Tuesday, June 23, 2020

Diário de um mundo novo - parte 5


Diário de um mundo novo – dia 29
Tem jeito não, esse tempo amalucou de vez. O clima da Planície Padana, sempre úmido e sem vento, até que ajuda muito a piorar qualquer dia, mas tem coisas que não dependem dele. A culpa de tudo o que estamos vivendo é nossa. Os xapiri dos yanomami devem estar dizendo: “Nós avisamos!” E a visaram mesmo. Verão e outono num só dia é de lascar. Ok, a essa altura do dia (noite, na verdade) eu prefiro o outono pra dormir. Mas o verão amanheceu tão bonito hoje. A umidade é que está terrível. Vida e morte Shivarina.

O cliente me mostra um banco de carro que deveria ser de couro. Não consigo entender como ele fazia pra dirigir sentado sobre ferros.
— Allan, você faz milagre?
— Claro que faço, mas o preço é infernal.
Quase perguntei se ele também tinha um cachorro chamado Shiva. Quase. Indiquei um estofador e caí fora. Eu sou restaurador, não fabricante.

Verde maçã. Não me perguntem. Se ela não sabe, eu menos ainda.

Diário de um mundo novo – dia 30
No fim de 2017 contratamos uma educadora cinófila para o Exterminador do Presente. Foi logo depois que o levei ao Nico, um educador especializado em pit bulls muito competente que, infelizmente, vive e trabalha a duzentos quilômetros. Não dá pra fazer quatrocentos quilômetros três vezes por semana. Parêntese: (quando fomos no centro de treinamento e educação do Nico, passamos duas horas interagindo com outras pessoas, caminhando livremente no meio de vários estímulos como brinquedos, petiscos, panos com cheiros de outros cães que o Exterminator ignorou completamente. Só usufruiu da água, mas na época ele não bebia, aspirava desesperadamente. Em duas ocasiões a atenção dele deixou de se concentrar em mim e no homem que caminhava ao meu lado conversando comigo, que o Dominator insistia em manter afastado, passando continuamente entre nós dois. A primeira foi quando a mulher que estava dentro do campo desde o início, imóvel, começou a caminhar em nossa direção atendendo a indicação do Nico, que filmava tudo do lado de fora do campo. Ele passou a controlar que nenhum dos dois se aproximasse muito. A segunda vez foi quando o Nico foi buscar uma fêmea treinada para esse fim e se aproximou do alambrado. O ódio assassino foi tão forte que a experiência não pode durar mais de um minuto. Quando ele se acalmou e demos uma longa caminhada depois que o fiz correr um pouco, fui orientado a levá-lo para o carro por cinco minutos, pro Nico me dar algumas instruções. Claro que todos os cuidados foram tomados e o coloquei dentro da caixa de transporte super reforçada e apropriada para cães grandes. Claro, também, que ele não gostou e começou a latir, mas eu estava ali, uns vinte metros do carro numa zona deserta naquele início de noite do fim do outono. O bate-papo foi rápido e em menos dos cinco minutos prometidos eu estava de volta ao carro. Pois o Destroyer tinha pulverizado o teto do carro, junto com airbag e guarnições das portas. Fios pendurados e pedaços do teto espalhados por toda a parte. Fecha parêntese.) Conhecendo o histórico do animal e tendo conversado longamente com o Nico, a educadora daqui chegou a sugerir que experimentássemos trancar ele dentro da casinha que fica na sala. Ele já estava acostumado com o esconderijo e corria pra lá quando brigávamos com ele ou se o aspirador de pó era ligado. Cansou de dormir à tarde na casinha, sempre cheio dos restos de caixas de papelão e papel que rouba, ou objetos de plástico que adora mastigar – e que não deixamos pois ele mastiga e engole. A Eloá resolveu testar e o deixou trancado por uma meia hora enquanto saiu pra comprar alguma coisa. Não tem como destruir a casinha de fibra de vidro, com uma única parte aberta na frente com grade de ferro. A Eloá voltou e o Demolisher tinha começado a comer a beirada do bat-esconderijo. Nunca mais trancamos.
Hoje a sobrevivente casinha vive feliz no canto da sala, pronta a acolhê-lo quando lhe dá na telha. Só uma das duas grandes almofadas sobreviveu – o que é uma vitória e tanto – e a bagunça impera lá dentro. Basta limpar que esse descendente de hamster procura alguma caixinha e papel para decorá-la. Final: do pedaço de fibra de vidro que ele mastigou, nem sinal. E a educadora foi abandonada à própria sorte.



Diário de um mundo novo – dia 31
O mês de maio de 2020 será lembrado pelo início da volta à normalidade e pelo calor. Junho, por sua vez, está sendo o mês da chuva e da normalidade que ninguém estava preparado. Estamos no décimo sétimo dia do mês e dezessete dias de chuva. Fabricantes de máscaras e de guarda-chuvas estão enchendo os bolsos. Andar pela rua sem máscara está virando moda e sinônimo de rebeldia, como um dia foram as tatuagens. Como não entendo de modas, uso a minha máscara e não tenho tatuagens. Entrar em qualquer comércio de máscara faz parte dessa nova realidade. A quantidade de pessoas desmascaradas pelas ruas ainda é menor que com máscara, mas vem aumentando.

Das pessoas que moram nessa casa, tem alguém – que por questões de privacidade não irei nominar – que antes de ir dormir muda de canal. Não que eu me importe, normalmente estou o computador. Normalmente. Ou seja, ela (a pessoa) vai dormir mas quer que a tv fique num canal que ela (pessoa) goste. Era só isso mesmo.

Então que o dia amanheceu chovendo, ameaçando um dia triste e molhado. Por volta da uma da tarde, precisei atravessar a rua correndo, assim que saí de casa, para evitar queimar umas patinhas brancas. A cada passo o asfalto fazia fsssss! Era a pele das patas dele grudando no asfalto de lava. A sauna pública grátis não fazia sucesso, mas já que era grátis... E as pessoas boquejavam como peixes fora do aquário (e de todos os outros signos). Mais tarde o dia se transformou numa manta negra como a alma do vampiro zumbi numa noite sem lua. Ameaçava a Terra, o céu e o infinito. Algumas gentes usavam as máscaras inúteis como guarda-chuvas idem. Por enquanto a Terra resiste, o céu tá invisível e o infinito me preocupa.

Diário de um mundo novo – dia 32
A cada dia a sensação de que estamos esquecendo a quarentena só aumenta. Somos animais sociáveis, a proximidade do verão causa euforia e a alegria irresponsável da juventude vai aproximando as pessoas, nesta fase que deveria ser de máxima precaução. Grupos de garotos nas calçadas dos bares e lanchonetes, sem máscara, são cada vez cenas comuns. Temo por uma segunda onda de contágios tão grave quanto a primeira. Tomara que eu me engane.

Enquanto isso, uma simples consulta a um dermatologista não pode ser marcada. Todas as consultas, exames e cirurgias agendadas antes da pandemia estão sendo feitas agora. E são muitas. Essa é a prioridade, a menos que haja alguma urgência. Eu tenho uma urgência econômica que foi negada pelo serviço sanitário sem a menor cerimônia. Acho que faltam especialistas nessa área. Era a minha última esperança, o gerente do banco está de mal comigo. Allan, seu título venceu.
Que legal! E quem chegou em segundo?
— Não se faça de engraçadinho, nós precisamos do dinheiro!
— Cara, se você que é o banco não tem, imagina eu.

Ter amigos muito atarefados dá nisso. Tô doido pra ouvir a música nova do Jambow Jane. E eles têm que escolher entre cento e cinquenta músicas.

Notícias, notícias, notícias. O que os jornais vão publicar quando o mundo acabar? “Se você estiver lendo essa manchete, saiba que a humanidade se ferrou.”

Pandemia
Alegria
Tô à toa
Tô na boa

Diário de um mundo novo – dia 33
Entre uma chuva e uma tempestade, o sol brilha. Abelhas (ou seriam vespas?) devoram o que sobrou do pássaro comido por um gato ou gaivota. A vida segue, apesar da vida. Sinos de igrejas marcam o tempo, convidam os vivos a saudar os mortos, criam o ritmo das pulsações, corações e rezas. Alguém partiu, outro alguém chegou. O alternar dos trens imitam o destino.

O pica-pau voou, não volta mais. Não gostou do frenesi da cidade, do trabalho dos guindastes – “tem sempre um guindaste”, disse um amigo – nem do falatório das gentes nos carros. Não gostou das gentes.

As bicicletas são donas das ruas, luxo das cidades pequenas ou preparadas para elas. Tudo cheira a primavera, tudo perfuma. Tampouco os padeiros estão isentos, aromatizando as madrugadas.

Estamos aguardando a cama nova, espero que ele goste. É muito mais resistente da que ele destruiu, cavando buracos em chãos de terra imaginários. Ele mesmo é fruto de um mundo imaginário, um mundo livre de pandemias e preocupações. Rosna e abana a cauda. Brincalhão e feliz. Os cães, longe das correntes, são felizes. Às vezes basta tão pouco. E às vezes é tudo o que resta.

Diário de um mundo novo – dia 34
Té quinfim um dia de sol, somente sol. Italiano é meteopático. Quando chove eu quase não trabalho. E no primeiro dia de sol todo mundo quer o serviço pra ontem. Mas ontem choveu, né?, num dá.

A vida aqui voltou ao normal. Aquele normal que todo mundo jurou que não existiria mais. O número de vítimas fatais do Covid-19 voltou a aumentar. Pouco, mas aumentou. Assim como os pacientes em UTI. O comércio continua com as restrições decretadas, medição da temperatura, luvas, álcool gel, máscaras e distância. A rua, ao contrário, tem cada vez mais gente tranquila, fingindo que ninguém perdeu amigos, parentes, colegas. E acham que isso é normal?

A Lu volta a trabalhar na segunda-feira. Vai com outro gerente jogar no ralo os barris de chopp vencidos (todos) que as fábricas não aceitam de volta. É a orientação da administração local. Para minimizar o impacto, existem horários específicos para cada área da cidade e um limite de barris por dia. Noite, no caso da Lu e do colega dela. Das 20h00 às 6h00. Imagine a cena: quacquilhões de ratos bêbados nos esgotos e outros tantos peixes lá na ponta dos esgotos ingerindo ratos com cerveja, mortos afogados de bebedeira. Uma nova pandemia etílica vai invadir o hemisfério norte.

Coisa boa da noite: ir tomar uma Guinness na nossa cervejaria preferida, depois de quatro meses (sim, tanto a cervejaria como nós, respeitamos todas as orientações).
Hic!

Diário de um mundo novo – dia 35
Sonhei que era dono do mundo.
A primeira coisa que fiz foi distribuir uma gaiola em cada casa. As gaiolas ficariam abertas e vazias, para que todo mundo se lembrasse do valor da liberdade. Aquários deixaram de existir, todos os bichos viveriam soltos pra sempre. Os cães eram de todos e todos alimentavam e davam abrigos quando precisassem. Era permitido brincar, acariciar e dançar com os animais, se eles assim quisessem.
Não existiam mais LGTBQZPQRSAVWY+++. Nem pretos, brancos, orientais, mestiços, analfabetos, gordos, feios, burros. Todas as etiquetas foram abolidas, éramos todos tão somente e apenas humanos. Assim, em minúsculo.
Todos os dias eram sábado, chega com essa história de sete dias! Tínhamos a eternidade pra passear, andar de bicicleta, conversar e sentar nas praças. As estações eram bem diferenciadas, com outonos donos da neblina, invernos com muita neve onde tem que nevar, primaveras floridas e verões de férias. Chovia de noite e em algumas tardes, porque caminhar na chuva é bom.
Não havia fronteiras nem países, apenas o mundo. Trens eram o meio de transporte, pra viajar observando a paisagem, a gente e o horizonte. Cinemas, galerias de arte, shows, teatro, tudo era de graça. Cada um fazia o que gosta. O dinheiro foi abolido, era inútil trabalhar. Marketing, produtos, novos produtos, mais produtos inventados para consumo e embalagens descartáveis perderam o sentido e caíram em desuso.
Não tinha governo nem partidos políticos. A sabedoria das avós era suficiente para nos guiar. A saúde vinha das matas e do conhecimento dos pajés. Ninguém adoecia.
No final da tarde, as pessoas sentavam nas varandas para tomar chá, rir, conversar e observar as gaiolas vazias.
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Domingo ensolarado e tarde longa.
Vou dormir e tentar sonhar de novo. Tô apostando que o Shiva vai aparecer no sonho e mijar em tudo.
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