Friday, October 08, 2010

Mulher objeto

Numa antiga carta escrevi: “Eu era muito possessivo, até que um dia completei 16 anos e a coisa mudou.” A insegurança é inerente à adolescência, mas um dia a gente cresce e descobre que é dono da própria vida. O passado é um professor que ensina somente o que o aluno tem capacidade para aprender. Portanto, descarregar a própria culpa em fatos ou situações controladas por terceiros é imaturo e incapacidade de discernimento. Claro que cada caso é um caso e situações dramáticas criam traumas graves, mas as exceções devem ser tratadas como tais. Em pleno 2010 me assusto com a quantidade de adultos que ainda não completaram 16 anos. Seres humanos que tratam outros seres humanos como se fossem objetos de sua propriedade. Poderia viver outros 200 anos e tenho certeza de que ainda me assustaria com tal atitude.

O nome Sarah Scazzi não é apenas a vítima mais recente da espetacularização mórbida da mídia italiana, mas também um dos recentes casos da violência contra as mulheres na Itália. No dia 26 de Agosto ela e a prima Sabrina deveriam encontrar-se às três da tarde para ir à praia, a 18 quilômetros da rua onde ambas moravam. O tio agricultor, pai de Sabrina, que vinha insistentemente insinuando-se à sobrinha, voltou mais cedo naquele dia e, como premeditado, teria permanecido em uma garagem próximo à sua casa onde – não se sabe exatamente como, se com a força ou não – teria entrado com a sobrinha. Após a menina, de apenas 15 anos, recusar-se mais uma vez ao tio, foi estrangulada. Morta, foi violentada, seu corpo foi jogado em um poço, coberto com pedras e sua roupa e celular foram queimados. Celular que o próprio tio “encontrou” há poucos dias, ajudando a polícia a decifrar o mistério, fazendo-o confessar depois de 10 horas de interrogatório, indicando, inclusive, o local exato em que escondera corpo. Terrificante.

Na semana passada uma família paquistanesa só não recebeu a mesma repercussão, talvez por ser estrangeira, mas também foi vítima da violência contra as mulheres. O filho tentou matar a irmã que se recusava a casar-se com um homem escolhido pelo pai, hábito cultural ainda muito praticado nos dias de hoje. A mãe, tentando defender a filha, acabou sendo morta pelo próprio marido. A filha continua internada e talvez sobreviva. A dignidade da família foi preservada mas já não faz nenhuma diferença, pois a família não existe mais. Nos últimos anos desenvolvi um certo medo de ler jornais ou ligar a TV. Se o faço é porque ainda acredito que existam notícias boas e que nem tudo está perdido. Mas a minha ingenuidade tem limite.

A parte mais vil desse comportamento é que raramente tudo acontece às escondidas. Tem sempre alguém que viu, sabe, intui, desconfia, é conivente ou prefere não se intrometer. A lista de mulheres e crianças vítimas de abusos ou violências na Itália cresce assustadoramente. Muitas vezes a vítima sente vergonha em contar para alguém, ou foi ameaçada para não falar; outras, esperam que tudo se resolva sem maiores consequências, (sentindo-se culpadas) acham que não é tão grave assim e que conseguirão encontrar um modo de sair da situação. A vítima de uma agressão não deve se sentir culpada e deve denunciar imediatamente e diretamente à polícia, pois muitos familiares procuram minimizar a situação (“viu, sabe, intui…”). Na Itália, para os casos de abusos contra menores, existe o “Telefono Azzurro”. Basta discar gratuitamente de qualquer telefone o número 19696, se for menor em busca de ajuda, ou 199-151515 para os adultos que queiram denunciar situações de risco ou abuso sobre menores. Às mulheres o número a chamar é o 112, número dos Carabinieri, a polícia militar italiana. Mas também existem centros de apoio que acolhem e apoiam as vítimas da violência. Os mais ativos são os centros nacionais anti-violência AQUI e AQUI, e a associação “Non da sola”.

Segundo o Instat, o instituto italiano de estatística (dados de 2006), 6 milhões e 743 mil mulheres entre os 16 e 70 anos, 31,9% da população feminina italiana, declarou ter sido vítima de violência física ou sexual ao menos uma vez na vida, sendo que 14,3% teria sido vítima do próprio marido/companheiro/convivente. Mais: O próprio Instat afirma que 93% da violência do cônjuge não é denunciada. Estarrecedor, mesmo para um garoto de 15 anos possessivo, mas que nunca foi violento.

Eu, que desde sempre fui contra a violência, contra a pena de morte, a favor do "paz e amor, bicho!" e tornei-me pai de duas moças solares, temo pela incolumidade das minhas três garotas (tem a Eloá, também), tanto quanto temo pela minha reação em caso de violência contra elas. Sei que a situação não é apenas italiana e que em muitos outros países as mulheres encontram-se em situações piores, mas em pleno século XXI esse tipo de situação não deveria encontrar-se fora de controle num país do chamado “Primeiro Mundo”. Ou será que sou ingênuo demais e ranzinza além da conta?

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Atualização:
No caso da menina Sarah Scazzi, o tio foi condenado a pouco mais de quatro anos por ocultamento de cadáver e obstrução à justiça. A história de que ele teria se insinuado à sobrinha e que seria o autor do crime, foi inventada por ele para cobrir a esposa e a filha. A menina foi estrangulada pela prima e pela tia por ser culpada de atrair a atenção de um rapaz mais velho, com quem a prima (22 anos) sonhava ter uma relação. A menina não foi estuprada. O tio jamais se insinuou. A tia e a prima cumprem pena de prisão perpétua.

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POST SCRIPTUM


Borboletas nos Olhos comentou:

"O mais doloroso é que todos esses fatos, graves e reveladores, são tratados isoladamente e não como resultado de uma cultura em que a mulher é, como você bem definiu, um objeto. Mas não é a resposta do medo e sim a resposta da educação, do respeito à diversidade, a valorização da mulher que vai mudar esta realidade."

Era a parte que faltava no meu texto. Obrigado.

11 comments:

  1. meu querido Allan, voce tem, infelizmente muita razao! è terrivel o que acontece!!!
    obrigada pelo comentario, as moças tem que tomar mto cuidado nestes dias...
    um gde abraço

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  2. Anonymous3:54 PM

    Que histórias horríveis, muito triste ver tudo isso acontecendo. Sempre fico em dúvida quando vejo esses telefones de ajuda, pensando se realmente vão fazer alguma coisa para proteger a vítima e prender os culpados. Podem chamar de neurótica, do que quiserem, mas tenho medo de tudo, ando pelas ruas sempre com medo.

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  3. Oi Allan!
    Também estou acompanhando esses casos e estou chocada.
    Acho que vc tem toda a razão.
    O mundo está minado de psicopatas, prontos para fazer coisas horríveis.
    Bj!

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  4. O mais doloroso é que todos esses fatos, graves e reveladores, são tratados isoladamente e não como resultado de uma cultura em que a mulher é, como você bem definiu, um objeto. Mas não é a resposta do medo e sim a resposta da educação, do respeito à diversidade, a valorização da mulher que vai mudar esta realidade.

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  5. O abuso e a violência contra a mulher tem que acabar. Infelizmente esta realidade que você postou aí na Itália, acontece em muitos paises também.
    Bom domingo!

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  6. Meu marido disse uma coisa certíssima: no caso da pobre Sarah não se trata de patologia mental, mas de patologia social. É o triste encontro entre o homem medieval e a velina. Que acontece todo dia nas mil e quinhentas avetranas da vida.
    Abs

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  7. Allan,
    ontem passou um caso no jornal de meio dia por aqui de uma onde o marido cortou-lhe o nariz. Ela foi para os EUA e lá os médicos reconstituiram um nariz para ela. A cena foi chocante e ela foi capa na revista Time deste mês.


    Como você mesmo escreveu no início dessa postagem: "O passado é um professor que ensina somente o que o aluno tem capacidade para aprender".

    Triste tudo isso.

    Abracos

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  8. Por acaso, hoje estava revendo o caso do filho de Marlon Brando que matou o cunhado porque a irmã confessou que ele a espancava. Este caso acabou com a família e a moça entrando em depressão profunda culminando em suicídio. Penso nos casos que não chegam ao público e que dentro dos 'lares' encerram tanta violência. Desvio de caráter, psicopatia... famílias doentes? Para nós 'normais', sim! Mas para eles, existe todo um fundamento e muitas vezes, colocam Deus no meio. Beijus,

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  9. Anonymous6:04 PM

    Oi Allan , passo por aqui e leio de vez em quando. Esse caso ( e como esse muitos outros infelizmente) è triste sim.
    O que me amarga è a televisão ficar encima assim, tão ferozmente.
    Quando mataram o "sindaco" falaramn 2 dias e depois silencio.
    Abraços
    cele

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  10. E o medo que eu passo, criando duas adolescentes no Oriente Medio, onde a lei diz que o homem tem o direito de bater na mulher, mas nao pode deixar marcas nao... E as marcas na alma, alguem ta contando???

    www.inaier.blogspot.com

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  11. Realmente são situações tristes. Um texto que li uma vez fala que por mais que a mulher lute pela igualdade dificilmente ela consegue. Por que? Por que ela ainda é frágil e não é igual ao homem. Lá conta alguns exemplos: ela é mais alvo de golpes, se um homem e uma mulher forem roubados a chance de a mulher morrer é maior além de que dificilmente um homem sofre mais atrocidades ao ser roubado já a mulher ao ser roubada também é estuprada e morta. Tenho orgulho de ser mulher mas ao mesmo tempo tenho medo. Tenho medo de me relacionar com alguém e passar por isso. Sei que não é só eu que penso assim. Esses casos me fizeram lembrar da mulher aqui no Brasil que foi espancada por 4 horas sem interrupções. Todos os casos nos deixam assustadas.

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