Eles estão entrando na cidade agora, na volta de um curso que ela foi fazer na sede da empresa a poucos quilômetros da cidade. São nove horas da noite, mas é verão e o sol se arrasta preguiçosamente rumo ao horizonte. Ela tem fome e vontade de comer um cachorro-quente ou uma outra porcaria qualquer daqueles trailers que só abrem depois das oito da noite. Ele sugere ir direto para casa e comer algo decente ou parar em uma lanchonete ou num lugar mais higienicamente adequado. Ela lembra de quantos sanduíches, espetinhos e acarajés comeram juntos pela rua no Brasil, lembra que ele comia de tudo que os ambulantes lhe oferecessem nas madrugadas de Carnaval em Salvador e insiste em parar em um trailer. Eles se dirigem à via Colombo, onde ele sabe que existem pelo menos três trailers que funcionam a noite toda.
Ela: – E você já comeu lá?
Ele: – Eu não, mas dizem que tem um trailer de uma brasileira que faz sanduíches ótimos.
…
Ela: – Não, esse aí não! Tem cara de ser muito mal cuidado. Vamos tentar os outros dois…
…
Ela: – Hum… Vamos ver se encontramos o terceiro. Também não gostei da cara desse não.
Ele: – Eu acho que são todos iguais, basta não olhar o que tem dentro.
…
Ele: – Esse é o último. Vai ser aqui ou vamos comer em casa. A menos que você prefira ir a uma lanchonete ou…
Ela: – Não, não. Aqui tá bom.
…
Ela: – Buona sera!
A balconista: – ‘Sera!
Ela: – Che panini avete? (que sanduíches vocês tem?)
A balconista: – “Bom”, abbiâmo panino con la picanha… (bom, temos sanduíche de picanha…)
Ela: – Ah, a senhora é brasileira? [de outro modo, de onde sairia esse “bom”, o “abbiâmo” e a “picânha”?]
A balconista: – Ah!... Sim, sou brasileira. [ai, era só o que faltava! Uma madame no meu trailer.]
Ela: – Estou com vontade de comer um cachorro-quente. Tem? [pelo jeito não deve ter muita opção. Que iluminação péssima!]
A balconista: – Não, infelizmente não temos cachorro-quente, mas temos pãozinho de picanha, hambúrguer, cheeseburguer… [ela tinha que escolher alguma coisa que eu não tenho?]
Ela: – Acho que vou experimentar o sanduíche de picanha. A carne é macia? [“pãozinho” de picanha? Ela traduziu “panino” como pãozinho e não como sanduíche…]
A balconista: – É macia sim, pode comer sem medo. Antes eu trabalhava com uma picanha que me traziam de um fornecedor aí, mas a carne era muito dura. Aí, o meu sobrinho que trabalha como açougueiro em Parma corta ele mesmo a picanha e me traz todas as semanas. É macia sim, pode ficar tranquila. [com tanto cliente in giro por aí, tinha que parar justo uma chata no meu barraco?]
Ela: – Então tá. Vou experimentar.
A balconista: – E para beber? [vê se dessa vez escolhe alguma coisa que eu tenha…]
Ela: – Água. Sem gás.
A balconista: – E você, vai querer alguma coisa?
Ele: – Não, obrigado. Acabei de jantar. Mas se não estivesse de barriga cheia iria experimentar o seu sanduíche de picanha.
Ela: – Sou eu a esfomeada. Vim pelo cheiro. [faz logo esse sanduíche e deixa de lero-lero, minha filha.]
A balconista: – Tenho certeza que você vai gostar do pãozinho de picanha. Todo mundo gosta. Eu até faço picanha na chapa com mandioca e faço entregas. Daqui a pouco tenho que entregar para quatro clientes, mas não vejo a hora de sair de férias: isso aqui cansa.
Ela: – Tem muito tempo que você tem esse trailer?
A balconista: – Três anos. Mas agora quero vender, não aguento mais trabalhar a noite toda. É vender e sair de férias. Vou passar um mês na Sicília, que eu tenho casa lá, sabe? Eu nem queria ir, queria ir direto para o Brasil, mas o meu compagno fez um bico deeeste tamanho e aí decidi passar um mês lá. Depois vou passar um ano no Brasil. Nem vou alugar meu apartamento aqui, nem nada. Vou deixar fechado e, quando der na telha, volto pro meu cantinho. [tá pensando o quê? Sou poderosa e posso viajar o quanto quiser, pra minha casa na Sicília ou pra minha casa no Brasil. Também sou dondoca.]
Ela: – É, trabalhar de noite não deve ser brincadeira não… [já entendi tudo: ela vive com um siciliano e vai passar um mês na casa da sogra. Tá tentando vender o trailer com medo da crise e espera ter mais sorte no Brasil. E vai deixar o “apertamento” onde mora fechado porque não sabe se vai ter mais sorte lá ou se vai ter que voltar correndo. Com tanta estória, deve ter me achado com cara de madame.]
A balconista: – Vai comer aqui ou vai levar? [leva, por favor!]
Ela: – Vou levar. E vamos voltar outro dia para provar a picanha com mandioca. [espere sentada.]
A balconista: – Voltem sim, mas se preferirem pãozinho brasileiro, o outro trailer na segunda rotatória é da Suzaninha, que faz uns pãezinhos brasileiros ótimos. Eu não me meto a fazer o que não sei. Depois, com onze anos de Itália sou mais italiana que brasileira, na cozinha. [parem lá na próxima vez.]
Ela: – Ah, obrigada pela dica! Tchau! [vamos parar lá na próxima vez.]
A balconista: – Tchau!
Eles voltam para casa e ela senta na cozinha para comer o sanduíche de picanha com uma cerveja estupidamente gelada. Quando termina vai para a sala e diz para ele que é melhor não provar o sanduíche de picanha e tentar o trailer da Suzaninha.
Ele: – A carne era dura?
Ela: – Não, era macia, mas picanha de carne italiana não tem gosto de nada. Nem de papel.
16 comments:
achei otimo e me fez rir!!!!!!
abraço, gosto mto de tudo que escreve, e de seu humor!!!
Imaginei as cenas, senti-me na pele de todos eles....por favor, escreva um livro!!! Precisamos de você, o mundo está carente de talentos!
Um abraço meu amigo!
hahahaha que historia legal
adorei
gosto de como escreve imagino cada detalhe da historia rs
beijos
quia quia quia...vi a cena...e me senti dentro dela....vcs sao otimos.
bjs
Amigo!!! Vc é especial!!!!! Escreva muito e escreva sempre, per favore!!!! Muito bom seu texto, seu humor e a grande realidade contida nas entrelinhas!
Abraço!
Lili.
kkkkkkkkkk...realmente, quantos diálogos existem em um só díálogo, né?
beijão.
Isso aí...rsrsrs!Vc é demais! abraço
Parece que os produtos italianos também não são admirados pelos italianos. A observação final da sua filha me fez lembrar desta notícia - http://twitter.com/Luzdeluma/status/20310422096 - Suzaninha?
Grande texto!
Sou forçada a deixar a orignalidade (?) de lado,se é que tive alguma, algum dia, e devo devo dizer que concordo com a Vivien e idem, idem com Izabel e Agatha. E muito principalmente com a Lili Detoni:-)
Claro que sim!
bjs
Huahuahuaaa...ai Allan que coméeedia rsrsrs...eu imaginei a cena e interpretei as duas personagens. Muito bom!!!
bom domingo para voce e obrigada por teu comentario!
abraço!
E eu ainda fiquei pensando no que vc disse lá no teorias "não venha pra Itália que o calor esta de matar". aff
Melhor nem comentar. rs
Bacio
Caro,
Acho que vc vai gostar do filme sim. Aproveito para reforçar os comentários acima. Você escreve realmente muito bem. Dá gosto de ler.
Eu fico imaginando como deve ser engraçado para brasileiros que vivem na Italia, que aprenderam o idioma, assistirem uma novela tipo Passione que está agora no ar aqui no Brasil. Os atores falam "italiano" afffff ninguem merece! Deve ter erros até dizer chega!
Sobre o seu texto, eu acredito que para todas as pessoas que moram em outros países, se não estão empregados numa boa empresa, devem passar muitos apertos e dúvidas.
Dizem que as ofertas de emprego no Brasil aumentaram, só se for para pessoal mais jovem, continuo com muitos amigos mais velhos (imagine, na casa dos 40) na berlinda!
Beijos
Legal!
Gostei da cena do cotidiano contada pelas palavras de quem o vive.
Curioso é que os brasileiros mais humildes acabam sentindo um certo desconforto ao encontrar outros brasileiros de um certo nível. Mas a recíproca não é verdadeira. Muitas vezes tentei me aproximar de outros brasileiros que moram na minha zona e senti na pele. Curioso.
Adorei! Tanto que se pensa e não se diz quando encontramos brasileiros pela Europa...
Uma amiga resumiu bem tudo isso: brasileiro tem síndrome de cachorro vira-latas. :-)
Beijos,
Clarisse
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