Sunday, October 23, 2016

Lei da pureza alemã - Reinheitsgebot







Fui funcionário comercial da Brahma nos anos 90. Foi lá que comecei a me interessar pela história dessa antiga e popular bebida, não apenas profissionalmente. Fui só até aonde a minha curiosidade exigiu, impulsionado pela polêmica Lei da Pureza. E, antes de mais nada, deixo registrado que na minha opinião tudo é questão de preferência. Tomar uma cerva de sabor suave, estupidamente gelada em Salvador (onde o garçom apanha se servir diferente), é coerente; tanto quanto beber uma loira, escura, ou vermelha encorpada a seis, oito graus, no inverno europeu. No começo a gente até insiste, mas com o tempo se abre a novas experiências e descobre novos prazeres.

A idade da cerveja? E quem sabe? Os historiadores localizam a invenção da cerveja entre quatro mil e nove mil anos atrás. O certo é que a Código de Hamurabi já estabelecia algumas regras para a produção e comercialização da cerveja, no ano de 1760 a.C, estipulando até mesmo o consumo diário dos babilônios: de cinco litros para a elite do poder (sumo sacerdote e alguns graúdos da administração pública), três litros para os funcionários do poder e dois litros para os trabalhadores comuns.

Definição de cerveja: bebida a ser consumida em companhia, que pede socialização, alegria, festa, praia, churrasco... Ops! Desculpem, é o que eu associo à cerveja. Recomeçando: cerveja é qualquer bebida à base de cereais fermentados, normalmente condimentada com ervas e adição de açúcares (frutas, mel...). A partir dessa definição, podemos baixar as armas e parar de defender qualquer lei que restrinja as opções. Sabem quantos tipos de cervejas existem? Não? Tudo bem, ninguém sabe, mas são milhares, desde que sumérios, egípcios, ibéricos e outros povos começaram a produzir e consumir. Também existem outras matérias primas utilizadas, em menor quantidade, como o agave no México (aquela planta da tequila), raiz de mandioca na África, sorgo, arroz, milho, batata... Basta ser fonte de amido e estar sujeita à fermentação natural. Não tem que ser cereal.

Lá naqueles anos 90, a água fazia muita diferença no sabor da bebida. Ainda faz, mas as tecnologias desenvolvidas para tratar a água, reduziu parte do problema no produto final, homogeneizando o que antes era diferente. O ideal é que a cerveja seja adequada à fonte de água disponível: água dura (com maior concentração de sais, como cálcio, ferro...) é mais indicada para cervejas encorpadas; água mole (com menos concentração de sais), para cervejas mais leves, como a do tipo pilsen, largamente consumida no Brasil.

Muitas foram as receitas da cerveja desde a Antiguidade, cada mestre cervejeiro tinha a sua própria fórmula secreta. Durante a Idade Média o uso do Gruit era a regra. Gruit era uma mistura de temperos e ervas, que conferia um sabor marcante e aromas convidativos. Acontece que não existia uma receita fixa, cada região produzia o próprio Gruit e, não raro, essa mistura incluía plantas alucinógenas que provocavam intoxicação.

O lúpulo – planta da família Cannabaceae, do gênero Humulus, da espécie H. Lupulus (na verdade usa-se somente a flor da planta feminina) – vinha sendo usado na produção da cerveja desde 1.079, mas só a partir do início do século XVI começou a ser usado nas cervejas da Inglaterra (uma das três principais escolas cervejeiras, junto à Alemanha e à Bélgica). É o lúpulo que confere o sabor amargo e o aroma característico da cerveja no lugar do Gruit, além de ser ótimo conservante e contribuir para a formação e retenção da espuma da cerveja. O lúpulo é usado em dois momentos da produção da cerveja: no início da fervura, para dar o amargor da planta e no final da fervura, com o objetivo de aromatizar a bebida.

A famosa lei da pureza – na realidade um instrumento político, econômico e de marketing – não tinha a pretensão de ser tão influente assim. Tampouco foi uma lei alemã, mas sim uma lei bávara, regional. O primeiro decreto que regulava a qualidade da cerveja (veja bem: a qualidade do produto final, e não a produção da bebida) na Baviera foi promulgado em Augsburg, no ano de 1156. Estabelecia como punição o confisco do estoque e multas a quem servisse cerveja de má qualidade ou que trapaceasse na quantidade a ser servida.

Ainda antes da Reinheitsgebot, a lei alemã da pureza da cerveja, Nuremberg, em 1293, Munique, em 1363 e Ratisbona, em 1447 também criaram leis regulamentadoras. Depois, entre os séculos XV e XVI, diversas cidades criaram leis semelhantes em quase toda a Alemanha. Somente em 1487 Munique promulgou um decreto estabelecendo quais ingredientes poderiam ser usados na produção da cerveja, mas era um decreto local. Em 1493 a lei Biersatzordnung ampliou para boa parte da Baviera a restrição da matéria prima a ser utilizada. Ficava determinado o fim do Gruit com a substituição pelo lúpulo, além da água e da cevada.

A data de 23 de abril de 1516 só ficaria famosa muito depois da Lei da Pureza entrar em vigor. Foi o Duque da Baviera, Guilherme IV a estabelecer que os únicos ingredientes permitidos para a produção da cerveja fossem a água, a cevada e o lúpulo. O que não impedia que a família do duque continuasse a consumir “bebida fermentada de trigo”, que tanto apreciavam. Somente no fim do século IXX, quando os estudos de Louis Pasteur levaram ao conhecimento do levedo, o fermento passou a integrar os ingredientes da cerveja. Mas a tal lei não tinha interesse na qualidade da cerveja. Pelo menos não era esse um dos objetivos principais.

Naquela época o trigo e o centeio eram disputados entre cervejeiros e padeiros, o que fazia o preço do pão oscilar. Como o pão era a base da alimentação dos pobres – a maioria da população – a lei da pureza visava controlar o preço e o fornecimento da matéria prima do pão, assim como tabelar o preço da cerveja. De quebra, aproveitava para atingir o bolso à família Degenberg, que detinha o monopólio do trigo na região e era rival da família do duque (os Wittelsbach). Mais: com a inclusão do lúpulo como ingrediente da cerveja, proibia-se o uso do Gruit e, com isso, limitava-se o poder da Igreja Católica, que detinha o direito de distribuir e permitir o uso do Gruit e de cobrar taxas. Historicamente, a Igreja Católica dominou – e ainda domina – a região bávara, em contraposição à Igreja Protestante, no norte da Alemanha.

Outros dois motivos pela escolha do lúpulo foram a conservação e a disputa de mercado. As cervejas da Liga Hanseática (a aliança entre cidades mercantis do norte da Europa) já usavam o lúpulo há muitos anos, o que permitia exportar a cerveja com segurança. No início do século XVI o lúpulo passou a ser utilizado como ingrediente da cerveja na Inglaterra. A cerveja inglesa viajava por meses até a India e chegava com amargor e aroma pronunciados, conquistando os súditos da coroa do outro lado do mundo. O uso do lúpulo nas cervejas bávaras tinha como um dos objetivos a disputa por novos mercados.

Pois bem. A Reinheitsgebot foi uma lei que estipulava a matéria prima para a produção da cerveja na Baviera. Água, malte de cevada e lúpulo eram os únicos ingredientes permitidos na produção da bier (cerveja, em alemão). Claro que houve quem continuasse produzindo com outros cereais, em pequenas quantidades, só não podia chamar de bier. A Reinheitsgebot foi adotada em toda a Alemanha em 1906 e continua em vigor até hoje, mas foi modificada e é mais uma orientação que propriamente uma lei.

Muitos cervejeiros usam o termo “Lei da Pureza” como selo de qualidade, como se cerveja de trigo ou de outros cereais fosse de qualidade inferior. Não é. Mas uma mentira repetida por muitos durante muito tempo, soa como verdade. E, afinal, a indústria cervejeira alemã não podia perder a oportunidade de se distinguir.

Há anos a indústria cervejeira usa o High Maltose como complemento. Trata-se de um xarope de milho que serve para baratear o custo de produção. Como os demais açúcares que podem ser adicionados, serve para a produção do álcool na cerveja, ou do CO2, no caso da refermentação. O arroz também é muito utilizado (pensem na China...), tudo dentro da lei de cada país.

O que não acho correto é a adaptação de cervejas importadas, que passam a ser produzidas no país. Não respeitar o sabor e aroma originais é desconcertante. No Brasil foi estabelecido um padrão de produção barata, transformando cervejas saborosas em insípidas. Mas não me importo com a composição, se tem milho, arroz ou outra matéria prima que não faça parte da lei da pureza. Me interesso é pelo sabor e pela qualidade. Se gostar, até posso ter curiosidade pelos ingredientes e pelo método de produção. Mais: evito tomar cerveja que tenha viajado muito, o que significa que no Brasil só vou tomar cerveja local. Cerveja oxida com o tempo, sacudindo dentro de navios ou caminhões, sofrendo choques térmicos, exposta à luz... Além disso, cerveja para exportação costuma ter algum conservante, estabilizante e permanece em contato com a embalagem por mais tempo (latas são revestidas por uma camada de plástico – antes, Bisfenol-A; agora, Bisfenol-S; rolhas metálicas têm o selo plástico). Prefiro não arriscar. Quer me fazer feliz? Me convide a tomar uma cerveja numa cervejaria artesanal.

Para o produto destinado ao consumo interno, a Lei da Pureza ainda é respeita na Alemanha. Mas a cerveja para exportação está livre dessa amarra. E aí fica a questão: se até os alemães produzem e exportam cerveja fora da tal lei, que sentido ela têm? Simples, é puro marketing. Claro que existem muitas indústrias – não só alemãs – que exportam cerveja produzida dentro da velha lei, mas, repito: é puro marketing.


E você aí perdendo litros e litros de oportunidades, hein?

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