A Forma da Água (Record, 2002), Guinada na Vida (Record, 2005) e A Lua de Papel (Record, 2007) são três livros de Andrea Camilleri traduzidos em português, presentes de um amigo quando estive no Brasil em 2024. A excelente tradução é da jornalista e experiente tradutora Joana Angélica D’Avila Melo. Sempre tive receio de ler obras traduzidas que eu já tivesse lido na versão original e confesso que tive uma surpresa muito positiva. E matei uma velha curiosidade: como se traduz uma obra escrita num dialeto que não existe?
Andrea Calogero Camilleri (1925-2019) era siciliano de Porto Empedocle, na província de Agrigento. Escritor, roteirista, diretor, dramaturgo e mais uma infinidade de qualidades que tomariam muitas linhas e eu acabaria me perdendo. O certo é que ficou doze anos sem publicar um livro. Foi seu pai, num leito de hospital, quem o convenceu a voltar a escrever, depois de ouvir uma ideia que o filho tinha para um novo romance, mas que não se achava capaz de fazê-lo em italiano. O velho, então, sugeriu que ele escrevesse como o havia contado, no dialeto siciliano deles. A luta para fazer com que o texto fosse entendido por todos e recheado da cultura local, o obrigou a inventar o vigatês, o dialeto da cidade fictícia do Comissário Montalbano. Aliás, Vigata faz parte da província de Montelusa, outra cidade siciliana inventada. Dessa vez, por Pirandello. É uma língua mais interessada em guiar o leitor por sons e semelhanças com o italiano, que simplesmente misturar dialetos com a língua oficial. Enfim, um trabalho doido. “Não se trata de encaixar palavras em dialeto dentro de frases estruturalmente italianas, mas sim de seguir o fluxo de um som, compondo uma espécie de partitura que em vez de notas utiliza o som das palavras. Para chegar a uma mistura única, onde não se reconhece mais o trabalho estrutural que existe por trás. O resultado deve ter a consistência da farinha fermentada e pronta para se tornar pão.”
Conheço muitos leitores seriais italianos que nunca leram um livro dele, por acharem complicado e cansativo ler em vigatês. Sugiro sempre que experimentem, que o texto é intuitivo e, se tiverem dificuldade, podem consultar o dicionário [dizionario] no site vigata.org . Depois de alguns livros, o dicionário tem pouca serventia. Partes dos textos é escrito em italiano, mas nem sempre são dominantes.
Certa vez, como exercício, escrevi um texto dividido em quatro capítulos no estilo camilleriano: “Partênope”. Deu uma mão de obra...!
A RAI, rede pública de tv italiana, produziu alguns episódios da saga. Camilleri imaginava Montalbano como um homem alto, magro e de bigode. Resmungou quando soube que o ator Luca Zingaretti seria o intérprete. Zingaretti não tem bigode, é careca, não é magro e tem 1,65 m de altura. Coincidentemente, foi aluno do escritor. Deixou-se convencer e gostou. Os romances precisaram ser adaptados à tv. Entre outras coisas, os palavrões e o dialeto desapareceram, mas o elenco é ótimo e deu conta do recado. Visível na RaiPlay, em italiano.
Voltando à tradutora, ela optou por esmerar-se no conteúdo, deixando a forma aparecer em algumas palavras “estranhas” salpicadas no textos. Ainda bem! Se ela quisesse entrar no espírito dialetal, teria que escrever um dicionário antes. O resultado é um trabalho impecável, capaz de capturar o leitor com a mesma força do autor. Se você não conhece o Comissário Montalbano, recomendo sanar essa lacuna.
São romances policiais (giallo, em italiano, que é a tradução italiana de amarelo, e é como são chamados os livros policiais aqui). Além disso, vai conhecer um pouco da cultura siciliana e se divertir um bocado. Crimes, a presença da máfia no quotidiano, amores e amantes, coincidências, interferências e pirraças entre órgãos da polícia. Tem de tudo. Ninguém consegue largar o livro antes do fim. Prepare-se para viciar e boa leitura.
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