu hobby é a eletrônica. Explica que todas as fábricas de pneus pertencem à italiana Pirelli. Ensina que a qualidade inigualável do gado italiano produz o melhor leite, o melhor queijo e a melhor carne do mundo. Sua principal característica é a disponibilidade para consertar aparelhos elétricos ou eletrônicos dos amigos, a quem ele recebe com o sorriso complacente dos seres superiores. Da última vez que nos encontramos, ensinou que semente da laranja não serve pra nada. Esclareceu que as laranjeiras só se reproduzem por mudas retiradas de uma árvore adulta.

Jazz: negro da Costa do Marfim. 31 anos, solteiro, formado em sociologia e economia, trabalha como operário. Fala pouco, tem uma aparência intimidadora, apesar da baixa estatura. Conta que no seu país a diversidade de línguas é um dos pontos fortes: cada tribo tem seu próprio idioma, mas com o fluxo de estrangeiros desenvolveram o hábito de aprender diversas línguas. Além do francês, a língua oficial, fala fluentemente inglês, espanhol e italiano. Pretende ficar pela Europa. Sua principal característica é um sorriso fácil, espontâneo e infantil. Da última vez que nos encontramos, fez questão de mostrar um velho ciclomotor que acabara de comprar que, com o frio desses dias, o obriga a andar enrolado em um cobertor.

Rosaria: branca do Sul da Itália. 43 anos, casada, faxineira. Imagem folclórica do italiano: estoura por qualquer motivo, gesticula, fala alto com um carregado sotaque napolitano. Duzentos palavrões por dia. É a quota. Como qualquer italiano, tem celular e deu um outro para a filha de treze, quinze anos. Recarrega o telefone com €$ 10,00 por semana. É a quota. Quando acaba a carga, entra no escritório e pede para telefonar à filha, controlando-a na saída da escola e orientando-a sobre os serviços da casa. Três vezes na quinta-feira e quatro na sexta. É a quota. Sua principal característica é o hábito de xingar, de forma escandalosa, qualquer um que a atrapalhe ou que ouse provocá-la. Da última vez que nos encontramos, contou-me que mudara para um convento, após a surra que o marido ofereceu a ela e à filha. Ela, a filha e o filho de sete anos: os três no convento. É a quota.

Omar: negro da Somália. 45 anos, viúvo, casado, formado em economia, trabalha como operário. Seu nome se pronuncia “ômar”, mas só na Itália. Ex-funcionário menor do governo do seu país, fugiu para a Itália há dez anos para não ser morto pelos inimigos políticos do governo de então. Não conseguiu trazer a família, mulher e cinco filhos. Quatro filhos e a esposa morreram na guerra, tentando escapar. Seu tio, patriarca do clã, decidiu que com a morte da mulher, a irmã dela tomaria o lugar de esposa de Omar, como é o hábito entre eles. Desta forma, a cunhada de Omar assumiu a identidade da irmã, pegou o único filho dele que sobreviveu, transferiu-se para Adis Abeba e de lá conseguiu, através da Igreja, uma autorização para entrar na Itália. Agora eles tem um segundo filho, nascido na Itália. Seu filho maior, de nove anos, come pouco, vive doente e constantemente desanimado. Omar parou de beber e adora discutir futebol. Sonha em voltar. Sua principal característica e o olhar perdido, que tenta disfarçar com brincadeiras em dialeto piacentino. Da última vez que nos encontramos, pediu-me conselhos sobre a saúde do filho e anotou minha sugestão de óleo de fígado de bacalhau e mel com própolis – além do médico, é claro.

Gianni: branco do centro-norte da Itália. 63 anos, casado, empresário. Responsável chefe de família, preocupava-se em trabalhar e educar bem os filhos. Há nove anos conheceu o Brasil com uns amigos. Quando voltou, trouxe na bagagem duas mulatas e as alojou em um confortável apartamento, deu carro, crédito no supermercado do amigo, jóias e casacos de pele. A aventura não durou muito, pois ele descobriu que podia variar. As moradoras do tal apartamento não são mais as mesmas, aliás, nunca são as mesmas. Seu irmão e sócio precisa controlá-lo para que as besteiras não tenham dimensões catastróficas. Mas bem que ele tenta. Sua principal característica é uma alegria contagiante estampada na face bem barbeada, perfumada e tratada. Da última vez que nos encontramos, contou que está fazendo um curso de computação para empresários. E que depois do curso sai com os amigos.

Maurice: negro da Nigéria com cidadania italiana. 36 anos , casado, representante. Vai à igreja todos os dias, tem carro japonês de fazer inveja aos ex-colegas operários. Cordial, educado e com pose de dândi, é mais italiano que muitos italianos. Está desenvolvendo um projeto comercial binacional, com o objetivo de ajudar seu povo de forma sustentada e dinâmica. Amigo fiel e divertido. Sua principal característica é a ingenuidade e um sorriso fácil de menino. Da última vez que nos encontramos, foi em uma festa de criança. Era ele quem mais se divertia.

Marco: branco do Centro-norte da Itália. 38 anos, casado, chefe de departamento. Voz grave, um metro e noventa, cento e cinquenta quilos, óculos grandes e olhos estalados: assusta! Mas é o que chamamos “uma flor de pessoa”: fala mansa, andar lento e arrastado. Seu hoby é ganhar das máquinas de vídeo-pôquer. Ganha sempre. Certa vez, contou-me que era perseguido pelo tenente, quando prestava o serviço militar. Pegava os piores serviços e fazia plantões no frio durante as festas. Depois de seis meses resolveu por um fim na situação. Estava no escritório do quartel fazendo faxina quando o tenente entrou e passou por ele. Aproveitou a ocasião e passou lentamente a mão na bunda do tenente, que virou-se e fixou-o assustado. Ele, sério, deu com os ombros e abriu os braços, como quem diz: “foi mais forte de mim…” No dia seguinte o tenente transferiu-se para o Sul. Sua principal característica é uma profunda capacidade de avaliar as pessoas. Como qualquer psicopata. Da última vez que nos encontramos, ele estava de férias e levou-nos um generoso pedaço de focaccia (uma espécie de pão) para acompanhar o cafezinho das dez.

Killy: negra do Senegal. 24 anos, solteira, sem formação definida, desempregada. Não a conheço, mas sei que está fazendo um curso de computação para empresários.


Ciao.

6 comments:

Rafael Galvão said...

Caiaio.

Mas depois de ler o post duas vezes, embasbacado com o detalhe final da Killy, fica uma pergunta sobre Omar. Ele fugiu para a Itália há 10 anos. Seu filho mais velho tem 9. Há um erro nas contas dele.

Ou não. :)

marcelo said...

Parabéns, teu blog é muito bom!
(não quero parecer sacana...)

:-)

um abraço

Allan Robert P. J. said...

O Rafael tem razão em questionar a idade do Zacaria, o filho mais velho do Omar. Esclareçendo: Omar fugiu para a Itália saber que além da mulher e quatro filhos, deixava, também, um quinto filho a caminho. Assim, só pode conhecer o filho caçula (o único sobrevivente) anos depois, já na Itália. Como se vê, a história dele é um pouco mais complicada e triste...

Anonymous said...

Não sei o porque...mas te imaginei contando a minha história...rsrrs

Anonymous said...

Tudo bem, Allan?

Cara, não li seu post - estou num cyberqualquer em Porto... Chegaremos em Veneza no sábado, dia 23 de outubro, por volta das onze e pouco da noite, num voo da Volare. Vamos passar o domingo todo e na segunda-feira já estaremos embarcando para Roma. Vamos combinar nosso encontro por e-mail? Escreva para marmota@ubbi.com. Grande abraço, e nos vemos lá!

Anonymous said...

Muito divertido! Fiquei apenas com um dúvida: foi uma impressão equivocada ou o Gianni trocou as brasileiras pelas senegalesas?
Abração,
Diogo