Thursday, March 26, 2020

Diário do fim do mundo - parte 2


Dia 8
Cerveja? Ok, cerveja. E água com gás, que é pra enganar a eterna vontade de cerveja. No fundo (rá! No fundo. Essa foi boa) é sempre água.
Presunto cozido, claro. Misto quente, pizza, nachos e outras gorduchices, tudo isso precisa de um bom presunto cozido. Cru, não. Ainda tem muito speck, melhor esperar acabar. Aliás, ela nem viu que tem salame.
Mais uns queijos. Assim, no plural. É pegar o que achar. Ainda tem uns queijos na geladeira, mas queijo nunca é demais.
Pão. Tem umas baguetes no congelador, mas é pouco. Tem que planejar bem, considerar a frequência e os riscos. Mais pão.
Pouca salada, que é pra não jogar fora.
Melhor umas verduras congeladas.
Fruta. Banana e laranja – se ainda tiver da vermelha, melhor – não falta nunca; verificar outras variedades.
Grappa, ah, sim! E conhaque. Melhor dobrar, duas e duas.
Hm, controlar o vinho.
Fermento pra pizza.
Café. E Nescafé.
Maizena? ...Maizena?
Bom, o resto tem tudo. Dá pra passar uns dias sem voltar ao supermercado. Amanhã cedo ou na hora do almoço? Depois de amanhã? Amanhã eu decido, vai.
E, pra falar a verdade, eu tinha esquecido do salame na geladeira. Não adianta nada organizar tanto a lista de compras, calcular quantidades por período, fazer cara de inteligente organizado e esquecer do salame na geladeira.
Desodorante? Tá doido? Tem quase um ano que descobri que não precisava comprar desodorante. Por que sempre acho que tenho que comprar desodorante? Ainda deve ter desodorante no banheiro pra o resto do semestre. Não, eu não preciso comprar desodorante, risca.

Dia 9
Hoje... Quer dizer, nesta terça-feira que é... Ou foi?
Não sei vocês, mas eu acho que ontem foi amanhã ou nem passou uns minutos por aqui. Vejam bem, qualquer dia é mais ou menos igual aos que já vivemos, se não morremos antes, certo? Calendário? Pra quê?
Achei mirtilo no mercado. Sempre tem. Hoje tinha e estava em oferta. Minhas laranjas vermelhas já estão na fruteira, a farinha no armário, o congelador lotado, “arruma você esse monte de coisa no freezer. Vai precisar de mágica.” Arrumei sem feitiçaria nenhuma, só precisa abrir com cuidado. E não sei se vai fechar de novo. Enquanto não começar a trocar a rotina diurna por uma noturna, tudo bem. É preciso força de vontade para não esvaziar a geladeira de madrugada, por isso escolhi coisas que precisam ser cozidas antes e outras que, no mínimo, devem ser descascadas. Engraçado como minha vontade de comer frutas desaparece assim que o sol se põe. É na escuridão que desafio os conselhos nutricionais. Maçã, não; feijoada, sim.
O fermento para pão não está sendo entregue, informou o repositor do supermercado. Minha pizza caseira vai esperar. Em compensação, vocês precisavam ver o gengibre que comprei.
O cão nos olha com desconfiança, esperando o momento em que iremos deixá-lo sozinho, de novo. Meu celular quebrou e não há nenhuma oficina aberta. Se não tomar coragem para pedir a ela pra cortar, logo, logo as cegonhas virão fazer ninho no meu cabelo.
Talvez não deveria dizer isso, mas começo a não me importar em saber os dias da semana. Uma confusão a menos.

Dia 10
— Vou dar um jeito naquela cozinha.
— Nada disso! Hoje é meu dia de arrumar a cozinha.
— Não senhor, você arrumou ontem.
— Magina!, foi você que arrumou ontem.
— Não, foi você. E é por isso que a pia tá com vazamento. O que você fez? Desparafusou o ralo da pia como a Bianca faz?
— E você acha que a pia ia vazar só porque o ralo foi desaparafusado? A Bia faz sempre isso e a pia dela nunca vazou.
— Hm, muito estranho. Você fez alguma coisa pra pia vazar.
— Sim, é claro. Eu desmontei o sifão pra limpar. Não tinha notado que tava vazando.
— Desmontou o sifão...?
— Claro! Sabe quanta sujeira acumulou no sifão esses anos todos?
— Pois pode deixar que eu mesma conserto o sifão. Já levei a caixa de ferramentas pra cozinha.
— E o que eu faço agora?
— Sei lá! Vai assistir televisão no sofá, vai brincar com o Shiva...
— Sofá, televisão? Tá doida? E o Shiva tá escondido no armário, ele não aguenta mais a gente brincando com ele.
— Vai limpar o banheiro.
— ‘Xa comigo, patroa!
— Não, pera! Você limpou o banheiro de manhã.
— Quê que tem?
— Tem que vai acabar estragando tudo com essa esfregação. Vai arruma uma gaveta...
— Num tem mais nada pra arrumar nessa casa, todas as gavetas, armários, estantes... Tudo já foi arrumado. Umas três vezes, pelo menos.
— Inventa, ué! Cê num é bom nisso? Inventa!
— Já sei, vou pintar o corredor.
— Com que tinta?
— A que eu comprei, oras!
— Acabou.
— Como, acabou?
— Usei o resto pra pintar a garagem.
— Resto? Mas se eu comprei uma lata de tinta?
— Pois é, mas eu pintei o quarto das meninas. Com o que sobrou, pintei a garagem.
— Quando?
— Ontem. Enquanto você usava os halteres.
— E deu tempo?
— Lógico que deu tempo. Você passou quatro horas fazendo exercícios.
— É, mas valeu a pena. Viu como meus braços estão musculosos?
— Não estão musculosos, estão inchados. Ninguém faz exercícios por quatro horas seguidas.
— Eu precisava fazer alguma coisa. A casa está toda limpa, pintada, arrumada.
— Limpou o carro?
— Até o motor está brilhando.
— Lavou embaixo?
— Não tenho como levantar o carro, mas até onde eu consegui, sim. E se eu passasse roupa?
— Passei tudo. Inclusive meias e o que estava guardado nos armários.
— E o que eu faço agora?
— Sei lá. Eu vou arrumar a cozinha. E não ouse entrar lá enquanto eu não terminar. Tchau.
— Shiva...!

Dia 11
Uma das situações mais difíceis na minha vida aconteceu essa semana. Eu estava na fila para entrar no supermercado, devidamente paramentado com luvas e máscara, observando o cidadão à minha frente, uns dois metros longe de mim. O cliente de trás, provavelmente um moldavo de uns 30 anos, media em torno do metro e oitenta, metro e oitenta e cinco. Músculos até nos dedos, bombado, mesmo (em italiano eu diria palestrato, de “palestra”, academia). Devia pesar uns cento e dez quilos e impressionava pela postura. Sabe aquela pinta de leão de chácara de alguém muito importante, que não pensa duas vezes para arrancar o pescoço de quem se aproxima do protegido? Pois é, esse era o cara atrás de mim, na fila para entrar no supermercado nesses tempos de COVID-19. Claro que ele também usava luvas e máscara, mas aparentava não ter a mesma paciência dos demais clientes. Eu, aguardando parado na fila o momento de entrar – sim, porque um segurança do supermercado controla o fluxo de clientes, deixando entrar uns poucos por vez. Então a fila anda, para e espera uns minutos antes de avançar mais um pouco –, observava o cidadão atrás de mim através do reflexo na fachada de vidro do supermercado. Sim, ele era grande, forte e demonstrava impaciência, mas não me assustava. No máximo ele poderia, tranquilamente, tomar o meu lugar. E só. Pelo cidadão à minha frente ele não passaria. E essa era a minha vingança: se eu me sentia uma pulga perto dele, com toda a certeza desse mundo e mais um pouco, ele se sentia uma pulga perto do paquistanês bem ali na minha frente. Sim, paquistanês, eu o conheço de vista. É um monstro de tamanho e de humor. Mas não foi o fato de estar entre a marreta e a bigorna o que me assustava. Não, a culpa do meu medo foi a chegada da primavera, da volta precoce da minha alergia de estação e a imensa vontade de espirrar. Só estou vivo porque fui mais forte e não espirrei. Amém.
E já que falei da minha ida ao supermercado, aproveito para falar de uma coisa boa. Quando soube que a sorveteria embaixo de casa está funcionando com delivery, suspirei aliviado. Basta telefonar e esperar na porta que o funcionário entrega o pedido ao cliente que aguarda do lado de fora. Talvez o certo seria dizer take away, só que eles não estão podendo oferecer esse serviço, já que ninguém pode entrar na sorveteria trancada a chave. Como moramos na porta a uns quinze metros da sorveteria, vamos buscar. Claro que na última vez que fui ao mercado comprei sorvete, mas me tranquiliza saber que não vou morrer se precisar de sorvete pra remédio. Pra ser honesto, essa semana comprei sorvete suficiente para um mês. Foi o mês mais curto da história, durou apenas quarenta e oito e horas.

Dia 12
Duas pandemias estão abalando o mundo: o COVID19 e o serumaninho. Aliás, o coronavírus só está fazendo todo esse estrago por culpa nossa. Nós estamos muito empenhados em criar novos surtos, novos modos de nos extinguir e de criar memes na Internet. Li algumas matérias que alertam para possíveis novas pandemias, causadas pela degradação ambiental. Isso me preocupa. Continuamos a investir contra as poucas reservas naturais, onde vivem vírus que ainda não conhecemos, que vivem em ecossistemas livres de homo cada vez menos sapiens. E cujas consequências no organismo humano desconhecemos. Não estou endossando nenhuma teoria, estou, como todos, tentando entender até quando vamos insistir a nos colocar acima da lei natural, que nos enquadra no reino animal e contra a qual não há habeas corpus que nos livre de tal condição.
Tudo isso – e toda essa condição que vivemos hoje – ocupa boa parte das minhas divagações atuais. Por que pessoas que não têm conhecimento científico insistem a desafiar o vírus? Perdi a conta das pessoas, informadas ou menos, que continuam a agir como se fossem imunes à doença. “Tive que ir buscar pão na padaria essa manhã, mas tomei todas as medidas de prevenção. Não se preocupe.” “Tive”?  Quais são essas medidas preventivas tomadas? O número de médicos italianos mortos pelo COVID19 até agora é de 24 vítimas. Sem contar enfermeiros Operadores Sócio Sanitários e o que continuam internados. Sim, são os mais expostos. Mas são os mais preparados, também. Trabalham com macacões especiais, máscaras que protegem do vírus de modo efetivo e viseiras. Vestem os equipamentos de segurança e não os tiram nem para ir ao banheiro (não têm tempo e teriam que descartar tudo e se revestir) por todo o turno de trabalho, que está sendo muito superior ao normal. A grande maioria está dormindo fora de casa, em alojamentos providenciados para que não corram o risco de contaminar familiares.
Se você não sai de casa vestido de astronauta, não, você não tomou todas as medidas de prevenção. Não são férias, estamos em guerra. E a única arma para lutarmos pela vida é o isolamento social. Com exceção das pessoas que realmente não podem ficar em casa ou não tem uma, fiquem em casa. Sem levar netinho pra visitar a vó, sem ficar batendo papo com o vizinho, convidando ou indo pra churrasco/praia/balada. Não vai dar certo.
Desculpem, estava entalado e saiu hoje.

Dia 13
Saímos, eu e o Shiva, para passear às 5h30. Fomos muito mal recebidos pelo dia que amanhecia. Um vento frio fazia os dois graus negativos parecerem vinte. Negativos. Era o primeiro das três saídas diárias, ele parecia tão incomodado quanto eu, só não decidiu – como eu esperava – reduzir o tempo do passeio. Às 6h40, quando voltamos para casa, minha pele estava queimada do frio, se bem que a temperatura tinha melhorado ligeiramente: um grau negativo. O silêncio e a ausência de movimento na rua já não impressionam, mas incomoda. Café quente pra mim e ração com frango ensopado com verduras pra ele. Ainda lutamos um pouco, antes que ele decida se recolher na minha cama, pra que a Eloá não se sinta sozinha, ou para protegê-la, sei lá o que ele pensa.
Lá pelas dez, depois que ela levanta, se troca e toma café, somos – sempre eu e o Shiva – varridos para o balcão, para que ela possa limpar a sala. Não sem antes me fazer movimentar os dois sofás, é claro. Visto minha roupa de combate na neve, levo a almofada dele, escolho a roupa mais quente pra ele e levo um cobertor pra cada. Charuto, bom livro (A queda do céu – Davi Kopenawa e Bruce Albert – Companhia das Letras), mais café e umas caixas vazias para ele destruir. Que duraram dois minutos e aí ele me olha com aquele olhar e interrompo a leitura, pego o kong (brinquedo canino de borracha indestrutível) em forma de osso, coloco um pouco de queijo dentro e dou a ele. O bicho me olha, rosna, pega o osso e corre pra casinha dele, na sala que ela está arrumando. Fica ali uma meia hora e ela nem se dá conta. O restinho do café gelou, o charuto vai esfumaçando o ar com eficiência e a leitura prossegue bem, obrigado.
Fiz almoço, arrumei a cozinha, levei cerveja pra ela, beijinhos e fui para o quarto assistir um filme no Prime, que ela estava no Netflix, na sala. Ele, como sempre faz à tarde, esperou que ela se ajeitasse no sofá e deitou com a cabeça apoiada nela, largando o resto do peso daquele corpo de pedra sobre as pernas da Eloá, que já deve estar acostumada, mas reclama por costume.
Não posso enraizar o hábito de cochilar à tarde, ou vou sofrer quando isso acabar, mas num dia muito frio como o de hoje, me permito.
Qual foi o filme que assisti? Sei lá, ué! E quem assiste alguma coisa, na cama, com um frio desse?

Dia 14
VISTO
Que a pandemia está descontrolada, evitemos, pois, o pandemônio.
CONSIDERANDO
A necessidade de melhor organizar a cotidianidade no delicado período em que vivemos, fica estabelecida, nesta casa, uma nova regra, como segue:
* Fica terminantemente desaconselhado a confusão na separação do lixo diferenciado. Por diferenciado se entende aqueles resíduos que podem e merecem ser reciclados. Desse modo, nos empenhamos todos à vigilância para evitar misturar papel com plásticos, latas e vidros. E todas as combinações possíveis entre os supra citados materiais recicláveis, que não vou querer escrever todas as combinações para evitar chacotas.
CONTUDO
- É preferível separar as embalagens que contenham papel e plásticos colados, depositando as partes divididas nos coletores apropriados. Nos casos em que seja impossível separar completamente um material do outro, a parte mista deve ser depositada no coletor de lixo normal, com a nomenclatura “residuo indiferenziato”, assim denominada. Caso haja dúvidas concernentes ao tipo de...
— Peraí, que regra é essa?
— Boa! Tenho anotado aqui. Hm... Essa é a regra número nove mil, quatrocentos e vinte e dois. Rá!
— Rá, uma ova! Desde quando alguém cumpre essas suas regras malucas?
— Aquela de só eu acordar a Luiza funcionou.
— Regra? Aquela é e sempre foi uma norma de sobrevivência da família.
— Mas as regras têm sempre um porquê. Que tal prestar atenção, como faz o Shiva?
— Ele não tá prestando atenção, tá só babando pra você, que é o que ele sempre faz.
— Mas você não acha importante separar corretamente o lixo?
— O que eu acho importante é você cuidar dessa aparência. Sentaqui
Que eu vou cortar esse cabelo. Os barbeiros vão demorar pra abrir e eu me recuso a viver com a sua cara de louco.
— Ué, mas desde quando você sabe cortar cabelo?
— Tem sempre uma primeira vez.
— Eu tenho medo de você, nas minhas costas, com uma tesoura na mão.
— Vou cortar com a maquininha. Tenho uma como aquela dos barbeiros.
— Pega um espelho, então.
— Pra quê? E estragar a surpresa? Fica quieto aí.

Terminei o dia com a live da Jambow Jane no Facebook.
Depois, passear com o Shiva (que nem me defendeu) nssa noite fria de vento gelado e ruas desertas. Tive a impressão de ouvir um “ô careca”, quando ele me olhou, antes de levantar a pata traseira no monumento.


1 comment:

Lukas Mcdaniel said...

Thank yoou for this