Caros e Caras,
Paz e saúde!
Quando mudei-me para São Paulo pela primeira vez (e foram tantas vezes que poderia escrever um roteiro alternativo) notei que a feijoada era feita com qualquer feijão que não fosse o preto. Explicaram-me que a feijoada que eu gostava chamava-se “feijoada carioca”, um termo que até então desconhecia. Protestei e decidi fazer cara feia toda vez que tivesse que comer uma feijoada que não fosse a minha. Achava um abuso mudarem uma coisa tão gostosa sem a menor cerimônia. Óbvio que ninguém me levou a sério, afinal era somente um menino, que ainda acreditava que dinheiro se comprava na mercearia: “Me dá um quilo de dinheiro, Seu Manuel…” e por isso não conseguia entender porque meu pai deveria sair para trabalhar todos os dias. Também achava muito monótona essa história de os dias haverem somente sete nomes. Porque não dar um nome diferente para cada dia? Mas acho que já escrevi isso antes.
Em Salvador descobri que a feijoada pode haver outros ingredientes além dos tradicionais, mas devo confessar que realmente não gosto de verdura cozida no feijão. A feijoada sergipana, então, nunca tive nem coragem de provar. Leva abóbora, quiabo, etc.
A simplicidade dos pratos é, muitas vezes, o grande segredo. A feijoada francesa (o cassoulet) é feita com feijão branco e carne de porco, carneiro, ganso ou pato e pouco tempero. Aquela espanhola (o puchero) com carnes e grão-de-bico, mas muito temperada. O Slow Food (movimento culinário que se contrapõe ao fast food) prega tempo e simplicidade como ingredientes básicos para uma boa cozinha. E, em alguns casos, a tradição como pitada de mestre. Ocorre que as receitas sofrem variações em função dos gostos pessoais e da necessidade de se adaptar às realidades locais.
Mesmo na Itália, país de reduzidas dimensões geográficas, quando comparado ao nosso, os pratos sofrem variações e provocam acaloradas discussões, normalmente resfriadas com vinho. A famosa guerra de tortelli (qualquer massa recheada) entre Crema e Cremona, duas cidades vizinhas da região da Lombardia, consome litros e litros de bom vinho há anos. Outras cidades (como Piacenza, onde moramos) acabaram entrando na guerra. Sou um valoroso voluntário.
Na província de Rieti, região do Lázio na divisa com a região de Abruzzo, existe um vilarejo de quatro mil habitantes. De origem medieval, foi importante centro cultural no século XVII e, graças a fidelidade à casa real d’Aragona, que reinou na Sicília desde 1282 e também em Nápoles, a partir da segunda metade do século XV, ganhou o status de cidade e o direito de cunhar as próprias moedas. Mas apesar da sua rica história e da interessante arquitetura, Amatrice ficou famosa pelo molho utilizado no macarrão deles de cada dia. A receita é simples: tomate, guanciale e pecorino. E aqui começam as adaptações.
Tomate é tomate em qualquer lugar do mundo, apesar de suas origens americanas (que, se recordo uma lição do Aldo Pereira, seria andino). Mas a regra de utilizar somente tomates maduros e com muita polpa é sempre válida. O toucinho defumado (ou bacon) que utilizamos no Brasil é muito forte, por ser excessivamente defumado e temperado. Na Itália usa-se um toucinho levemente defumado ou apenas seco, com pouco sal. A grande maioria é cilíndrica (para comer com pão) ou prensado (para cozinhar). Bochecha em italiano se diz guancia; guanciale é o toucinho feito com a bochecha do porco, menos gorduroso que o toucinho da barriga (em italiano pancetta, de pancia, barriga). Na receita de domingo, o guanciale pode ser substituído por toucinho comum, mas procure um que seja mais suave e com um pouco de carne. Quanto ao pecorino, queijo de leite de ovelhas e que no Brasil custa caro, pode ceder o lugar a um queijo meia cura pouco húmido. E aqui vale um lembrete: queijo ralado não é sinônimo de queijo tipo parmesão ralado. Todo queijo pode ser ralado, dependendo do efeito que se deseja. Ricota ralada não é uma raridade por aqui.
Substituindo os ingredientes, a receita fica fácil e econômica: Tomate, queijo meia cura ralado e toucinho levemente defumado (ou seco). Sem alho. Outra dica: a massa caseira, por ser irregular e porosa, absorve melhor o molho e deve ser “ao dente” no momento em que se come, portanto deve ser retirada do fogo ainda meio dura. Se à água de cozimento for adicionado um cubo de caldo de carne além do sal, o truque de mestre terá um agradável efeito. Em uma frigideira grande, frite com um pouco de azeite de oliva o toucinho em pedaços pequenos, sem deixá-lo endurecer (não frite demais) e adicione o tomate cortado em pedaços, que não chega a desmanchar-se. Uma pitada de açucar para tirar o excesso de acidez e junte o macarrão já pronto e escorrido (não se preocupe em escorrer toda a água). Misture os ingredientes mexendo a frigideira (e não o macarrão) como se fosse uma panqueca (em italiano se diz saltare). Sirva e cubra com um punhado de queijo meia cura ralado e lembre-se que este é somente um primeiro prato. A receita do segundo deixo à imaginação de cada um.
Meus amigos italianos confessaram necessitar de um incentivo especial para a primeira garfada de feijoada, com todas aquelas carnes pretas misturadas ao feijão. Couve existe somente no sul da Itália e temos que adaptar com outra verdura (que não tem o mesmo sabor), a erbetta ou bida. Paio, nem pensar! Também tivemos que reduzir as carnes muito gordurosas e não conseguimos encontrar a costelinha defumada. Mas basta uma boa caipirinha servida antes, que todas as resistências são vencidas. Eles sempre pedem bis.
De hoje em diante fica o pacto entre nós: quando falarmos de feijoada (ou houver um convite para uma) será sempre a minha feijoada, com feijão preto. A verdadeira feijoada, que não necessita do adjetivo “carioca” e que vem do tempo em que dinheiro se comprava na mercearia e cada dia tinha um nome.
Agora, com licença que vou sair para escolher um vinho. A guerra dos tortelli continua.
Ciao.
9 comments:
A feijoada sergipana é deplorável. Aliás, a única coisa decente em Sergipe é a farinha de mandioca -- incomparavel -- e as comidas feitas com tapioca e puba.
O resultado é que em Sergipe se cozinha, de modo geral, muito mal. Não tem sequer uma "culinária sergipana".
Em compensação, há poucas coisas mais gostosas que o tempero baiano -- e nao tô falando da cozinha baiana, mas do tempero do dia-a-dia, o arroz com feijão. É diferente. ;)
Ciao Allan,
Tudo bom?
Voce tem razao, somente os bons amigos ficaram..
Por falar nisso, vamos montar um restaurante como socios? Eu adoro estudar as historias das origens da cozinha italiana, e com um marido nativo sempre estou aprendendo.
Falando em feijoada, a primeira vez q fiz aqui, foi um desastre, todos adoraram, mas deixaram tudo no prato, sem a devida scarpeta. Eu ja comi a tal sergipana, com direito a maxixe...risos.
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Allan,
Eu posso ser considerado da ala "radical" com relacao ao assunto: sempre afirmei que feijao, de verdade, era o feijao preto. Os outros, por mais saborosos que fossem, nao passavam de "vagens". Feijoada, entao, nunca cogitei outra que nao de feijao preto, em especial aquela que o meu pai ainda faz.
Em dezembro, ele enviou pelo correio, para os Estados Unidos, uma caixa com mantimentos, entre eles as costelinhas de porco, para a feioada que faria (e fez!) quando nos reunimos na casa do meu irmao.
abraco.
Em primeiro lugar, Allan, meus cumprimentos por você escrever tão bem. O prazer de lê-lo não é menor que o de
comer uma legítima feijoada.
Sobre o tema "feijoada e similares ou aparentados", e já que você lembrou o "cassoulet" francês, sugiro não esquecer a "fabada" do norte da Espanha (mais precisamente, da região de Astúrias).
José Luiz Fernandes
Allan, o que é que tem orelha de porco, rabo de porco, pé de porco e não é porco? É feijoada! Com feijão preto. Acompanhada de farofinha e couve picadinha, fininha... ah! e uma caipirinha, uai!
Outra coisa: as pizzas do Brasil são iguais às daí?
Paixões sempre despertam um pouco de estranhamento. Gosto de uma boa mesa mas nunca me importei muito em como são feitas as comidas. É interessante observar tua empolgação quando o assunto é ingrediente ou tempero. Confesso que enquanto você cozinha carnes e massas, cozinho tuas palavras bem temperadas. Mais que a composição da comida me apetece a composição da receita. Abraço Allan.
Reginaldo Siqueira --- singrando.org
Olá, sou novo aqui. O blog seu é muito bem escrito, parabéns. Quanto à fejoada já sei como você gosta, como fazem na França, em São Paulo, Sergipe, Bahia (eu sou da Bahia mas nunca vi fazer assim em Salvador pelo menos!), etc. O que eu achei mais interessante foram suas abordagens quanto a cultura.
Se você puder fazer um post sobre receita de saladas eu poderia também saborear... :D
Abraços,
Diego - www.palavreando.com
Hum... comi de tudo no Brasil. Até mesmo um excelente Vatapá feito pela Jesse, minha cunhada. Expert em cozinha.
Pra mim não importa o nome... mas o Lord comia feijao com tudo ( o mulatinho) mas quando fazia a Feijoada com F maiúsculo, fazia questao que o feijão fosse preto.
E eu também
Encontrei seu post buscando por alimentos brasileiros na Italia. Nao encontrei o que buscava, mas achei este artigo lindo..
Sou de Sao Paulo, e NUNCA COMI FEIJOADA QUE NAO FOSSE DE FEIJAO PRETO!Alias em casa, feijao preto é sinonimo de feijoada, mesmo se nao tiver nada de porco, rs.
Estou morando na Sardegna há uns meses, e confesso que estou sofrendo um pouco... Nao esta sendo uma adaptacao muito facil, nao só porque nao encontro temperos e alimentos que estava acostumada tanto no Brasil como na Alemanha(onde morei por 6 anos), mas tb pela resistencia dos italianos em NAO ACEITAREM O NOVO..
Concordo que a Itália tem tradicao, e gosto muito disso, mas o bloqueio por tudo que NAO É DO JEITO QUE SE FAZ DESDE O TEMPO DOS TATATATATARAVÓS; me tira o humor, rs..
Mas entao, alguém sabe onde encontrar carnes defumadas e louro na Itália ? E por que eles nao gostam de canela ??? kkkkk
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