Caros e Caras,
Paz e saúde!
São sete horas do dia doze de setembro de 2004. Ligo o computador e abro a janela. Lá fora, o sol mostra a sua presença em dois pedaços de céu amarelo. À minha esquerda as nuvens cobrem tudo, filtrando uma luz amarela e cinzenta. Dois carros passam sobre o asfalto novo, repintado com faixas brancas e amarelas e a palavra “BUS” bem embaixo da minha janela. Do outro lado da rua, a porta da igreja de Santa Clara continua fechada. Dentro dela, o padre ancião que viveu no Brasil ainda não se levantou: é domingo! Certa vez ele contou que foi voltou à sua Piacenza como prêmio pelo trabalho realizado em comunidades carentes, mas, sem família, preferiria ter permanecido no Brasil e continuar a sentir-se útil. Foi esquecido nessa igreja. Todos os dias abre a porta às seis, toca os sinos para a missa das onze (ou será a missa das dez?), reza as missas aos outros anciães da vizinhança e fecha a porta da igreja. Fecha a si próprio na igreja.
Ontem, em toda a Europa houve comemorações e passeatas em memória às vítimas de onze de setembro de 2001. Os políticos não perderam a ocasião. A televisão, também não. Em algum lugar nas minhas estantes atulhadas de livros, revistas e material escolar das meninas, perdeu-se a edição especial da revista Diario, que foi inteiramente dedicada a Enzo Baldoni, o jornalista italiano morto pelos terroristas no Iraque. Nessa edição, um texto do próprio Baldoni, dava instruções bem-humoradas sobre como se comportar “se” ocorresse dele morrer. As fotos do massacre das crianças em Beslan, na Rússia começam a desaparecer, sob milhares de outras imagens mais recentes: o vídeo de Al Zawari (o número dois de Al Qaeda); os jornalistas franceses seqüestrados em Bagdad; o início do campeonato de futebol; o lançamento do Frenheit 9/11, do Michael Moore; o Festival de Veneza; a devastação provocada pelo Ivan na Jamaica; o gibí da Mônica, que acaba de ser lançado na Itália; as notícias do seqüestro das duas italianas que trabalhavam em uma entidade filantrópica em Bagdad, presente no Iraque desde 1991.
O cheiro do café inunda a sala, tornando a pausa obrigatória. O ar frio que entra pela janela, ainda aberta, contrasta com o calor da xícara, apesar dos vinte graus. Recebo um beijo pelas costas, com cheiro de pasta de dente. Logo, as meninas também levantam e fica impossível continuar a escrever.
Saímos para visitar a Pulcheria, evento que reúne diversas artesãs, italianas e não, que acontece na Piazza Cavalli. Café e brioches. Piazza Duomo, Festa Del Dom. Exposição de artistas locais em harmonia com a festa religiosa. Um desfile de cavalos me faz recordar a imensa tropa que saía todos os anos da cidade de Embu, em romaria a Pirapora. Na via Vinte de Setembro – rua comercial do centro – observamos as pequenas lojas que ocupam a lateral da igreja da Piazza Cavalli (com tanta igreja nessa terra, não lembro o nome de todas). Lojas diminutas, espremidas entre a parede lateral, nos antigos arcos da igreja e a rua. Ponto chic e caro da cidade, o aluguel ali deve custar uma fortuna. Quem será o proprietário?
Festa della Gioventù, no Passeio Público, a cinqüenta metros de casa; Pulcheria; Festa Del Dom; Festa di Sant’Agnese, a única quermesse que ainda ocorre na cidade, com pratos típicos, baile e vinhos regionais; Festa Campestre, no lado externo dos antigos muros que defendiam a cidade; a visita do presidente Carlo Ciampi, prevista para o dia quinze. Tanto acontecimento no mesmo mês, e a poucos dias do aniversário da Bianca (doze anos!) a faz sentir-se mais importante do que é (ao menos para nós).
A chuva fina que nos acompanhou por todo o passeio não chegou a atrapalhar, mas o vazio da rua nos permite uma observação mais calma. A manchete do jornal local anuncia que sete pessoas foram denunciadas por dirigir sob estado de embriaguez. Crianças de até três anos que ainda são levadas pelos pais em carrinhos para bebês. Garotos acima do peso que reclamam cansaço pela caminhada e olham com inveja os carrinhos de bebês. Vitrines anunciando os últimos dias da liqüidação de verão oferecendo roupas a preços realmente baixos. Peças que irão encalhar, pois o interesse, agora, é pelas roupas mais quentes e menos coloridas.
O prato de massa acompanhado de uma garrafa de Nero D’Avola conforta o estômago e a alma.
Nenhuma notícia sobre atentados no dia de ontem. Nada que mereça destaque superior aos motoristas bêbados. As pessoas participam das caminhadas pela paz e correm para casa para se verem na televisão. O sentimento de dever cumprido se soma à esperança de que a manifestação possa surtir efeito nos donos das guerras. As passeatas têm destaque menor nos jornais, de segunda página. A vida parece correr normal e quase monótona. Piacenza é um hiato de tranqüilidade nesse mundo de caos. O clima fresco e chuvoso contribui para a sensação de calma. O vinho, também. Mas a palavra paz, hoje, me oferece um conceito de difícil compreensão.
Ciao.
8 comments:
Allan,
Triste mas real. Notei uma ponta de melanconia nesse último texto. Será que a tristeza a que você se referiu no texto anterior está contaminando você?
Espero que não.
Luiz Becker
Ciao Allan! Como vai?
Parabens adiantado para a Bianca!
Gosto muito do teu Blog. A Italia fica mais bella com os teus contos.
Um abraço
Meire
http://pensamentosepoesias.blog.tiscali.it/
e
http://senzainchiostro.blog.tiscali.it/
Allan, sempre é gratificante retornar à Carta da Itália. Se você está realmente melancólico, não sei, mas os textos puxam para esse lado.... Não se trata de uma observação "psicológica" (o que seria a maior intromissão!) mas "literária": o clima chuvoso, a lentidão bem medida da descrição, as cores entrevistas nas palavras... parece mesmo despedida de verão/outono, the falling leaves.... e o inverno já às portas?
Allan,
Depois das suas observações, estive mais atento na minha última viagem à Europa e pude perceber essa sensação que você sempre deixa transparecer, de que muita coisa é só pra inglês ver. Não pude deixar de notar, poréM, que os italianos se levam menos a sério que outros povos da mesma velha Europa.
aBRAçãO,
Lenine
Melanconia? Nos parece calma. De qualquer modo, experimente o segundo copo de vinho.
Frank & Gaia
Allan, é impressionante como as notícias vao ficando debaixo umas das outras... e paz é estado de espírito, que eu, mesmo aqui no silêncio do meu monte, não consigo mais sentir na alma.
Nora Borges
Allan,
Acompanho sempre o seu blog. Aliás, você tem uma verdadeira legião de fãs anônimos. Usamos seus textos em aulas de sociologia (chique, não?). A única ressalva é a dificuldade de comentar no blog: é muito complicado!
Porque você não muda o sistema de comentários? Mas isso nem é o mais importante. Continue escrevendo.
Abração,
Marcelo Bruni
A minha sensação de segurança aumentou muito depois que voltei para o Brasil. Mas, como você mesmo reconhece, a gente sempre sente saudades do lugar que deixamos.
Abraços,
Diogo
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