Wednesday, September 23, 2020

Diário de um mundo novo - parte 18

 

Diário de um mundo novo – dia 120

Meus avós moravam em Itaquira. Tinha uma parada de trem, mas ele só se detinha ali duas vezes por dia. A outra maneira de chegar na casa da vó era a cavalo. Tinha que deixar o carro na fazenda do seu Nonô e seguir em montaria. Seu Nonô era o pai do Tito, que viria a se tornar meu tio, quando se casou com minha tia Carmélia. Ela morava com meus avós. A viagem a cavalo durava um tempão, mas valia a pena. Seu Nonô era divertido, tinha um monte de bichos soltos e eu corria atrás dos marrecos, que na casa da vó era proibido dar corrida nos bichos. Morei com eles por um ano. Eles tinham uma casa de farinha e uma de arroz e nós morávamos à beira da linha do trem, num terreno elevado e uns metros distante da ferrovia, onde fazíamos fogueira à noite, que as noites ali eram estreladas como nunca mais vi. Água de poço, ferro de brasa, pilão, colchões de capim socado, lamparina de querosene e um rádio de pilha que meu avô ligava para ouvir “A voz do Brasil”. Itaquira fica no município de Carapebus, mas longe um dia ou duzentas horas de trem, não lembro mais.

 

Acordei numa madrugada com minha vó que discutia com meu avô, que não queria que ela saísse de casa de madrugada pra pegar o trem pro Rio. Ela jurava que meu tio tinha falecido e que precisava urgentemente ir a Teresópolis. O vô não acreditava nessas coisas e ela foi assim mesmo. Lá pelo meio-dia minha mãe chegou na sela de um cavalo com o Tito. Deixou o carro na casa dele e tinha ido para levar a vó para Teresópolis, pois meu tio tinha morrido. O vô tinha que ficar pra cuidar da fazenda. Naquela hora a vó já estava em Teresópolis. Ela era assim, tinha um sexto sentido infalível de coração de mãe.

 

Já casado e morando em Salvador, cansei de parar ao lado do telefone para atender antes que ele tocasse. Eu sempre sei quando minha mãe quer falar comigo. Meu pai foi embora numa sexta-feira. Na madrugada para sábado, levantei à duas da manhã, liguei o computador e peguei o telefone. “Fala”, foi o que disse ao meu irmão antes que a campainha tocasse. Era pra me avisar que o velho tinha falecido.

 

Desde pequeno aprendi um modo para “evitar” notícias ruins. Quando tenho um pensamento negativo, lembro que se não o eliminar corre o risco de acontecer. Por isso, digo toda vez que me lembro: “Não vai acontecer nada. Tá tudo bem”. Mas tem que ser na hora. Sempre funciona.

Me livrei de cada uma.

 

Diário de um mundo novo – dia 121

— Moço, não aponta esse troço pra minha testa, não. Toma, mede aqui ó, no pulso.

— ...O que?

— Na testa, não. Mede no pulso.

— O senhor quer entrar?

— Quero e preciso, mas medir na testa vai me fazer mal. O senhor não foi informado não, é?

— Fui informado que é inócuo fui e treinado pra medir a temperatura dos clientes na testa. Não faz mal nenhum, ninguém morreu ou passou mal por causa disso.

— O senhor é que pensa. Isso aí foi produzido pra queimar os neurônios da gente e deixar o povo abestalhado, fácil de dominar.

— E o senhor usou demais, né?

— Tá mangando de mim porque o senhor dever ter um micro-ondas em casa.

— Tenho e uso. O senhor vai entrar ou não?

— Tá vendo? O senhor já foi neutralizado pelo micro-ondas!

— E pelos rastros químicos dos aviões. Todo mundo foi, é inútil resistir.

— Eu não. Tomo água com limão todas as manhãs, lavo o rosto com sabão de coco e o nariz com água do mar.

— Água com limão, sabão de coco... Água do mar?

— São os únicos produtos que eliminam os rastros químicos.

— E onde o senhor arranja água do mar?

— Viajo todo mês pra buscar, tenho cinco galões em casa. Mas tem que pegar de madrugada, pra evitar que os raios do Sol contaminados por causa dos buracos de ozônio modifiquem as moléculas do sal. Leva algumas horas para elas se regenerarem, por isso tem que ser de madrugada, antes do Sol nascer.

— E como o senhor faz pra não ser vigiado nem controlado pelos satélites. O senhor conhece o efeito que eles fazem no cérebro?

— Claro que sei! É por isso que só ando de boné ou chapéu. Olha aqui, por dentro tá forrado de papel alumínio, ó! Mede no pulso, por favor.

— O senhor tem certeza de que não está com febre?

— Tenho. Quer ver o termômetro que tenho no bolso?

— Não precisa. Se o senhor me garante que não está com febre, eu o deixo entrar, mas com uma condição.

— Qual?

— Tem uma câmera vigiando a gente e se eles virem que não medi a temperatura do senhor, eu vou pra rua. O senhor não quer isso, quer?

— De maneira nenhuma! Do jeito que a coisa tá, quem tem um emprego tem que se agarrar nele.

— Eu sei, eu era engenheiro e a firma fechou. Vamos fazer assim: eu aponto o termômetro pra sua testa, mas não meço a temperatura. No vídeo vai parecer que eu medi e estamos salvos os dois.

— Jura?

— Claro. Eu entendo o senhor. Além do que, o cliente vem em primeiro lugar.

— Vô confiar, hein?

— Tranquilo. Pronto, pode entrar.

— O senhor apertou! Eu vi a luz vermelha.

— Não se preocupe, o termômetro funciona em dois tempos. A luz acende pra informar que ele foi ligado, mas só mede a temperatura se apertar o gatilho até o fundo. Pode confiar.

— Jura?

— Juro.

 

Diário de um mundo novo – dia 122

Uma coisa é certa, quanto maior o número de exames, maior é o número de contaminados.

*

O Nicolas sofreu um acidente. Ele voltava pra casa de moto e foi investido por um carro que ultrapassava outro carro que o jogou longe. Ou foi o que estava sendo ultrapassado, não entendi bem. Moto na oficina e Nicolas cheio de machucados, em casa. Felizmente nenhuma ferida ou trauma sério. Quem é o Nicolas? Amigo da Luiza, você não conhece não.

*

Gente, tenho uma coisa muito importante pra dizer pra vocês. Prestem muita atenção porque ninguém sabe ainda. Antes de continuar, certifiquem-se de estarem sós, sem nenhum bisbilhoteiro por perto. Também evitem ler caso estejam em local público. Sabe-se lá que reação isso pode provocar em vocês. Isso mesmo, o ideal é estar isolado em lugar protegido. Ou escolham ler mais tarde. Quem estiver em situação ideal pode continuar lendo. Logo logo vai entender o motivo de tanta precaução. Quem estiver usando chapéu ou boné verde, por favor, tire e jogue longe. Relaxe e conte comigo até três: um, dois... Droga, esqueci!

*

Fanta, Crush ou Sukita?

 

Diário de um mundo novo – dia 123

Hoje eu iria contar do sol, calor e do cliente mais chato desse mundo, o único que consegue me tirar realmente (!) do sério. Mas depois de ler a redação da Isabella, filha de amigos queridos, resolvi publicar o trabalho dessa menina-moça de 15 anos, do início da quarentena.

Nos comentários, link do Estadão, onde parte dela foi publicada.

 

“25º dia de isolamento

Já faz algum tempo pelo que pude perceber que conto os dias assim, “tal dia de isolamento”, pois me esqueço com facilidade em que dia estamos, em que mês, em que horas. Só sei me guiar pela quantidade de tempo que aqui estou presa. Contar o tempo pelo que ele costumava ser também me parece errôneo, aqui dentro as coisas definitivamente são mais devagares do que lá fora, e digo isto porque mesmo tendo se passado menos de um mês, parece que estamos nesta lamentável situação há algumas décadas. Assim como o tempo, tudo passa lento e distante. O silêncio nas ruas e os gritos desesperados da mídia, que quer nos manter seguros, parecem tornar tudo meio ensurdecedor por fora e barulhento por dentro, assim como todos em casa, que já não mais se levantam, já não mais conversam, já não mais se importam, como se assim se isolassem em suas próprias camas e próprias realidades.

Constantemente, sinto-me na madrugada. O dia e a noite são igualmente parados, assim como minha querida mente nublada, que abriga de resto  o luto, o cansaço e a tristeza. Tenho deitado em meu travesseiro com turbilhões de pensamentos e não consigo mais relaxar, me sinto como uma pedra que tenta amolecer seu coração com um pouco de açúcar, mas fracassa sua existência. É difícil, tento iludir as ideias dizendo a mim mesma que dormir vai fazer a mente relaxar, mas é tudo uma grande farsa mental, eu acordo novamente cansada, já faz 25 dias.

Cada vez mais sinto que me arrasto pelo chão nas poucas vezes em que me levanto, não tenho vontade de ir à sala, me reunir no que deveria ser uma noite de jogos em família para assistir ao filme de terror que tem sido o jornal nacional. De fato, dentre todos os cômodos de minha casa, criei uma estranha intimidade com meu quarto, nunca vista antes. Daqui não saio, aqui me calo,  aqui me vejo, aqui me abro. E adentrando aos mistérios desse lugar pouco visitado em meu cotidiano, me deparei com algo fascinante que só o meu quarto possuí, as janelas.

Esses dias passei por uma experiência intrigante envolvendo esses portais para o mundo lá fora. Em meus, ultimamente constantes,  devaneios do que penso ter sido a tarde de um domingo, ouço barulhos bruscos de água caindo no chão, se movimentando de alguma forma. A adrenalina veio em mim, virei-me para os vidros assustada em busca de algo, mas nada foi visto, apenas minha piscina que tremulava a água recém mexida por esse alguém ainda desconhecido por mim, que resolvi fingir que nada havia acontecido. Ouço o barulho mais uma vez e novamente me assusto, o que diabos era aquilo assombrando meu momento de pensar? Na esperança de finalmente prender sem escapatória o que estava atormentando a calmaria do fim da tarde, cravei com velocidade meus olhos na janela e eis que me deparo com algo surpreendente. Dois sabiás à beira molhada da piscina azul que se encontrava no quintal. E ora se não eram eles que estavam fugindo de mim? Assim que me virei para vê-los, voaram assustados para as árvores do vizinho. Logo volto aos meus pensamentos, é estranho perceber o quanto temos medo e o quanto ele nos toma o tempo e as aparências, não é? Jamais imaginaria algo tão óbvio como passarinhos. Os ouço novamente e resolvo dar-lhes a privacidade para que bebam da água clorificada do jardim. O mundo parece muito mais assustador em nossas cabeças.

Ainda mencionando janelas, vale citar o quanto elas têm me ajudado a manter a calma. Virou praticamente rotina observar o pôr do sol, todos os dias vou até a sala observar o quão lindo tem estado o céu. Apesar do dia estar límpido, o fim da tarde traz consigo uma brisa fria e um cenário nublado, que reflete com carinho as cores do sol, fazendo com que tudo banhado pela luz se torne tanto rosa, quanto laranja, roxo e azul. Todos os dias tiro fotos dele, virou uma espécie de hobby de isolamento, este que tem claramente me estressado, se levar em conta o quanto ele mudou minha vida e o quanto ainda irá mudar, pois está longe de acabar.

E, por falar tanto em janelas, penso em como elas são para mim uma forma de escapatória de toda essa prisão, ainda consigo ver o mundo lá fora, mesmo que esteja tão diferente esses últimos dias. É de tanta angústia olhá-las que estou pensando em fugir por elas, literalmente.”

 

Diário de um mundo novo – dia 124

As notícias de novas quarentenas ou ameaças de, começam a preocupar. Israel e parte da Inglaterra já vivem um novo período de quarentena. Londres, por enquanto, está livre e deve continuar assim se o número de novos casos se mantiver estável. Outros países europeus não excluem a possibilidade de voltar ao rigor de antes do verão.

 

Sim, a situação agora é bem diferente do início da pandemia. Cada novo caso ativa um rastreamento de outros possíveis contagiados muito ágil. Já é possível identificar antecipadamente que paciente precisará de internação e quem pode ser monitorado em casa. Uma série de informações estão disponíveis e, principalmente, as UTIs estão sendo pouco utilizadas pelos contagiados. A parte mais difícil é convencer as pessoas que as regras de prevenção continuam tão importantes quanto antes.

*

Somos mais 7,7 bilhões de pessoas preocupados com as queimadas na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado. + de 7.700.000.000 de seres humanos tristes, atônitos e revoltados com o Brasil pegando fogo. Literalmente. Quanta mil pessoas não estão? Não, realmente não acredito que sejam mais que poucas milhares de irresponsáveis que não acreditam ou que não estejam vivendo a mesma angústia. Honestamente, não acredito. Tenho muita vergonha quando alguém pergunta de onde sou. “De Marte”, costumo responder.

*

1971. Essa música é de 1971. Eu canto e choro com o Hurricane Smith. E você, de que lado está?

 

https://www.youtube.com/watch?v=YdvFI_s85Lw

 

Diário de um mundo novo – dia 125

Viajo por estradas e caminhos. Rios e asas. O percurso é incerto. Dirigindo a cem por hora numa noite escura, orientando-me somente pelas faixas do asfalto, rezando para que a curva a seguir seja mais suave do que promete. No momento seguinte, estou em pé, parado ao lado da bicicleta na estradinha de terra batida, observando a paisagem silenciosa do campo em volta de mim.

 

O vento, quando quente, sopra meu suor ou lágrimas para algum lugar em que nunca estive. Quando frio, me congela os dentes à mostra no sorriso aberto.

 

Eu viajo em sonhos, viajo pela minha realidade. As minhas verdades, as minhas poucas verdades não são confiáveis. Minhas certezas são incertas. Jamais confiaria nelas. Jamais.

 

Sigo (sempre) nunca em frente. Minha bússola perdeu-se num beco qualquer. Todo o meu conhecimento, todas as minhas vontades, todas as minhas decisões e planos, são apenas trilhas, nunca trilhos.

 

Diário de um mundo novo – dia 126

Povo, de verdade: gosto de pernilongo não.

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Hoje, dia 20 de setembro de 2020, é uma data especial, por vários motivos. Foi nesse mesmo dia, em 1870, que o general Cadorna, à frente do grupo de bersaglieri abriu a brecha na Porta Pia, em Roma, culminando com o fim do Estado Pontifício e que acabou por anexar Roma ao Reino da Itália, tendo a própria cidade como capital. Hoje também foi especial porque os italianos foram chamados a escolher, em referendo, a redução ou não, do número de parlamentares, de 630 deputados a 400 e de 315 a 200 senadores, lei aprovada no Parlamento, mas que deveria ser referendada. O resultado independe do quórum. De fato, a afluência deve ser a mais baixa de sempre. E não só por causa da pandemia, mas porque as partes interessadas se ocuparam de confundir e não de informar com clareza (sim, quem realmente se interessou, buscou informações e foi votar consciente, mas é uma minoria entre a minoria), deixando muita gente em dúvida e, na dúvida, esse povo não vai votar. As urnas estarão abertas por todo o dia de amanhã, Só acho que vai ter menos gente indo votar ainda numa segunda-feira. Mas o que realmente torna essa data especial, triste e positiva, é o retorno da Luiza a Londres. Foram dois meses aqui, nunca é fácil se despedir. Dessa vez, acho que a maior dificuldade é dela.

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Paixões vêm e vão. Só o amor permanece. O amor muda, se transforma, cresce ou diminui, se esconde, quase nuca acaba. Quase nunca. E, às vezes, dói.

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