Terminei a leitura do livro “La cucina italiana
non esiste”, de Alberto Grandi e Daniele Soffiati. Grandi
é professor de história da alimentação na Universidade de Parma. Soffiati é um
escritor e crítico de cinema, além de apresentador, junto a Grandi, do podcast
“DOI – Denominazione di Origine Inventata”, mesmo título do livro de Grandi,
publicado no Brasil como “As mentiras da nonna”. Eles esclarecem que a cozinha
italiana é boa por ser recente, e não por contar com séculos de tradição,
apresentando uma perspectiva diferente da ideia estática de “autenticidade”:
“A cozinha italiana é uma invenção recente e uma mentira do marketing.”
Existem
ressalvas, como o queijo do tipo grana (Grana Padano, Parmigiano Reggiano,
Trentingrana e Granone Lodigiano, entre outras marcas), mas uma coisa é afirmar
que a região produz queijo a séculos, outra coisa é dizer que o queijo do tipo grana
tem mil anos.
Com
uma bibliografia de respeito, explicam como a migração às Américas no fim do
século XIX representou um papel importante na formação de uma identidade
gastronômica italiana. A maioria dos emigrantes eram camponeses pobres e com
fome, que não compartilhavam uma cultura comum. Sequer a língua era a mesma,
pois os dialetos eram (e são) diferentes. Foi através da comida que os
italianos se reconheceram como povo. E aí entra em cena Pellegrino Artusi (1820/1911)
e as muitas edições do seu livro “A ciência na cozinha e a arte de comer bem”,
com receitas que circulavam entre as famílias mais ricas. Receitas que eram
modificadas a cada nova edição por sugestões das leitoras, que também sugeriam as
novas receitas adicionadas. O livro (que ultrapassou um milhão de cópias
vendidas, um verdadeiro best seller para um livro publicado pela
primeira vez em 1891) foi distribuído pelo Círculo Dante Alighieri aos italianos
expatriados e os levou a descobrir as receitas que nunca haviam experimentados
na Itália. Contudo, é preciso ponderar que uma receita publicada é apenas uma
pedra no quebra-cabeça da história culinária. Ela pode, por exemplo, ter
servido apenas para mostrar a habilidade de um chef da época, e não significa
que a população local, desnutrida e esfomeada, tivesse acesso a ela.
Um
argumento divertido é o que trata de inventar referências remotas para temperar
receitas e produtos (queijos, embutidos...): “Ah, mas o romanos já comiam a
feijoada” é somente uma das tantas lendas que se ouve por aqui. Lendas que
Grandi e Soffiati desmistificam. Alguns exemplos:
·
O panetone não foi
inventado por um ajudante de cozinha chamado Toni, em 1495. Foi o confeiteiro milanês
Angelo Motta, em 1919, a modificar a receita daquele pão doce simples, adicionando
as frutas cristalizadas e passas e alterando a fermentação para que ficasse
alto e macio. Do sucesso da confeitaria, nasceu a primeira fábrica do doce,
denominado Panettone Motta. O amado panetone foi desenvolvido e distribuído
graças a industrialização.
·
A Cipolla Rossa di
Tropea IGP é uma cebola com casca e estrias internas roxas. A Indicação
Geográfica Protegida (IGP) é um selo que pode ser dado a produtos com pelo
menos uma operação executada no território. Pois a cebola mais cara dos
supermercados italianos cumpre essa regra: o porto e a estação ferroviária
locais recebem a cebola colhida alhures, a embala e vende com a etiqueta e o
selo IGP. Na cidade de menos de seis mil habitantes de Tropea, na Calábria, não
se planta cebola. De nenhuma cor. Um outro produto muito consumido por aqui, a
Bresaola Della Valtellina IGP, da tradicional marca Rigamonti, foi adquirida
pela brasileira JBS e é produzida com carne 100% brasileira [o caso da bresaola
é informação minha e não está no livro].
·
A pizza, de origem
árabe, era consumida em Nápoles como comida de rua, nos lugares mais mal
frequentados da cidade. Não existia receita, cada um fazia como podia,
utilizando o que tinha de mais barato, modificando o pouco recheio quase
diariamente. Apesar disso, o primeiro estabelecimento a produzir e vender exclusivamente
pizza abriu em Manhattan. Os italianos que retornavam se assustavam com a
ausência de pizzarias na Itália.
Ainda evidenciam, os autores, o esforço em ligar a qualidade ao
território, à tradição e à capacidade transformar cada pedaço de terra italiano
em um único lugar possível para determinada receita, queijo, vinho, hortaliça,
embutido, etc.
Achei o livro muito mais didático e menos polêmico que o anterior, “DOI
– Denominazione di Origine Inventada”: Alberto Grandi é hostilizado desde o
lançamento do “DOI...” Chegaram a pedir o exílio dele, apesar dos muitos professores
e profissionais entrevistados no podcast, se mostrarem menos indulgentes com o
marketing em detrimento da história que Grandi. A invenção da tradição
tornou-se a tradição da invenção.
A última lição é a que eles deixam claro desde o início: a cozinha
italiana existe e é ótima, mas fruto da inovação, e não de receitas com séculos
de tradição. Como todas as outras.
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