Monday, June 01, 2020

Diário de um mundo novo - parte 2


Diário de um mundo novo – dia 8
A mão vai bem, obrigado. Meu remédio caseiro de alho com plutônio é uma bomba.
Hoje eu consegui comer como uma pessoa normal. Não que nos outros dias eu pareça um anormal. Não, longe disso. É só que eu costumo comer por três dessas pessoas normais. A comida aqui até que é boa, tem repeteco e cerveja gelada. Vinho, às vezes. Mas também tem chocolate, um mundo de cerveja, besteirinhas, frios pra comer com pão, frutas, chocolate. Dá pra passar o dia inteiro comendo sem perceber.
Tem goiabada – não aquela caseira, mas tem – doce de leite, Nutella, chocolates escondidos e chocolates que nunca mais vou achar.
Acabou a grappa, acabou o conhaque.
Café com Nutella é um trem de bão demais. Grana com cerveja, também.
Fiz pão de queijo e comemos tudo. Eu e ela.
O feijão que fiz pra durar uma semana? Durou dois dias.
É época de pêssego e tem pêssego de tudo quanto é tipo. Cereja, nêspera e damasco também.
Preciso comprar vinho branco e prosecco pra refrescar o calor.
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Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Prefiro o barulho do mar.
Se eu disser que estou com saudades do isolamento, alguém se ofende?

Diário de um mundo novo – dia 9
Comecei a identificar algumas habilidades que vão estar em alta e outras que vão cair, quando essa zorra acabar. De cara posso afirmar que muitos produtores de fermento para pães na Itália vão falir. Eles deram mole quando deixaram de entregar o produto nos mercados. Em qualquer supermercado italiano era possível comprar fermento fresco. Quando iniciou o isolamento eles deixaram de entregar. Os moinhos de farinha de trigo começaram a distribuir “pasta madre” (a massa azeda cultivada pelos panificadores. Algumas, com dezenas de anos) em pó. E funciona! Ou seja, já tem muita gente familiarizada com o processo caseiro que não vai voltar a usar o fermento fresco. Os produtores de fermento fresco vão enfrentar não somente a antipatia dos novos padeiros, abandonados em meio à crise, mas concorrentes de peso. E consumidores idem.
Profissional de Marketing Digital (MD) deverá ser o profissa mais ocupado daqui pra frente. Até banca de jornal está usando plataforma digital que nunca pensou que seria útil. Se você quer ganhar dinheiro agora, leia tudo o que puder sobre MD e já comece treinando – grátis, é claro! – com a microempresa da prima, montando um site para o crochê da tia-avó, fazendo calendário com fotos do totó, promovendo a divulgação de aniversário de boneca da filha da vizinha da cunhada do seu irmão. Daqui uns meses aquela padaria grã-fina pode ser sua cliente. Mas comece logo, empreendedores aprendem rápido e podem não precisar mais dos seus serviços.
Uma fábrica de bambolê pode dar super certo. O que tem de gente treinando jogo de cintura não tá em gibi nenhum.
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Que fique registrado que, não obstante a língua, enquanto viva, vá mudar, não concordo com termos e ditos populares em português por mim não usados até 1999, quando saí do Brasil. Coxinha é um salgado, não um status social; Nutella está para a Itália assim como Sandália Alpargatas está para o Brasil; no Brasil eu pago as contas, na Itália, le bollette; copo meio cheio ou meio vazio (bicchiere mezzo pieno o mezzo vuoto) é coisa de pinguço.
Bando de cambada!
Blé, blé, blé!

Diário de um mundo novo – dia 10
Outras duas áreas pra juntar à lista de ontem: saúde e criativos. Os da área da saúde vão estar em falta. Já tinha escrito aqui que serão veteranos de guerra, com uma série de problemas que os perseguirão para sempre, de um lado, e o esquecimento, por outro. Veterano de guerra é assim, herói durante as batalhas e desajustado à margem da sociedade, quando volta pra casa. Muitos se perguntarão “onde é a minha casa?” Quem vai querer ser médico/enfermeiro/operador sanitário daqui pra frente? Os criativos, ao contrário, terão futuro promissor. Todos os filmes, séries, livros, jogos infantis e tudo o que estiver relacionado com o que você lembrar que fez para se distrair durante o isolamento, foram vistos, lidos, youtuberizados, palestrado, seguido e sonhado. Vai escolhendo a profissão aí, o mundo precisa de atores, escritores, maquiadores, músicos, desenhistas, etc., etc., etc. para as próximas pandemias.
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Essa primavera, ora inverno, ora verão, cedo ou tarde vai chegar. A malha da primeira saída de manhã cedinho, tão necessária, causa repulsa ao meio-dia. Borboletas nuca vistas borboleteiam nos jardins e parques. O CSI está mais calmo, mas aposto que amanhã vais estar infernal. Não se pode elogiar.
A intrepidez juvenil ameaça a sensação de liberdade desses dias. Os grupos já preferem usar as máscaras nos pulsos, ciclistas as abandonaram definitivamente e os pais e avós podem pagar as consequências (gente, não me conformo com a abolição do trema).
O gato da galeria ficou parado na frente do ouriço, paciente. O ouriço, fechado em bola, aproveitou pra dar aquela dormida. 

Diário de um mundo novo – dia 11
As notícias que chegam do Brasil nesses dias, têm me deixado mais apreensivo que o normal. Me sinto distante, impotente e culpado por não estar lá. Não preciso de consolo ou preocupação, obrigado. Nada posso fazer senão torcer para tudo andar bem.
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Uma grande vantagem de ter ficado em casa nos meses de março e abril (e um pedacinho de maio) é ter ficado longe do pólen e da paina (pioppo) O meu período crítico já passou, os espirros de agora são só os de sempre, não se preocupe.
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Sabe aquelas coisas que você acha normal, que todo mundo faz, pensa ou sente, até que um dia você descobre que você está sozinho nessa história? (Pode fazer pergunta longa assim?) Pois comigo não foi diferente. Com os anos fui descobrindo que ninguém sente remorso por caminhar sobre plantas e, principalmente, flores. Como passear com o Covidão sem pisar em tudo, inclusive cocô de outros cachorros? Num dá, ele é um trator sem freio se aparece algum bichinho. Não gosto de matar sequer moscas e formigas. Não gosto de matar nada e me sinto mal sabendo que caminhando em parques ou matas é impossível não provocar uma hecatombe em miniatura. Pra ser sincero, só não me sinto mal esmagando pernilongos. Claro que eu preferiria que o ciclo natural deles se concluísse normalmente, mas sem contar com a minha participação. Sabe quanto passarinho está morrendo de fome nesse mundo enquanto eu desperdiço pernilongo?

Diário de um mundo novo – dia 12
Essa madrugada nosso quarto foi escolhido para ser o Armagedom. A chuva de trovoadas fez o marrom-quase-preto se apavorar. Não que ele nunca tenha enfrentado trovoadas, só que normalmente o ronco dele encobre qualquer barulho. O infeliz tinha ido fazer pipi no balcão e o primeiro trovão bateu na bunda dele quando já estava voltando. Passou as duas horas seguintes tentando cavar um buraco na cama dele, ao lado da nossa. Acabava empurrando a caminha pro corredor, desmanchou a espuma do colchão, jogou a almofada no inferno e destruiu tudo. Eu o pegava no colo, colocava na nossa cama (nossa, dele, dele, dele e o que sobra, minha e da Eloá), abraçava, fazia carinho, conversava. O bicho descia e recomeçava. Tive que trancar os trapos no outro quarto pra ele entender que não ia dormir nela, onde quase nunca dorme. Finalmente dormiu. Roncou e encobriu os trovões.
A manhã estava estranha, abafada, úmida e fria. Tava calor e frio tudo junto. Lembrei de um aniversário da Luiza em Londres, quando estávamos almoçando com um sol lindo e a neve que caía.
Trabalhei, visitei o chinês que está namorando meu celular (não deixa o trem sair de lá e, quando sai, volta em três dias), comi chocolate, tomei cerveja com grana.
Decididamente precisamos urgentemente de novos criativos. Assistir filme repetido no flix da net não dá. E também não dá pra colocar um filme sem escolher na hora de dormir, acreditando que não vou prestar atenção e dormir. Ontem, sem querer, vi um filme de três horas.
Terça é feriado. Eu nem lembro mais como é isso.

Diário de um mundo novo – dia 13
Fui despachar um envelope no correio. Máscara obrigatória. Só pode entrar quando um outro cliente sai. E não adianta ficar impaciente porque a mulher bate papo com a funcionária do guichê sobre o almoço de hoje.
Fui comprar uma ferramenta. Fila do lado de fora, luvas, máscara, tomada de temperatura. Dentro da loja imensa a distância respeitada pelos clientes era “dá licença”, “ops!” e salve-se quem puder.
Fui cortar o cabelo. Agradeço à minha esposa pelos cuidados a mim dispensados durante a quarentena. Contudo é imperativo contribuir para a sobrevivência da economia, privilegiar o comércio e o setor de serviços oferecidos pela nossa comunidade. Imbuído de empatia e senso de civismo, optei por ir ao chinês. Esses foram os únicos motivos que me levaram a abrir mão dos valiosos préstimos da minha caríssima companheira e nenhum outro. O resultado estético da sua valiosa ação não interferiu em nenhum modo na minha escolha.
Feita a ressalva, deixo clara a minha estupefação. Onde costumam trabalhar quatrocentos e oitenta e dois cabeleireiros orientais, hoje só tinham três. Na entrada mediram a minha temperatura com um daqueles termômetros em forma de pistola. Das mil e cinquenta e trinta vinte onze cadeiras à disposição, só três podiam ser usadas, distantes dois quilômetros entre si. Luvas descartáveis para uso obrigatório e desinfetante para as mãos. Sem máscara não se pode nem entrar. Cada cliente escreve o próprio nome completo e o telefone numa relação diária com horário anotado. A lavagem do cabelo é obrigatória. Enquanto o rapaz lavava o meu, o sofá em que eu esperaria a minha vez secava da limpeza, feita depois de cada uso. E nada de produto desconhecido, limpavam tudo com o mais indicado por aqui, a Amuchina [amukína], que é a mais cara. Uma outra cliente entrou, lavou o cabelo e a fizeram sentar num outro sofá, lááá na padaria, longe de mim. Quando chegou a minha vez a poltrona só não foi encerada. Limparam como se fosse ser usada pelo imperador, assim como toda a área de trabalho (incluindo o espelho) e o ar recebeu uma boa borrifada de desinfetante. Não havia no salão nada que não fosse essencial. Todos os enfeites, quadros, artigos à venda, tudo, tudo, tudo desapareceu. A chinesa lavou as mãos com muito sabão três vezes antes de me tocar; toalhas e avental para os clientes dentro de sacos plásticos de lavanderia; tesouras, escovas e pentes devidamente esterilizados.  Na hora de pagar, a chinesa pediu que eu descartasse as luvas na lata de lixo logo ali e que passasse muito desinfetante nas mãos antes de sair. O corte custa dez euros, a lavagem, mais dois, doze euros em tudo. Não tenho a menor ideia de como farão para cobrir as despesas normais, imagina com os gastos anexos das novas regras. Nos salões italianos o preço é de vinte e cinco, trinta euros; nas barbearias, quinze; no cabeleireiro onde alguém que mora em Londres e vem aqui para cortar, duzentos euros, mas só para quem reservou com muita antecedência.
Tô com medo de passar outra noite acordado. Vai chover.
Agora a vizinha do terceiro andar – aquela anciã ranzinza – desce de pijama, cabelo despenteado. Não é crítica, mas a constatação de que ela está se sentindo confortável com o isolamento social.

Diário de um mundo novo – dia 14
Acabo de voltar do passeio com o Pic (de Pequeno). Uma mãe e a filha estavam sentadas na sorveteria do outro lado da rua tomando sorvete. Duas mulheres fazendo algo simples e corriqueiro. Coisa muito comum aos domingos, quando mãe e filha têm tempo para sair juntas, sem horário ou compromissos. Não fosse pela máscara na mão, seria uma cena anônima e sem importância. O adereço que se tornou comum acende uma luz de alerta, de vigilância. Só não tem o poder de impedir a vida e a presença daquelas duas é a prova da resistência. Aprender a conviver com a nova realidade sem deixar de viver.

O domingo chega ao fim. Vou sonhar com a normalidade, ainda que transformada.

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