Sunday, October 06, 2013

Ferrari


Viscissitude é uma palavra antipática, que soa mal. No entanto, foi a que escolhi para a contar o ano conturbado de Ferrari, um comerciante quase anônimo da província de Piacenza (Ferrari é um sobrenome muito comum na região).

Tudo começou ainda no início do ano, quando ele decidiu viajar para o Egito com a namorada. Fazia anos que não tirava férias; aproveitou que o ramo de piscinas pré-fabricadas não faz muito sucesso durante o inverno europeu e partiu.

Chegando ao Cairo, viu toda a programação ir por água abaixo, dissuadido pelo consulado italiano a permanecer na capital. Hotel, taxis e passeios pagos não seriam reembolsados. Em compensação, Alexandria é uma cidade suficientemente aprazível para fazer esquecer os conflitos, circunscritos ao Cairo.

Após um dia de caminhadas, compras e visitas a museus, Ferrari e a namorada voltavam ao hotel de ônibus, trocando propostas obscenas na maior tranquilidade; afinal, eram os dois únicos estrangeiros no ônibus e conversavam em italiano. Pouco antes da praça onde fica o hotel, a namorada questionava onde deveriam descer. O cidadão do banco ao lado, que conversava animadamente em árabe com os amigos, virou-se e – em perfeito italiano – orientou-os sobre o ponto mais próximo do hotel.

No início da primavera, Ferrari foi obrigado a substituir gratuitamente todas as piscinas fabricadas e instaladas no ano anterior, por causa de um material tóxico. O excesso de trabalho obrigou Ferrari e dois empregados da administração a trabalhar como operários, com diversas horas extras, inclusive nos finais de semana. A conta da folha de pagamento ficou salgada.

O excesso de esforço causou-lhe uma érnea que precisava ser operada, mas tendo que recuperar-se das... Digamos assim, vicissitudes, marcou a operação para a semana de Ferragosto, quando tudo fecha em Piacenza.

Fez a cirurgia e tudo correu bem. Foi levado para um quarto que já acomodava um outro rapaz, às dez e meia da noite do dia 14 de Agosto, véspera de feriado. Acordou na manhã seguinte e cansou de esperar que alguém aparecesse. Impedidos de se levantar, os dois pacientes chamaram, gritaram, mas ninguém apareceu. Com dificuldade, Ferrari conseguiu alcançar o celular no bolso da calça dentro do armário. Ligou para todo mundo, inclusive para o médico dele, para os Carabinieri e à Defesa Civil. Dez minutos depois o quarto do hospital tinha sido invadido por um batalhão de pessoas: bombeiros, o médico, três enfermeiras, os Carabinieri e um jornalista do jornal local. O policial que o conhecia o repreendeu: “só você para se operar no Ferragosto, quando esta ala do hospital fecha”. A namorada virou ex e não deu as caras. Sim, “ex”: viajou para Alexandria, no Egito, e parece que vai se casar com o dono do hotel em que se hospedaram.

E o ano ainda nem acabou.
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10 comments:

myra said...

hhahahaha! coitado:)
boa, um gde abraco!

Sandra said...

Quando a gente pensa que não tá vivendo um bom momento, sempre tem alguém que tá pior :-(.

Celia na Italia said...

Queria saber quem será o padrinho deste casamento :)
Um ótimo domingo!

Denise Rangel said...

Se não melhorar, piora... Ou melhora, pois, é nas maiores vicissitudes que conhecemos quem está à nossa volta!
Abraço, garoto

maray said...

sempre acho que as coisas podem ser piores, ou seja, sou uma otimista de plantão! Se podem ser piores, costumo ficar feliz com as coisas do jeito que são mesmo...
Mas sem querer fazer trocadilho infame e já fazendo, o teu amigo Ferrari está ferrado, coitado ;)

Tati e Seus Nicola'S said...

Por isso que costumo dizer: não dá pra reclamar, pois sempre pode ficar pior ;)

Anonymous said...

Como dizem: Isso também passa... Sejam as alegrias para nos manter com o pé no chão, sejam as dificuldades pelas quais temos que passar. Tudo é um momento. : )

Thais Miguele said...

É, tem anos que são assim. Por exemplo, há um ano atrás, eu morava em Angola, estava bem empregada como gerente de marketing, e tinha um namorado há kms de distância. Agora, moro no Brasil, estou mais ou menos desempregada, e tenho um marido há kms de distância.

Mauro M said...

Ótimo ! ( o texto, não as aventuras do Ferrari ).

Bah said...

AUhauauah coitado...

Kisu!