Thursday, November 11, 2004

Notícias De Um Outono Que Passou

Caros e Caras,
Paz e saúde!

A professora ensina a não chutar os montes de folhas que se formam pelas calçadas, no outono. Eles podem servir de ninho para quatis e outros roedores noturnos que se mudaram para as cidades. A caminho da escola, nenhum monte de folhas sobrevive à diversão predileta da garotada nesse período: chutá-los. É o início do outono italiano e as árvores ficam vermelhas. Depois marrons. Depois nuas, no inverno. E dormem letárgicas até a primavera.

O Etna se agitou um pouco mais que o habitual há três anos e foi notícia. De repente, explodiu e deu espetáculo. No dia seguinte, terremotos ao seu redor fizeram os especialistas declararem que os dois eventos não tinham relação entre si. Outra erupção seguida de mais terremotos. Os especialistas insistiram: não tem nada a ver. Os habitantes e a gente mais velha declararam que eram os especialistas que não tinham nada a ver. Esperava-se que o vulcão se fizesse vivo outra vez, mas ele voltou ao seu sono profundo, roncando e ameaçando, mas manso como um bebê no berço.

Pelas ruas, as pessoas já mudaram o guarda-roupa: no lugar das roupas claras e leves, jaquetas em meios-tons ajudam a mudar o clima interno da gente nos bares, que toma o café de forma sóbria e sombria. A alegria continua somente nas faces dos imigrantes com sotaques variados. É uma gente alegre, mas não feliz.

As notícias de guerra fizeram estremecer com a idéia de que estamos no meio do caminho entre o Oriente Médio e os EUA. O primeiro-ministro italiano reafirmava a necessidade da Europa apoiar incondicionalmente a “pacificação” do Iraque. Os no-global - preferem new global - acham que o primeiro-ministro não tem nada a ver.

Um cheiro de castanha assada (cald’arroste) invade as curtas tardes de sol e ouve-se a notícia de que a neve já está caindo nas cidades acima dos mil metros, além do frio presenteado pelo vento batizado com o nome da sua origem: Vento da Sibéria.

Há três anos, as cinzas do Etna alcançaram a Síria, como troco pela areia do Saara que chega a atingir Roma no verão (além dos laranjais na Califórnia) e a polícia aproveitava para apertar o cerco nas informações sobre os muçulmanos residentes na Itália, sem fazer alarde. Havia terminado o prazo para a regularização dos imigrantes clandestinos. A sanatória servia somente para aqueles que trabalham como domésticos. A quantidade de estivadores declarados como babás foi hilariante. Hoje, tudo parece ter voltado a ser como antes, diante da pressão por mais mão-de-obra barata, como alternativa para reduzir os custos das empresas italianas e manter a competitividade e o crescimento.

“O futebol mais bonito do mundo” (sic) fazia mais notícia pelo que acontece fora do campo que dentro. E dividia os noticiários com as matérias sobre os terremotos, deixando a crônica policial em segundo plano. Os desembarques semanais de clandestinos já nem eram noticiados.

Os herdeiros do trono da Itália, exilados na Suiça às custas do governo, receberam permissão para tornar à terra natal. Declararam que gostariam de ser tratados como cidadãos comuns, mas foram flagrados exigindo avião, carro e escolta oficial. Negaram tudo.

Do outro lado do oceano, Bush acendia o pavio do barril de pólvora que é a Europa. As pessoas se controlavam com o canto dos olhos pelas ruas. Os muçulmanos pediam respeito e tentavam, em vão, esclarecer que a religião deles não é sinônimo de fanatismo. Um prefeito de uma cidade italiana dizia que “a migração desse povo deve ser proibida, sob risco de se perder a pureza de uma raça.” Explicou que a Igreja ocidental é a única verdade que pode unir os povos, esquecendo-se da origem comum dos fundadores e dos Messias dessa e da outra igreja.

No verão o vento da Africa. No inverno, aquele da Sibéria. Durante todo o ano, desembarque de clandestinos no litoral. Africanos e europeus pobres. Os estivadores árabes são como os quatis, mas também não perdoam um monte de folhas. A Europa tornou-se um eterno terremoto e se prepara – há tempos! – para entrar em erupção, enquanto a maioria das pessoas acha que simpatizar com os no-global é suficiente. Letárgicos como as árvores no inverno.

E eu acho que o Bush por mais quatro anos não tem nada a ver.

Ciao.

7 comments:

Anonymous said...

eu tb acho, Allan. E o Arafat, que eu achava ter alguma coisa a ver, morre e sua morte nos deixa preocupados com o que acontecerá. E aqui em nossa terra, tão grande, hordas de sem-teto e sem-terra ficam indo de cá pra lá, procurando um chão, como os palestinos, nômades em chão tão grande. O que o poder não faz com os seres humanos! Não só corrompe, mas destrói qualquer traço de humanidade.

maray

Anonymous said...

Allan,
Tà bom, postarei receitas sò uma vez por semana...
Voce reclama, mas eu sei que quando chega là, pega teu caderninho e anota todas...
Fez o risotto de abobrinha que deixei aqui pra voce?
Abraços
Meire
http://pensamentosepoesias.blog.tiscali.it

Claudio Costa said...

O terremoto está por toda parte: a instabilidade social promovida pela desigualdade (será que tem jeito?) ruge entre as nações. Meio pessimista - meio otimista, vou vivendo, matutando como bom mineiro: "Esse nosso mundo tá mesmo de pernas pro ar..." Ao mesmo tempo, acho que sempre esteve! Sei não...

Anonymous said...

"Pelas ruas, as pessoas já mudaram o guarda-roupa: no lugar das roupas claras e leves, jaquetas em meios-tons ajudam a mudar o clima interno da gente nos bares, que toma o café de forma sóbria e sombria. A alegria continua somente nas faces dos imigrantes com sotaques variados. É uma gente alegre, mas não feliz."

Engraçado... Quando faz frio eu fico mais feliz, mas nem sempre mais alegre. Olha, a cada parágrafo que lia eu ia pensando em algo para comentar. Mas textos bons como o seu são, para mim, difíceis de comentar. Além do mais, eu acho faço uns elogios meio ridículos, bobos.
Acontece comigo uma coisa curiosa: sempre que ouço alguém falar sobre "lá fora" (mesmo que o "lá fora" seja dentro do Brasil), eu acho que estou diante de um lugar mais interessante do que aquele em que vivo. Se bem que, no fundo isso só se aplica a BH mesmo, minha terra natal. Ô vontade de virar estrangeira de novo! (pode até ser estrangeira no Brasil mesmo)
Elogio bobo mas sincero: seu texto é lindo.
Abraços,
Mônica (do Monicômio)

Leila Silva said...

Allan,
Puxa esse texto esta' lindo...Muito mesmo. Voce foi tratando de temas atuais com uma tal poesia.
Gente que e' alegre mas nao e' feliz? Interessante, mas e' quase impossivel ser 'feliz' nesse mundo, nao? Sei la, as vezes eu penso que e' quase egoista ou fazer-se de cego. Eu nao posso ser feliz enquanto tem um Bush no poder arrebentando com tudo e com todos, enquanto religiosos muculmanos ou evangelicos (nos USA e Brasil) querem impor a maneira deles de ver o mundo. Nao...nao, agora a alegria e' uma coisa de momento, a gente esquece que esta tudo uma merda e vai em frente, ri, toma umas....
Quanto ao comentario que vc deixou la nos meus cadernos sobre ler o Pu Songling em italiano, bom, eu tenho que te encorajar porque estou completamente apaixonada. O titulo que tenho aqui em italiano e':Fiabe Cinese L.N Giura. Milan, 1926. Espero que vc encontre uma edicao mais moderna e, se encontrar, por favor, me avise.
Um abracao
Leila

Anonymous said...

Olá, amigo. As palavras se calam quando o assunto é a velha e saturada humanidade. Infelizmente a raça humana é uma das espécies que vai demorar para entrar em extinção. Ou não, talvez. Quem disse que o mundo não sai de órbita??? Abs sanguinolentos.

Nora Borges said...

Allan, você se superou neste post. Que lindo, moço!
Vou copiar, imprimir... quero ler com calma e devagar mais umas dez vezes!!!!
beijo e beijos.