Diário do futuro – dia 67
Quero
deixar registrado o meu protesto contra o que parece, mas não é. É comum
encontrar carros com bancos de couro. Mais agradável ao tato, bonito durável e
luxuoso, o couro é muito popular nos carros de luxo – e nem tanto – da Europa.
Desde que o mundo é mundo, o homem aprendeu a falsificar (a coroa da rainha da
Inglaterra tem um rubi falso). Com o couro não seria diferente. Alguns
materiais apenas se parecem com couro; já outros, são praticamente idênticos.
Difíceis mesmo de identificar. Imaginem que algumas bolsas, casacos, sofás e
outros objetos, são de material similar e o fabricante tem o cuidado de
costurar uma tirinha de couro em algumas costuras para que o consumidor pense
ser a borda do produto, acreditando ser de couro.
Pois bem,
a minha indignação vai para o material mais recente, coisa de uns quatro anos,
que é exatamente igual ao couro. E pode até ser vendido como couro, dependendo
da lei do país. Como é possível? Bem, a coisa começou assim: anos atrás algum
gênio decidiu aproveitar as sobras de couro dos curtumes, estofadores, fábricas
de móveis e todo estabelecimento que usasse couro em quantidade. A peça de
couro, aquela com a forma do boi, costuma ter partes não aproveitáveis, seja
por cicatrizes, dobras e outros defeitos. O descarte ia para o lixo até esse
geniozinho de merda pegar tudo, triturar, misturar com uma resina elástica e
cobrir com uma película plástica, normalmente aplicada a quente, por um rolo
que imprimia o desenho imitando o couro. O resultado é que milhões de carros
trafegavam com o volante despelando após o primeiro verão. Sabe quando você
esqueceu do filtro solar e abusou do sol? Despela tudo, não é? Pois aqueles
volantes despelavam igualzinho. É possível que você tenha visto um desses
volantes. Pois bem, resolveram melhorar o material e expandir o uso para os
bancos dos carros, só não tem mais aquela película.
O
problema é que ao triturar o couro ele perde as fibras que mantinha a peça
íntegra. Esse material é um aglomerado destinado a se desaglomerar. E estão
usando isso em carros de luxo e caros. Eu deveria rir da situação e dar de
ombros, afinal eu não tenho, e nunca teria um carro ou sofá de couro. O couro é
a pele do animal. Pele faz rugas. Rugas precisam de tratamento especializado e
o resultado não substitui a pele nova. Banco e sofá de couro só é bonito na
loja. Quando usado, amassa, fica cheio de rugas, é frio no inverno, quente no
verão e chato de limpar. Quero não.
Voltando
a como eu deveria estar, eu não posso ficar feliz. Sou restaurador de couro e o
meu trabalho sobre esse falso couro não vai durar por causa do material. Só
para dar uma ideia, algumas marcas de automóveis tem um couro de primeira e é
necessário muito tempo ou muita esfregação – entrar e sair do carro esfrega o
banco – para que seja necessário um restauro. Mediamente uns duzentos mil
quilômetros (o que aqui não é muito), enquanto esse novo material precisa de
algo como trinta e cinco mil quilômetros. Em outras palavras, a restauração vai
durar muito menos e o cliente vai duvidar da qualidade do meu trabalho. Que raiva!
No
próximo capítulo vamos ver de que material são feitos os discos voadores. Não
percam.
Diário do futuro – dia 68
Toda vez
que algum parente, amigo ou conhecido é vacinado, fico feliz. Hoje foi a vez do
Presidente Sergio Mattarella e da amiga Tatiana (mais alguém?). Só a vacinação
em massa vai interromper o ciclo e impedir o aparecimento de novas variantes.
*
Ontem foi
uma segunda-feira pesada. Hoje foi a segunda-feira de ontem. Vou lá fora buscar
outra cerveja.
*
Já
voltei.
*
Ele
espera que eu saia do banheiro de roupa trocada e vá preparar o kit para o
passeio. Guia, garrafa d’água, saquinhos plásticos, focinheira, casaco e o
capote dele. Só então resolve levantar. Passa a noite dormindo entre o sofá, a
cama da Lu, a dele e a nossa. Conhece a rotina da casa e se adapta a ela. Para
subir na nossa cama, dá a volta e sobe por cima dela. Nunca entendi, mas é
assim desde sempre. Rosna. Rosna quando quer carinho, rosna porque o carinho é
no lugar errado, rosna se alguém o acorda, rosna quando tem que ceder o lugar.
Rosna. Rosna tanto que rosna enquanto dá beijinhos. Rosnento.
*
Tenho que
confessar uma coisa. Ontem escrevi que veríamos de que material são feitos os discos
voadores. Infelizmente tenho que dizer que não sei. Eles até contaram, mas o
som é irrepetível por mim, uma daquelas coisas que se quisesse imitar, teria
que quebrar a garganta. E depois, de nada adiantaria. Não tenho a menor ideia
que material é aquele.
Diário do futuro – dia 69
Ela
decidiu que o relacionamento não podia continuar. Ele, furioso, decidiu “se
vingar”. Espalhou pelo vilarejo, na província de Salerno, sul da Itália,
cartazes com uma foto dela em pose sensual, possivelmente photoshopada,
oferecendo prestações sexuais. Como o lugar é muito pequeno e todo mundo se
conhece (todo mundo se conhece mesmo!), os moradores, chocados, arrancaram os
cartazes e denunciaram à Polícia Postal (aqui o que não falta é polícia). Após
uma rápida averiguação – termo policial – ele foi devidamente levado a uma
hospedaria do governo.
Nunca
entendi o que leva alguns homens a pensar e acreditar que outra pessoa possa
ser uma propriedade. Ela pulou fora? Somos mais de 7 bilhões de humanos, mais
ou menos a metade é do sexo feminino, procura outra e esquece.
O que vai
acontecer com a vida dessas duas pessoas? Quanto tempo de hospedagem vai ser
preciso para ele entender a estupidez? Ou será que vai piorar, ficar com mais
raiva ainda e decidir tratar todas as mulheres como objetos propriedades de
alguém? Vai sair pior que quando entrou? Que sociedade nos tornamos?
Torço
muito para que essa história termine aqui. Gente é pra se amar.
Ele: 17
anos.
Ela: 13.
!!!
Diário do futuro – dia 70
Os melros
já festejam a primavera. Cantam e cantam, ignorando a presença dos habitantes
da cidade. Ouriços sonolentos e debilitados pelo letargo, atravessam parques e
ruas lentamente, ao contrário dos apressados javalis que rondam a periferia, lá
onde a cidade deixa espaço ao campo, a dez minutos de bicicleta do centro da
cidade, e por onde correm cervos, lebres e coelhos. Faisões tímidos ciscam os
terrenos preparados em pequenos haréns, fugindo a qualquer aproximação com seus
voos baixos. A nútrias, ou ratões-do-banhado, pastam calmamente nas margens de
rios e córregos. A vida ainda não explode, apenas boceja com os olhos semiabertos.
Só aquele tipo de cegonha que passa o dia imóvel, com uma das patas enfiada na
neve desapareceu. Assim como a neve. Não tarda e as borboletas, pernilongos e
outros insetos virão.
A vida
segue. Cochilando e espreguiçando.
Diário do futuro – dia 71
“A mulher
bala larga tudo e vai embora”. Esse era o título de um velho artigo de jornal.
“Duas almas sentem que se amam, mas a regra não permite. Não lhes seria
permitido exaurir o desejo de dividir suas emoções juntos porque ‘a regra do
circo’ não permitia.” E foi por isso que a estrela e grande atração do circo
decide fugir e viver seu grande amor.
Francesco
De Gregori inspirou-se na notícia para compor uma música que entrou para o rol
das grandes canções italianas. Um clássico. Ele convida à loucura de ignorar as
regras e voar para viver a própria vida. Largar tudo por algo que não pode
esperar para ser vivido.
O título
original da música é “La donna cannone”. Link nos comentários.
*
La donna
cannone (A mulher bala) – Francesco De Gregori
Butterò questo mio enorme cuore tra le stelle un
giorno,
(Vou
lançar meu grande coração entre as estrelas, um dia,)
giuro che lo farò,
(Juro que lanço,)
e oltre l'azzurro della tenda nell'azzurro io
volerò.
(E além
do azul da tenda, no azul eu vou voar.)
Quando la donna cannone
(Quando a mulher bala)
d'oro e d'argento diventerà,
(De ouro e prata será,)
senza passare dalla stazione
(Sem
passar pela estação)
l'ultimo treno prenderà.
(O útimo
trem vai pegar.)
E in faccia ai maligni e ai superbi il mio nome scintillerà,
(Na cara
dos maldosos e soberbos meu nome vai brilhar)
dalle porte della notte il giorno si bloccherà,
(Das
portas da noite o dia vai se livrar)
un applauso del pubblico pagante lo sottolineerà
(Que o aplauso d público pagante irá sublinhar)
e dalla bocca del cannone una canzone suonerà.
(E da
boca do canhão uma canção vai tocar.)
E con le mani amore, per le mani ti prenderò
(E com as mãos, amor, vou te pegar)
e senza dire parole nel mio cuore ti porterò
(E em silêncio, ao meu coração te levarei)
e non avrò paura se non sarò bella come dici tu
(Não
terei medo se não sou tão bonita como diz)
ma voleremo in cielo in carne ed ossa,
(Mas
voaremos no céu em carne e osso,)
non torneremo più...
(Não
voltaremos mais...)
na na na na na
e senza fame e senza sete
(E sem
fome e sem sede)
e senza ali e senza rete voleremo via.
(E sem
asas e sem rede voaremos para longe.)
Così la donna cannone,
(Assim a
mulher bala)
quell'enorme mistero volò
(Aquele enorme mistério voou)
tutta sola verso un cielo nero nero s'incamminò.
(Sozinha
para um céu escuro caminhou.)
Tutti chiusero gli occhi nell'attimo esatto in cui sparì,
(Todos
fecharam os olhos no instante exato que desapareceu,)
altri giurarono e spergiurarono che non erano stati lì.
(Outros
juraram e perjuraram que não estavam lá.)
E con le mani amore, per le mani ti prenderò
(E com as mãos, amor, vou te pegar)
e senza dire parole nel mio cuore ti porterò
(E em silêncio, ao meu coração te levarei)
e non avrò paura se non sarò bella come dici tu
(Não terei medo se não sou bonita como diz)
ma voleremo in cielo in carne ed ossa,
(Mas voaremos no céu em carne e osso,)
non torneremo più...
(Não
voltaremos mais...)
na na na na na
e senza fame e senza sete
(E sem
fome e sem sede)
e senza ali e senza rete voleremo via.
(E sem
asas e sem rede voaremos para longe.)
Diário do futuro – dia 72
O Zuka me
propõe amizade com pessoas que sempre foram amigas. Vou conferir e descubro que
fomos desamigados. Na dúvida não peço amizade de novo, vai que o excluído fui
eu... É raro, mas raro mesmo eu bloquear alguém. Se não curto nem comento, o
algoritmo se ocupa em não mostrar mais. Eu acho. Claro que tem quem me
desamigou, mas sou distraído demais para perceber. O chato mesmo é quando
encontro comentário não respondido em postagem velha. Ah, Zuqinha!
*
— Por quê
quando vou escrever lockdown eu sempre acho que é com a?
— Escreve
lókidáum que não tem erro.
—
Quarentena me parece longo demais. Não quero ficar em casa quarenta dias.
—
Lockdown é muito down. Poderia ser locklight, softlock, softrock...
— Nós já
temos um destruidor de ânimos em casa, não precisamos de algo down.
— Esse é
o verdadeiro blackstorm! O nosso Blackdown.
— Que
lockdown que nada! Esse é lôkobrown.
— E se
invés de lockdown você escrevesse zona vermelha?
— Não vou
responder é nada! Vou mudar de assunto e falar de comida.
Diário do futuro – dia 73
Em março
do ano passado eu escrevia o primeiro “Diário do fim do mundo”, esperando que a
quarentena terminasse num par de meses e que tudo voltaria ao normal. Passamos
diversas fases de medidas de contenção da pandemia, acompanhamos erros e acertos,
teorias furadas, negacionismos, a chegada das vacinas – Viva a Ciência! – e
perdemos muito. Perdemos pessoas, rotinas, tempo e paciência. Só não perdemos a
esperança.
Hoje nos
preparamos para voltar à situação daquele dia. A partir de amanhã estaremos
trancados em casa novamente. Não aprendemos nada. Não aprendemos com a China,
que trancafiou milhões de pessoas em casa. Não aprendemos com a Nova Zelândia,
que no primeiro sinal decretou uma quarentena que nos deveria servir de lição. “Ah,
mas a Nova Zelândia é uma ilha...” Oras, toda cidade é uma ilha. Araraquara é
uma ilha e o isolamento da cidade está provando que mesmo em meio ao caos do
país, é possível tomar medidas eficazes.
No dia 1º
de janeiro eu estava cheio de bons propósitos a ponto de rebatizar essa escrita
de “Diário do futuro”, acreditando que esse 2021 seria um ano muito melhor.
Bastaram 74 dias para que o meu otimismo fosse engolido pela cratera da
realidade. A campanha de vacinação se arrasta por aqui e por todo lugar. A
vacina é a única solução para a espécie que se autointitula “evoluída”, mas que
não é capaz de viver no coletivo. Basta o anúncio de maior restrição da
circulação para que os bares e restaurantes italianos fiquem entupidos de
pessoas evoluídas, que querem aproveitar o último gostinho de liberdade. Para
alguns desses – e para os que os cercam – será realmente o último. Acompanho as
notícias brasileiras de praias lotadas, bares que burlam as medidas, festas
clandestinas e o número de vítimas que só faz crescer. Tudo isso tem um efeito
devastador em quem se tranca em casa, em quem adota as medidas de proteção, em
quem se preocupa. Tenho andado muito abalado com toda essa situação, só posso
torcer e esperar.
Esse
diário termina aqui. O futuro em que acreditava só acontecerá quando a
humanidade se reconhecer como um único organismo, que as nossas atitudes
individuais, boas ou ruins, têm efeito no planeta. O diário passa a ser
esporádico, quando a vontade de partilhar algo positivo aparecer, mas já não
será um compromisso cotidiano.
Fique
bem.