Carta da Itália
A Itália vista por um brasileiro. As diferenças culturais, descobertas e sabores, com uma pitada de bom humor (às vezes).
Sunday, June 04, 2023
Trilha sonora italiana - Pino Daniele - Napule è
Tuesday, March 07, 2023
Parmigiano Reggiano x Grana Padano
A confusão começou
com uma lei de 1954 que instituiu as denominações dos muitos queijos produzidos
no território italiano. Até então o termo “grana” era muito abrangente,
apesar de designar somente os queijos de leite de vaca produzidos com técnicas
similares, cujo produto era um queijo maturado de pasta granulosa (daí o nome grana),
típicos da Planície Padana. Foi então solicitado o reconhecimento da
denominação de origem Grana Padano, por ser esta a que melhor representava a
vasta região geográfica dos diversos tipos de queijo mais ou menos iguais.
Qualquer produtor
que desejasse usar o termo grana passo a ter que submeter-se às regras
de produção do Consórcio Grana Padano DOP (Denominação de Origem Protegida),
respeitar todas as características e obedecer ao processo de produção, além de
situar-se nas zonas tradicionais. A verificação, controle periódico e
autorização do uso do termo ficam a cargo do Consórcio
de Tutela do Queijo Grana Padano, que é muito rigoroso. Por outro lado, o duque
de Parma, Ranuccio Farnese I, em 1612, oficializou a denominação de origem dos
queijos produzidos numa zona que compreendia Parma e outras poucas localidades
como “Queijos de Parma”. O Grana Padano, por sua vez,
é produzido numa área muito mais ampla, abrangendo diversas províncias das
regiões Piemonte, Lombardia, Emilia-Romanha, Vêneto e Trentino Alto-Adige. Existem
outros queijos grana além dos dois mais famosos, só não podem usar partes das
marcas Grana Padano e Parmigiano Reggiano.
Fora isso, existem
pequenas e sutis diferenças entre os dois queijos italianos mais consumidos: O
Parmigiano leva somente leite, coalho e sal. O Padano tem que adicionar o
conservante lisozima (descoberto por Alexander Fleming, o mesmo que descobriu a
penicilina). Isso porque aos produtores do Padano é permitido o uso de forragem
ensilada, que pode desenvolver bactérias, o que não acontece com o Parmigiano,
que só permite o uso de forragens frescas ou secas. Mas a grande diferença
entre os dois é o local de produção. Mesmo entre os diversos produtores do
Parmigiano, em número infinitamente inferior aos do Padano e concentrados numa
área também muito menor, as diferenças existem. E no Padano, então, nem se
fala. Um queijo produzido com leite de vacas alimentadas com feno fresco das
montanhas, no período da transumância, é diferente do queijo produzido na
planície, por exemplo. Repare na existência de um número impresso a fogo nas
formas dos queijos grana. Esses números indicam o queijeiro que o produziu.
Mas tudo isso traz diferenças sutis, perceptíveis somente por quem opera no
setor ou com os sentidos de olfato e gosto muito, mas muito refinados.
Um teste proposto durante
encontros com clientes, quando então eu era gerente de produtos frescos numa
cooperativa de compras de uma rede de supermercados, era a de promover testes
de degustação cega (não fui eu que inventei o teste, apenas tive que seguir uma
tradição antiga). Ou seja, os participantes não sabiam o que estavam provando.
Nessa prova mostrávamos duas formas, uma de Grana Padano e outra de Parmigiano
Reggiano e cortávamos na frente deles. Escolhíamos um pedaço de cada forma e, a
partir daí, dividíamos os pedaços escolhidos protegidos dos olhares de todos.
Em seguida servíamos pedaços retirados do centro de um dos dois queijos. Os
degustadores deveriam preencher um breve questionário sobre as características
do que tinham acabado de consumir. Um pouco de água e pão para limpar a boca e
a segunda rodada começava. Servíamos, então, lascas do mesmo pedaço, mas da
parte mais próxima à crosta e a avaliação se repetia. Não havia nenhum mal-estar,
pois os resultados nunca eram divulgados. Resumo: nos oito anos em que
trabalhei lá, nenhum italiano demostrou saber diferenciar um do outro, mesmo
consumindo o produto – provavelmente – todos os dias.
Portanto, anote aí:
Parmigiano Reggiano e Grana Padano são queijos do tipo grana. Agora, o vinho...
Observe as respectivas zonas de produção no mapa.
Tuesday, January 17, 2023
INVERNO?
A
primeira neve de novembro não caiu.
Dezembro
passou e não trouxe o frio.
Janeiro,
coitado, é um outono atrasado.
Prometeram
que iria nevar.
Promessas,
quem há de acreditar?
Quando
a noite acorda a luz da rua
Parece
que chegou o inverno.
Esclarecido
pela luz da Lua,
Lembro, julho será um inferno.
Quando
o calor chegar
E
a seca inundar a plantação,
Pode
apostar:
Vai
ter migração.
Nos
leitos secos dos rios
Mensagens
em rochas irão brotar,
Contando
de tempos sombrios,
E
as gentes irão chorar.
Sobra
rima.
Falta
solução.
Friday, December 16, 2022
A seca no planeta Piacenza
Os esquimós saberão o nome da neve desses dias. É uma neve fininha, fininha, que cai de madrugada. De tão fina, derrete assim que toca o asfalto. “Chuviscou”, dirão os que se levantam depois das sete.
Nas
primeiras semanas de novembro ainda dormíamos com ventilador. O resto do mês
foi reservado ao inverno, prepotente que não nos permitiu o outono. E agora,
neve. Fininha, mas sempre neve é. Ah, e ainda tem o vento. Aquele vento pelo
qual rezamos no verão e que chega sempre atrasado. Esta semana a temperatura
subiu e atingimos os oito graus positivos. Não sob o sol, que não dá as caras
tem dez dias. Chás, vontade de chocolate quente e aquecimento ligado.
Piacenza
não é uma cidade de pouco mais de cem mil habitantes. Tampouco uma região.
Piacenza é um mundo à parte, capaz de sobreviver isolada do planeta. Se a
neblina autóctone decidisse isolar a província perenemente, ainda assim
Piacenza sobreviveria. Sim, a neblina – assim como não poucas uvas – são
produtos exclusivos daqui.
O
resto do mundo deveria viver como em Piacenza e não teríamos os problemas
climáticos que enfrentamos hoje. Os bosques são preservados e a caça é
regulamentada (não que eu aprove a caça, não aprovo); mel não falta; a pecuária
de leite funciona a todo vapor; o pequeno agricultor é um dos pilares da
economia local; temos frutas e verduras frescas, queijos, grãos, carnes e
ensacados; o vinho, ...Ah, o vinho!
O
risco de ver tudo isso desaparecer, porém, tem assustado o povo daqui. Com o
verão invadindo o que deveria ter sido o outono as montanhas não congelam. O
frio chegou tarde. Se a temperatura não diminui no momento certo, a neve acaba
isolando a montanha que, desse modo não congela mais. Pode nevar o quanto for,
vai tudo derreter logo no início da primavera, privando o verão – e a
agricultura e o abastecimento das casas e... – de água. Os muitos riachos,
córregos e o nosso amado rio Trebbia permaneceram secos no verão passado. E, é
claro, a neve derretida toda de uma vez causou danos.
Caso
as montanhas não congelem, teremos que racionar água novamente. A seca aqui foi
braba, esse ano. Mais de duzentos dias sem chuva e nada de neve derretendo para
suprir as nascentes. Precisamos de água para o nosso mundo não perecer.
Por
tudo isso eu peço a vocês, que não fazem parte desse mundo perdido entre a
planície nebulosa e as montanhas vinícolas: não desperdicem água. Bebam vinho.
Friday, August 26, 2022
Gastronomia e música estrangeira
Absorver uma nova cultura é fascinante, mas demanda tempo. Passei algum tempo aprendendo a comer pisarei e fasö e tortelli di zucca. Confesso que faltou coragem com a picul ad caval.
Pisarei
e fasö é o prato piacentino por excelência.
Como manda a tradição, é uma receita pobre, de aproveitamentos. Pisarei
é uma massa à base de pão velho e fasö é feijão, no dialeto
piacentino. Servido com abundante molho de tomate com cebola e toucinho de
porco, está presente em todas as casas e nas muitas festas espalhadas pela província
(ô povo pra gostar de festa!). Picul ad caval
é carne moída de cavalo com cebola, cenoura, pimentão e, é claro, o “ouro
piacetino” pistà ad grass: toucinho batido com alho e salsinha. Já os tortelli
di zucca é uma massa recheada com abobora, ricota, grana, salvia, manteiga
e noz moscada. Nos casos dos pisarei e fasö e tortelli di zucca,
me incomodava o sabor adocicado. Aprendi a gostar e hoje procuro nas festas. Já
a picul ad caval não tenho vontade nem coragem de comer carne de cavalo.
Pelo
lado cultural, também tive um início de relação conflituosa com Lucio Battisti,
o músico que, segundo David Bowie, era o maior cantor pop do mundo, junto a Lou
Reed. Battisti é endeusado por aqui.
Merecidamente, concordo agora.
Falecido
em 1998 com apenas 55 anos, vendeu 25 milhões de discos. Tendo escrito,
composto e produzido para outros músicos, exerceu enorme influência no que veio
depois. A parceria com Mogol – grande autor do universo musical italiano
(lembra de “Minha História” do Chico?) – foi o auge da sua carreira.
Pesquise
Lucio Battisti nessa rede, se tiver curiosidade. Vale a pena. Levei um tempo
para dizer isso, mas digo com sinceridade: vale a pena, Lucio Battisti vai ser
sempre um monstro sagrado da Música. Da Itália e do mundo.
Deixo
aqui a letra e a tradução (minha) de uma das músicas que gosto. Não a que mais
gosto, pois sou avesso a listas de preferências.
Emozioni
Lucio Battisti e Mogol
Seguir con gli occhi un
airone sopra il fiume e poi
Ritrovarsi a volare
E sdraiarsi felice sopra l'erba ad ascoltare
Un sottile dispiacere
E di notte passare con lo sguardo la collina per scoprire
Dove il sole va a dormire
Domandarsi perché quando cade la tristezza in fondo al cuore
Come la neve non fa rumore
E guidare come un pazzo a
fari spenti nella notte per vedere
Se poi è tanto difficile morire
E stringere le mani per fermare qualcosa che è dentro me
Ma nella mente tua non c'è
Capire tu non puoi
Tu chiamale se vuoi emozioni
Tu chiamale se vuoi emozioni
Uscir dalla brughiera di
mattina dove non si vede ad un passo
Per ritrovar se stesso
Parlar del più e del meno con un pescatore per ore ed ore
Per non sentir che dentro qualcosa muore
E ricoprir di terra una piantina verde sperando possa
Nascere un giorno una rosa rossa
E prendere a pugni un uomo
solo perché è stato un po' scortese
Sapendo che quel che brucia non son le offese
E chiudere gli occhi per fermare qualcosa che
È dentro me
Ma nella mente tua non c'è
Capire tu non puoi
Tu chiamale se vuoi emozioni
Tu chiamale se vuoi emozioni
(Tradução)
Seguir com os olhos uma garça sobre o rio e depois
Descobrir-se voando
Deite-se feliz sobre a grama ouvindo
Um descontentamento sutil
E à noite passear com os olhos a colina para descobrir
Onde o sol vai dormir
Perguntar-se por que quando a tristeza bate fundo no peito
Por que a neve não faz barulho?
E dirigir como um louco sem farol à noite para ver
Se é afinal tão difícil morrer
E apertar as mãos para deter algo dentro de mim
Mas que na tua mente não há
Entender você não pode
Tu chame-las se quiser, emoções.
Tu chame-las se quiser, emoções.
Sair do pântano pela manhã, onde não se vê um passo
Para reencontrar-se
Jogar conversa fora com um pescador por horas a fio
A fim de não sentir que por dentro algo morre
E cobrir uma muda verde com a terra esperando que
possa
Um dia nascer uma rosa vermelha
E socar alguém só porque foi um pouco rude
Sabendo que o que machuca não são as ofensas
E fechar os olhos para deter algo dentro de mim
Mas que na tua mente não há
Entender você não pode
Tu chame-las se quiser, emoções.
Tu chame-las se quiser, emoções.
Monday, April 25, 2022
Bella Ciao - 25 de abril
Hoje, 25 de abril, comemora-se a liberação italiana do
nazifascismo. É uma data simbólica, escolhida por ter sido nesse dia, em 1945,
que se iniciou a retirada dos soldados alemães e da República de Salo de Milão
e Turim, como consequência do rompimento da “Linha Gótica” por parte dos
aliados e da resistência italiana.
Neste feriado, assim como no dia 1° de Maio, por toda
a Itália ouve-se aquela que se tornou o hino da Resistência: Bella Caio.
Bella Ciao é uma canção que se tornou popular vinte
anos após a Segunda Guerra e não chegou a ser cantada pela Resistência italiana,
durante a guerra.
A melodia, na verdade, tem origens mais antigas,
aparentemente aproveitando-se de partes de outras músicas e adaptando-as. Em
1919, o acordeonista Mishka Ziganoff (Odessa, Ucrânia, 18889 – Nova Iorque,
EUA, 1967) gravou o disco “Klezmer-Yiddish swing music”, no qual há uma peça com
uma melodia muito próxima à de Bella Ciao, mas não teria sido a única a fornecer
inspiração àquela italiana. Do mesmo modo, a letra sofreu – e sofre ainda,
dependendo de quem a canta – modificações no tempo. Há, ainda, a versão cantada
pelas mulheres emilianas (da região Emilia-Romagna) que iam trabalhar nas plantações
de arroz na região Piemonte. Nessa versão, “bela ciao” faz alusão ao fato de
perderem a juventude no trabalho no campo. Em poucas palavras, não existe
nenhum registro da origem da música. É um canto popular.
O certo é que Bella Ciao é uma tradição inventada. A
letra que a tornou famosa foi pensada para unificar as lutas contra os
invasores, não faz nenhuma referência a lutas de classes, partidos políticos ou
guerra específica, justamente para não excluir qualquer parte. Tornou-se
célebre a partir de 1964, após um festival de música em Spoleto, na província de
Perugia, região da Úmbria, quando a canção abriu o festival na versão camponesa
e foi apresentada na versão partigiana (a resistência formada por civis),
no final.
A letra mais cantada é a que segue.
Una mattina mi sono alzato
O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
Una mattina mi sono azalto
E ho trovato l'invasor
O partigiano, portami via
O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
O partigiano, portami via
Ché mi sento di morir
E se io muoio da partigiano
O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E se io muoio da partigiano
Tu mi devi seppellir
E seppellire lassù in montagna
O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E seppellire lassù in montagna
Sotto l'ombra di un bel fior
Tutte le genti che passeranno
O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
E le genti che passeranno
Mi diranno "che bel fior"
È questo il fiore del partigiano
O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao
È questo il fiore del partigiano
Morto per la libertà
È questo il fiore del partigiano
Morto per la libertà
* * *
A seguir, a versão camponesa.
Alla mattina appena alzata
o bella ciao bella ciao
bella ciao ciao ciao
alla mattina appena alzata
in risaia mi tocca andar.
E fra gli insetti e le zanzare
o bella ciao bella ciao
bella ciao ciao ciao
e fra gli insetti e le zanzare
un dur lavor mi tocca far.
Il capo in piedi col suo bastone
o bella ciao bella ciao
bella ciao ciao ciao
il capo in piedi col suo bastone
e noi curve a lavorar.
O mamma mia, o che tormento!
o bella ciao bella ciao
bella ciao ciao ciao
o mamma mia o che tormento
io t’invoco ogni doman.
Ed ogni ora, che qui passiamo
o bella ciao bella ciao
bella ciao ciao ciao
Ed ogni ora, che qui passiamo
Noi perdiam la gioventù
Ma verrà un giorno che tutte quante
o bella ciao bella ciao
bella ciao ciao ciao
ma verrà un giorno che tutte quante
lavoreremo in libertà.
*
* *
E
a gravação de 1919.
Wednesday, February 16, 2022
Embaçando o mundo
Flutuava o ano de 1.000.0218 a.C. quando, aqui pertinho, naquilo que um dia viria a ser parte da província de Piacenza, mas que ainda eram apenas uns pontinhos de terra naquele mundaréu de água, foi inventada a neblina.
Hoje somos os maiores exportadores de neblina do
mundo. E planejamos viagens espaciais para levá-la muito, muito além.
Se você vive onde não há neblina, não sabe o que está
perdendo. Também não se perderá, que é a parte divertida. A neblina modifica a
geografia, esconde os sorrateiros, camufla sonhos, prega sustos, abraça
suspiros.
Nem todo outono e inverno tem neblina. Aliás, ela está
ficando cada vez mais rara. A exceção foi esse ano, quando ela começou em
novembro e ainda nessas madrugadas de fevereiro vem nos visitar. Gosto de ir às
montanhas e colinas da província em dias de neblina. Do alto vê-se todos os
vales cobertos por um estrato branco e o céu limpo acima da vida lá embaixo,
menos frenética que o normal. Prefiro neblina de noite, quando saio para fumar
um charuto e me divirto com os sustos. Meus e dos outros.
Dirigir com neblina é mais perigoso que com neve. Na
neve o motorista sabe que tem que ir devagar e obedecer às práticas
aconselhadas. Além dos pneus de neve. E, se não souber, a viagem acaba
rapidinho. Com a neblina a única prática segura é deixar o carro na garagem.
Hoje amanheceu com uma neblina braba. Felizmente a neve de ontem já derreteu. Aqui na cidade, que nas colinas e montanhas o frio preserva a neve. Vou sair e brincar com a geografia, sonhar com alguma praia ensolarada e suspirar. Escondido na neblina.