Monday, December 14, 2020

Diário de um mundo novo - parte 30

 Diário de um mundo novo – dia 203

A lei da ação e reação é implacável. “Gentileza Gera Gentileza”. José Datrino, o Profeta Gentileza, bateu-se a vida toda para que cultivássemos a bondade e o amor pelos outros e pela natureza. O que você dá, você recebe. A arrogância e a violência só geram ódio e mais violência.

 

Sempre me senti desconfortável com quem pratica a solidariedade e sai alardeando. Neste período difícil, muita gente arregaçou as mangas e está indo pras ruas voluntariamente para fazer o possível por quem necessita, sejam humanos ou não. Um bom dia, um sorriso, uma moeda, um cobertor, um pouco de comida, uma palavra amiga. Tudo conta, tudo soma. E foi numa conversa com a nossa caçula que mudei de ideia. Não importa se o famoso fica mais famoso por arrecadar fundos para um ato de solidariedade. Não importa nem mesmo se ele vai vender mais e – por que não? – ganhar mais dinheiro. Não importa. Essa ação vai incentivar outros famosos a fazer o mesmo, vai gerar um movimento que ajude agora. Porque é agora que é necessário. Não deve importar a mim e já não importa mais. Importa para quem recebe. Que outros famosos façam o mesmo e criem um movimento contínuo. E que ganhem dinheiro.

 

Gentileza gera gentileza e ninguém precisa de ódio.

 

Diário de um mundo novo – dia 204

Agora é oficial: o período do Natal começou.

Panetone nos supermercados já deixou de ser exclusivo do mês de dezembro. A iluminação nas ruas foi colocada ainda em novembro, também não conta. Os primeiros presentes foram adquiridos no Black Friday – se bem que tem gente que compra o ano inteiro e guarda para o Natal. A comilança foi expandida para o período da quarentena, melhor fazer dieta. Então, o que realmente marca o início do período de Natal? Simples, a primeira vez no ano que a Mariah Carey canta “All I want for Christmas is you”. Tenho até medo de alguma rádio, por engano, tocar essa música em junho. Já pensou, neve em junho?

 

Bom, isso vale para o estímulo do lado comercial do Natal. Nesse 2020 temos muita gente imbuída no verdadeiro espírito do Natal.

*

Seis horas da noite, um breu danado, frio, vento gelado, uma multidão nas ruas. Muita gente fazendo compras, outros que acabaram de sair dos bares que reabriram, mas só até às seis e a maioria apenas batendo perna. Máscaras em todos os rostos. Gente, é inverno, tá frio. Vão pra casa, vão.

 

Diário de um mundo novo – dia 205

Para festejar o feriado, chuva, chuva, chuva, chuva. Chuva é melhor que neve. Levar o Shiva para passear na chuva é até melhor. Com quase ninguém na rua, ele fica mais relaxado. Quem sai com cachorro tem pressa de voltar para casa. Menos nós. Nós passeamos e passeamos, ele não liga. Vai cheirando tudo o que não tiver sido lavado pela chuva, as paredes secas dos prédios e um ou outro canto molhado. Deve ter passado um cão apressado antes. E ele estuda a condição de saúde, a idade, o que ingeriu. Minuciosamente. Às vezes decide que vale o pipi e seguimos.

*

Pjanic deve estar arrependido por ter mudado de lado; Danilo quase entregou o ouro; Griezman está com uma dívida que já dura um ano; dos nove metros é mais fácil fazer dois; a Pulga deu sangue mas não colheu nada: toda hora batia de cara contra o muro; Quadrado é uma certeza, o porto seguro; deveria ser proibido alguém se chamar Umtiti; Gigi desistiu de envelhecer. Enfim, foi um jogo morno. O placar de 3 a 0 da Juventus em cima do Barcelona não traduz a falta de entusiasmo que fica qualquer partida sem a torcida. Xô, Covid!

 

Diário de um mundo novo – dia 206

E chove.

*

Essa quarta-feira com cara de segunda é um dos meus maiores pesadelos. Ontem foi feriado e hoje é uma segunda-feira atípica. Meus clientes estão sempre ocupados demais no início da semana, mas o fim dela está logo ali. Por falar em cliente, hoje me ligou um do jogo de empurra. O mais antigo estofador da região é um meu cliente. Na verdade é minha cliente, que o pai se aposentou e a filha, que nasceu e cresceu trabalhando ali é quem assumiu. Quando aparece um cliente muito chato, com um serviço complicado e que espera que o façam grátis, ela manda pra mim. É claro que o contrário também acontece e ficamos nessa brincadeira. Comigo não tem farinha, o preço e condições sou eu quem decido. Aceita se quiser. Com ela o pessoal tenta se aproveitar. Mulher, sabe como é: “vou enrolar essa trouxa e falar grosso”. Acontece que ela faz isso a vida inteira, não é a estúpida que os aproveitadores gostariam de encontrar, só por ser mulher. Pois bem, o cliente que me ligou – que obteve o meu número através dela – queria um serviço chato, mas não difícil, quase de graça. Notou meu sotaque e eu disse ser brasileiro. Virou amigão, trocamos algumas palavras em português, contou que viveu “uns anos” no Brasil, declarou amor incondicional pelo país e confessou enorme saudade. Chorou as pitangas, a crise, a pandemia, desempregado, da diferença de preço entre restaurar os bancos de tecido ou substituir pelos de couro, que estão guardados no porão, mais pitangas. “Bom, amigão. Você tem duas opções: ou restaura os de tecido com o estofador (não trabalho com tecido), ou restaura os de couro. Não posso decidir por você. Meu orçamento você tem, se decidir pelos de couro, me ligue uns dias antes.” Ficou de pensar e me ligar em janeiro. Detalhe: carro antigo aqui não custa pouco. Pitangas. Sei.

 

Diário de um mundo novo – dia 207

— Bom dia. Pra vacina, é aqui?

— Sim. Um documento, por favor.

— A senhora me vê duas Pfizer, uma Moderna, uma AstraZeneca e duas chinesas, por favor. Embrulha pra levar.

— ...Oi?

— Embrulha pra levar. Vou levar pra casa.

— O senhor vai querer pão também?

— Vo... Vocês têm pão?

— Não. Isso aqui não é um mercadinho. Nós aplicamos vacina, não embrulhamos nada pra viagem.

— Não, minha senhora. Não se preocupe, eu vi no Youtube como se aplica injeção. Até comprei álcool e algodãozinho pra desinfetar. Pode’xar.

— Então o senhor compre a vacina no Youtube. Aqui só podemos aplicar.

— O Youtube só tem vídeos, não vende vacina. Não posso levar e aplicar na minha família?

— Não, não pode. A sua família terá que vir aqui no posto pra tomar a vacina.

— Então vou tomar uma Pfizer e uma chinesa, por precaução.

— É só uma vacina por pessoa.

— Ah...! Então me dá a Pfizer, faz favor.

— Meu senhor, na butique o senhor escolhe o que quer levar. Nós aqui só temos vacina.

— Que marca é?

— A mesma que o governo mandou pra toda a região.

— Sim, entendi. E que marca é?

— V a c i n a.

— Dá pra saber a marca, não?

— Quando o senhor vai ao dentista, pergunta que marca é a anestesia?

— Não, mas no dentista nem dá pra falar.

— Se precisar ser internado no hospital, vai perguntar a marca dos remédios antes de tomar? Em que faculdade o médico se formou? Se o bisturi é de aço inox ou outro material?

— ...

— Vai tomar a vacina ou não?

— Depois que eu tomar, a senhora me diz a marca?

— Só se o senhor não gritar.

— Epa! Dói muito?

— Dói nada, mas tem sempre algum maricas pra fazer escândalo.

— E vou poder sair sem máscara?

— Absolutamente não! A vacina leva uns dias pra começar a fazer efeito e o senhor não vai poder andar sem máscara antes do governo dizer que pode, que é pra não infectar os outros.

— Infectar? Mas a vacina serve pra quê, então?

— Pro senhor não desenvolver a doença, mas não impede de ser um portador do vírus. Tire a camisa, por favor.

— AAAAAAI!

 

Diário de um mundo novo – dia 208

Você anda se sentindo cansado? É um cansaço diferente, né? Já não é estresse, desânimo, tristeza, desconfiança nem saco cheio. É tipo cansaço na alma. Já nem me espanto com as asneiras novas de cada dia, com a falta de discernimento que me parece coletivo, com os argumentos mais estúpidos jamais inventados. Cansei.

 

Tô doido pra essas vacinas darem revertério e amalucar todo mundo. Melhor ignorar a realidade e mudarmo-nos todos e a nós mesmos para algum universo paralelo e divergente. Pra bem longe disso tudo e apartados uns dos outros. Mais dos outros que de uns.

(ainda se usa revertério?)

 

Diário de um mundo novo – dia 209

Essa semana foi complicada. Teve feriado na terça-feira, o que acaba com a minha semana profissional, cinquenta e trinta e dois orçamentos que nunca sabemos se vai rolar, frio chato, chuva, reconfigurar o computador e perder um monte de coisa (incluindo aquele negócio no browser que me permitia ler um monte de coisa “para assinantes” e que nem sei como chama e quem me sugeriu, não poder ler as notícias “exclusivas para assinantes” porque não sou assinante, banho no Shiva e a consequente lavada geral no banheiro, secar cachorro com secador de cabelo, trabalho caído de algum lugar na última hora pra salvar a semana, insônia que de vez em quando dá sinal de vida, dormir no sofá (por causa da insônia) com cachorro de pedra esmagando minha perna, câimbras nos pés porque o cachorro os descobriu e deixou a porta do balcão aberta, gelando a sala e os pés.

*

Uma amiga compartilhou uma foto de alguém que trabalha na rua principal do centro, o shopping center ao ar livre da cidade, mostrando uma verdadeira multidão se espremendo. Sabe Carnaval de Salvador quando passa o trio elétrico e você pode levantar os pés que vai continuar se movendo? Pois é. E não acredito que nas outras cidades está diferente. Todo mundo de máscara, mas tão espremidos que dá pra beijar na boca sem ninguém ver. Janeiro, aí vamos nós.

*

Tenho pensado muito em não pensar.

 

Diário de um mundo novo – dia 210

Toque de recolher em toda a Itália das 22h00 às 06h00.

06h01 – saio de casa com o kit Garcia (garrafa de água para lavar o pipi de postes, muros e afins, saquinhos para a gentil coleta de cocô de cachorro e focinheira), com roupas adequadas para o frio de 1 ºC e o fiel escudeiro Shiva, devidamente indumentado.

06h01’5” – executo alguns passos de can-can para evitar que o meu corpo sucumba ao congelado e escorregadio pavimento. No caso, calçada e asfalto.

06h02 – entro em casa – incólume e om a dignidade preservada – para substituir o calçado por um apropriado para a neve.

06h12 – saímos novamente (já contei a minha dificuldade de calçar aquele treco).

06h15 – caminho o mais lentamente possível para não escorregar. O fiel à minha frente tem quatro patas e uma curiosidade em cheirar todo o percurso e isso requer uma velocidade que não sou capaz de acompanhar. Se eu soubesse andar de esqui...

07h15 – entramos em casa. Suando. A temperatura lá fora zerou o único grau dessa noite silenciosa. O nascer do Sol está marcado para às 07h51, mas escolhi esperar dentro de casa.

07h15’30” – me livrei da roupa de frio e da bota (contei que é difícil calçar, tirar é fácil).

07h20 – ele quer me morder, que é o que gosta de fazer depois de comer. Me refugio no banheiro e ele vai morder a Eloá, que adora dormir até mais tarde aos domingos. Principalmente num domingo frio. Ele não dá bola e continua querendo brincar, morder, receber atenção e carinho. Vence, ele sempre vence.

14h00 – saímos de novo para um passeio longo, nesse domingo de muito sol e um calor de 5 ºC. Dessa vez, sem sapatos de neve.

18h30 – nos aventuramos para um último passeio. Apesar dos 4 ºC, o clima está mais agradável, o que indica que está mais seco. Encontramos com Mambo, um de seus amigos. Abanadas de rabos sem muita história. Driblamos os transeuntes pelo caminho e ele chega a me olhar pedindo para voltar para casa. Detesta movimento. Ok, casa.

*

Ambulâncias passam dia e noite. Nem isso serve para desanimar a vontade de sair e juntar pessoas. As lojas estão abertas, cheias de regras e filas para entrar. As pessoas esperam pacientemente do lado de fora para respeitar o número máximo de clientes dentro das lojas, que muda de acordo com o espaço de cada loja e do número de atendentes. Esperam. Do lado de fora. Em filas. As filas se perdem entre os passantes, se confundem. A mulher que queria comprar uma blusa acabou comprando um perfume. Era a fila da loja errada, mas não podia perder a oportunidade.

 

2 comments:

Nely L. said...

Bom dia, Allan.
Olha, me identifiquei bastante com o dia 208. é um cansaço diferente, causado pelos tempos doidos que vivemos e potenciados pela mediocridade das pessoas ao redor, dos que nos governam, de como estamos alienado e inertes, enfim.
O chato é que nem podemos ter esperança em dias melhores com 2021, melhor evitar votos de bom ano novo, pois na virada 2019/2020 algo deu muito errado ahaha
Enfim, resistamos.
Revertério, existe sim e assim como vc, espero nele :)

Eliana said...

Sabe que este "cansaço"aí que você falou? Estou sentindo ele hoje! Apesar dos últimos dias terem sido agradáveis, bateu um cansaço esquisito. Não sei se porque falei com pessoas que não estão nada bem, emocionalmente falando! A gente chama pra bater um papo leve e a pessoa começa a ter um revertério! hahaha
Já nevou aí? Aqui nada de neve. Hoje também rolou um sol e fez um calorzinho de 5 graus! Adoro sair pra caminhar na cidade vazia, com alguns passantes e eu dou "hallo"pra todo mundo! Meu marido acha graça. Vc ainda vai encontrar um de mal humor! Mas eu sempre olho e digo um hallo sorridente! Não encontrei ninguém de cara feia! rs
Escuto muitas coisas sobre as vacinas...vc mencionou sobre parar com o seu diário...não...ele vai longe!