Sunday, December 27, 2020

Diário de um mundo novo - parte 32

 Diário de um mundo novo – dia 218

A gargalhada histérica que a realidade deu na minha cara hoje foi triste. “Compra uma coxa de porco pro Natal.” Saí no sábado e revirei todos os supermercados da cidade. Nada de coxa ou ombro. Comprei um lombão, mas não é a mesma coisa. O lombo pode ser cortado em bifes grossos e congelado separadamente e eu uso nos diversos almoços na companhia do fiel Babão. Porém, em última caso, vai ser para o almoço de Natal mesmo. Deixo o serviço de hoje secando e vou atrás da coxa. Meio-dia e meia é o horário que os supermercados estão vazios e lá vou eu. E foi então que lembrei que o mundo acaba no dia 24. Pelo jeito, vai acabar mesmo. Se não houver um cataclismo, o povo vai morrer de tanto comer. Todos os supermercados lotados, o povo se engalfinhando, brigas por quem teria chegado primeiro ao caixa, carrinhos de compras abarrotados. Um terror. Como o governo decidiu por uma nova quarentena do dia 24 de dezembro ao dia seis de janeiro, todo mundo quer garantir que não vai faltar absolutamente nada. Claro que desisti. Amanhã bem cedo?

 

Fico vendo as praias, lojas, bares lotados no Brasil e fico com medo. Até a ausência de máscara em uso é idêntica à situação na Itália no verão passado. Com um quarto da população do Brasil, chegamos a ter, em setembro/outubro, picos de 45.000 contágios por dia. Humanos comportando-se como humanos.

 

Um detalhe: assim como no primeiro lockdown, os supermercados daqui permanecerão abertos.

 

Diário de um mundo novo – dia 219

Dia 27, o próximo domingo, começa a vacinação anti-Covid na Europa. Para sorte nossa, a Itália faz parte do continente e já estamos vibrando com a notícia. Inicialmente serão vacinados os profissionais de saúde e – acho – os da segurança pública; na segunda fase, adultos com mais de 80 anos; na terceira, dos 60 aos 79 e portadores de doenças crônicas. Depois as outras faixas. Estima-se que lá para outubro todos os italianos que queiram, estarão vacinados.

 

Ninguém sabe por quanto tempo os vacinados estarão imunizados. Diz-se que quem for detectado nos sensores dos aeroportos, terão que ter a temperatura medida nos termo-scanners na testa, para a desabilitação temporária do chip de G5, inserida com a vacina. Neste momento o senhor Bill Gates dará pulos de alegria, pois vai ganhar cinco dólares para reativar o chip. A grana vai servir para ele comprar a China, cujo preço já está acertado com os maotsétunguianos, vermelhos e amarelos.

 

O Shiva não vai precisar esperar a vez dele. Já avisou que quer ser o décimo-oitavo a ser vacinado. Só não abre mão do osso de canela de boi, congelado a menos oitenta graus e descongelado um dia antes. Eu pedi um chocolate Novi sabor gianduia e a Eloá, uma cerveja gelada. Duas, pois quando ela soube que vai tomar a cerveja na fábrica da Ginness na Irlanda, resolveu que vai dividir comigo. Quatro, negociei. A Bia e a Lu vão conosco. Claro que não vamos parar ali, mas só a primeira é grátis. Precisamos urgentemente: uma babá para o Shiva (não, ele não poder ir conosco. No Reino Unido, UK, não permite a entrada de pitbulls) e um médico para injetar glicose em quem entrar em coma alcoólica. Estamos negociando com a Beth. Ô tiazinha difícil! Está tentando nos convencer a substituir a Guinness por um gin com Dubonnet e uma rodela de limão e gelo. Nunca negociou com a nossa família, pobre anglicana.

 

Diário de um mundo novo – dia 220

Hoje foi um dia muito estressante. Cliente chamando na última hora como se eu pudesse resolver tudo no último minuto e eu, muito besta, vou lá e resolvo; não encontrei o tênis confortável para substituir o velho, que vou continuar usando enquanto ele não rasgar todo (por que será que eles não vendem calçados de skate no inverno?); correr de um supermercado a outro até encontrar o pernil e o ombro de porco que ela pediu. “Não era E, Allan, mas OU!”; passar na casa de ração para comprar mais da comida especial para o Shiva; abastecer o carro; receber um monte de telefonemas para dar dicas de como fazer tal cor, a dois colegas, a sugerir soluções de pequenos problemas que não são de minha competência; dar orçamentos em cantos diferentes (se eu cobrasse por orçamento...); manter a calma em meio ao trânsito caótico desse último dia de lojas abertas antes do lockdown...

 

Para falar a verdade, tudo começou logo cedo. Pisar em cocô de cachorro no jardim escuro às seis da manhã não me revolta. Faço alguma homenagem desonrosa ao tutor incivil, lavo a sola do velho tênis na grama e sigo em frente. Mas pisar no terceiro, aí sim me deixa com muita raiva. Isso aqui não deveria ser um país do primeiro mundo? Não quer recolher cocô de cachorro? Não tenha um cão, seu merda. Enquanto ele for vivo, vai ter cocô.

 

Não, deixa pra lá. Não é esse tipo de atitude que me estressou. Como se não bastasse o trânsito nas ruas, as filas enormes na frente das lojas, as sorveterias lotadas (e não dá para tomar sorvete de máscara), uma multidão nas ruas e todo esse frenesi comercial, ainda tive que aturar três – sim, isso mesmo, amizade: três! – negacionistas afirmando que eu não devo tomar vacina. Desde o telefonema do médico de um, pedindo pelamordedeus que não se vacinasse nem deixasse nenhum parente se vacinar, ao que afirmava que “a vacina da Pfizer não é segura, não se pode confiar numa farmacêutica, principalmente uma que deu prejuízo de trezentos bilhões de euros no mundo todo”, de um outro, até o último que citou um complô dos Iluminati para criar uma nova ordem mundial...

 

Não, basta. Por hoje chega. Vou deixar para lavar o carro na próxima segunda-feira, quando passaremos de zona vermelha à laranja, volto para casa, pego o inocente Shiva para um passeio, torcendo para pisar em merda de cachorro de novo.

 

Diário de um mundo novo – dia 221

Dia cinzento, menos gente na rua, mas muito mais do que deveria ter. Entregadores com caras de esgotados, carteiros trabalhando, carros demais nas ruas. Não deveria ser um lockdown? Deveria, mas o decreto autoriza, entre outras concessões visitas a parentes e amigos. Se o próprio governo não colabora...

 

Almoço com massa, jantar com pão, salame, queijos e vinho. Depois jogamos um desses jogos de detetive. O assassino era o amigo, por vingança e ganância. Ainda mandou um recado ao único que sabia ser ele o autor do crime. Vídeo chamada com a Lu, que festejava em grande estilo.

 

Fiz torta de ricota. Nosso café da manhã de Natal será doce.

 

Um doce Natal pra você também.

 

Diário de um mundo novo – dia 222

Choveu o dia inteiro. Nada de passeio ou de visitas. No final do dia a chuva virou neve e em chuva novamente. E continua chovendo. Deu saudades da Lu.

*

Teve anolini in brodo? Teve sim senhor. Pernil? Torta de ricota? Salames? Vinho? Sim, sim, sim e sim. Livros iniciados, que devagar também é pressa. Nos divertimos hoje com um outro jogo da Bia Nerd. Ganhei uma e ela ganhou a outra. Precisamos jogar de novo para a Eloá ganhar uma também. Tinha ladrão nas regras do jogo. Ladrão de verdade. Claro que eu iria ganhar a primeira. Não era pra passar a tarde jogando não? Uai, era pra fazer o que, então? Só faltou a Lu.

*

Enrolei para levar o sapeca para passear, esperando a chuva diminuir. Saímos com a neve caído. Usei a minha capa de chuva e o doposci (a bota impermeável) e voltei sequinho. Ele voltou com o capote encharcado. Sabe por quê? Porque eu não destruí a minha capa de chuva. Você acha que a Lu sairia debaixo dessa chuva?

*

Adivinha quem ficou todo elegante com a bandana amarela que ganhou do Papai Noel. Uma dica: não foi a Lu.

 

Diário de um mundo novo – dia 223

O Sol ainda não tinha iluminado o céu com seus tons laranja quando saímos para o passeio, o Shiva e eu. As ruas desertas, a cidade cochilando depois do dia de Natal. Nenhum cão latia, o barulho longínquo da ferrovia sequer se ouvia. Só o silêncio. Nessas horas tranquilas ficamos igualmente tranquilos, perdemos a noção do tempo e ele nem se preocupa em caçar algum ouriço. Gatos nos observam através das grades nas calçadas, esquivos, mimetizados na escuridão dos porões das habitações.

 

O primeiro carro passou. O segundo e o terceiro. O infinito vai clareando num azul tímido. A falta de nuvens deixa estrelas misturarem a luz artificial dos postes com o próprio brilho. Um cão finalmente late em alguma rua ainda na penumbra. Ele se agita, eu decido que podemos voltar. Da neve de ontem, só vimos o quarto carro coberto por uns dez centímetros brancos. Telhados, grama, alpendres, tudo limpo, lavado e levado pela chuva. Respirar esse ar é uma experiência sensorial que fica gravada para sempre.

 

Café, torta de ricota, risos, histórias, cochilada, comida perfumada, Spritz, cosquinhas. Assim foi nosso dia de Santo Estevão. E ainda é sábado.

 Diário de um mundo novo – dia 224

— Uma de vocês duas poderia, por obsequiosa cortesia, enfiar na cabeça oca dessa miniatura de mula que não pode destruir minha meia?

 

O cafuá do Shiva é uma caixa de surpresas. Um pé de meia nova, uma máscara anti-covid, uma toalha de mesa, um tapete do banheiro, um pedaço grande de outro tapete, pano de prato, calendário de 2021, caixas de papelão de todas as dimensões, papel, muito papel e uma infinidade de objetos não identificados. Tudo, com exceção do pedaço de tapete, meticulosamente triturados. A toca é limpa e esvaziada toda vez que o lixo impede a visão de quem está dentro. Dele, no caso. Isso pode variar entre uma limpeza de três em três dias e de duas em duas horas, depende do ânimo dele. Não é uma tarefa fácil. Ele fica sentado al lado com aquele olhar de “quê que cês tão fazendo, gente?”. A primeira almofadona durou pouco, mas chegamos a apostar que ele não destruiria a segunda. Afinal, tinha mais de dois anos que ele se aconchegava nela dentro do esconderijo. Perdemos.

*

Bia voltou para a casa dela planejando fazer uma semana vegetariana. Nesses dias pude constatar que o home working dela deve ser mais puxado que o trabalho presencial. Na empresa tem pausa para café, bate-papo com colegas e uma ou outra distração. Em casa ele só teve hora extra.

*

Fui obrigado a conferir o calendário para ter certeza de que hoje é o último domingo dessa semana.

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É isso! O Demolidor é um cruzamento de mula com hamster.

 

1 comment:

Eliana said...

Feliz Natal, Allan! Olha, fiquei pensando na torta de ricotta..preciso falzer algo doce. Dias escuros e chuvosos por aqui! A Bella chegou ontem à noite e só faltou derrubar a casa!
Imagino a loucura que não deve ter sido quando avisaram do lockdown por aí...mas que massada, hein...aqui temos pelo menos mais 3 semanas pela frente.
Pois é, né...a vacinação começou hoje em vários países...é...vc vai querer com chip ou sem chip? rs Aqui queimaram uma torre que seria usada para a transmissão de 5G. Falaram que era coisa do capiroto! Mas só agora?
Pelo que entendi, vão viajar é? Boa viagem e feliz Ano Novo aí pra todos!