Não foi
o tempo que parou, só o calendário. Ela trocou o calendário para a parede entre
a sala e o quarto para evitar que a umidade o estragasse. A casa também é
velha, do tempo em que as casas eram construídas com materiais simples, que
respiram, filtram a temperatura e a luz. Além do calendário, só uma medalha
póstuma. Um pequeno pedaço de metal amarelado e envelhecido, recebido muito tempo
depois que ele se foi.
Uma
pequena casa sem flores no quintal e sem cerca para as galinhas que ciscam e
destroem parte da horta. Dentro da casa moram lembranças embaçadas pela idade,
cheiro de minestra fresca e uma velha que não sorri. Observa o calendário e
toca o dia 26 de fevereiro para não esquecer do frio daquele dia, da notícia de
que ele não voltaria e que teria caído como heroi da resistência. Um dia que
dura para sempre e que a mantém prisioneira de um futuro que não aconteceu. Um
coma consciente.
Ele não
cumpriu todas as juras de amor que fez, nem voltou para ser o pai dos filhos
que sonharam juntos. Se rebelou contra a chamada às armas por uma causa que não
acreditava, para lutar clandestino em guerrilhas e montanhas. Nem uma foto ou
carta de amor, somente o calendário que ninguém mexe, esquecido por todos. Como
a velha na horta.
Ela
refaz a horta toda semana a espera que o tempo dela também chegue. Tem medo de
virar a página do calendário e descobrir que o mundo já virou muitas páginas,
de muitos outros calendários. Ela respira devagar. Assim como a casa, a pequena
panela de minestra e as galinhas. Só o calendário não se move na penumbra da
velha casa, distante dos dias ensolarados desse início de outono, perdida numa
montanha do centro-norte da Itália.
Um dia o
calendário desaparecerá, a velha terá ficado velha demais, a cerca não fará
mais falta e as galinhas terão ido parar na minestra.
10 comments:
Esse cenário tem sido cada vez mais raro em nossos dias.
As pessoas das cidadezinhas têm se modernizado.
Nem tanto eu sei, há muitos vilarejos que continuam vivendo sem as cercas para as galinhas...
O caso é que todos nós de uma certa forma também temos fases que nao queremos virar a folha do calendario seja por qual motivo for.
Um dia o nosso calendario também desaparecerá mas vamos continuar marcando dias nas lembrancas dos nossos filhos.
Lindo texto.
Abracos
Lindo texto! Inspirado pelas noites de Angola? Não me parece! Heheheheh!
Allan,
Além de parar o tempo, na tentativa de resgatar aquilo que lhes é caro, também se fecham em si mesmas e não veem o tempo passar. Tão comum isto.
abraço, garoto
Que maravilha!
Nossa geração trilhou caminhos indesejados, forçados por escolhas fundamentais.
Muitos de nós partimos, não tombamos, porém não pudemos voltar, pois como diz Paulinho da Viola "voltar, quase sempre é partir para um outro lugar".
Manoel Carlos
sim, meu querido Allan,os calendarios so servem para nao esquecer que dia é---e como diz o Manoel Carlos nas palavras de Paulinho da Viola:"voltar quase sempre é partir...."
pena que daqui ja nao posso partir...à Italia...ou ao Brasil...
abraços
Lembrei-me de Proust "Em busca do tempo perdido", apesar de que aqui não se busca o tempo perdido, mas fica-se preso a um tempo perdido.
"Mas esses fragmentos, esses momentos do passado não são imóveis; guardaram a força terrível, a feliz inconsciência da esperança, que então se lançava ao encalço de um tempo hoje convertido em passado, mas que a alucinação nos faz, por instantes, tomar retrospectivamente como futuro."
A reminiscência interna e o envelhecimento externo, universos entrecruzados, passado e presente, rememorações e rastros do
vivenciado. O tempo é algoz e somos recipientes de um tempo passado, nada mais.
Boa restinho de semana!!
Eu me lembrei de meu falecido pai. Nos ultimos anos, a casa se deteriorando, a umidade avançando e na parede, de frente a cama dele, somente um quadro: com minha foto aos 5 anos. As bordas amareladas. Hoje, a saudade.
Beijos
Repensando o teu texto me veio a idéia de que vc teve aniversário.
É vero?
Adorei a idéia dos lápis, porque nao pensamos nisso antes??? Estaríamos agora no Estadao, rs.
Vou mostrar ao Daniel quando ele chegar da escola.
Bom fim de semana
Abracos
Allan!!! Que texto perfeito! Na verdade, acho que beeeeeem lá no fundinho do meu coração, tem tbm um calendário parado, num tempinho que, às vezes, volta nos pensamentos... Mas,graças a Deus, eu me sinto mais relutante do que essa velhinha, pois eu me jogo na vida,vivo tudo o que eu posso, para que esse tempinho que ficou pra trás permaneça lá, onde ficou. Parabéns por essas palavras tão lindas!
Abraços do Brasil!!!!!
Lili.
morri de pena da velhinha que não sorri, que vive do que nunca foi. DAs juras de amor não cumpridas, da tristeza de promessas quebradas.
Acho que todo mundo corre o risco de ter dentro de si, a velhinha do calendário empacado.
As vezes ele empaca em momentos bons e nao consguimos ver mais nada a nossa frente. tudo desbota em comparaçao. Outras vezes são moentos tristes que nos mantem cativos. De qualquer forma, a briga contra as barras de ferro é inacabavel!
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