Sunday, November 01, 2009

Fêisbuk

A matéria em uma das páginas internas do jornal não chamava a atenção. Era uma daquelas linguiças que enchem os jornais em períodos festivos; só resolvi contar para que outros conhecessem a história dela. Ela que já nem lembrava que existia um motivo para existir. Apenas deixou-se envolver na rotina de todos os dias como se houvesse piloto automático, até que completou cinquenta anos. Como presente, recebeu o computador usado do filho caçula, o último que saiu de casa, formado e casado.

No início faltou empolgação, mas no vazio da casa e com os dias que pareciam mais longos, foi aprendendo aos poucos com a vizinha, que se comunicava com a prole espalhada pela península através de fotos, filmagens, e bate-papos pela web cam. Logo, logo, ela também aprendera a viajar pela tela do computador. Só não podia dedicar muito tempo para não atrasar o almoço, o jantar e para não esquecer de deixar a casa como o marido gostava de encontrar. Ele, sim, nunca se aposentaria e o filho mais velho só herdaria o grande escritório de contabilidade quando o velho batesse as botas. Ela recordou do diploma de ragioniera (técnica em contabilidade) emoldurado e guardado em alguma caixa no sótão, o que lhe teria permitido trabalhar com o marido e, quem sabe, ser sua sócia. Mas a ideia morreu quando nasceu o primeiro filho, logo após o diploma, ainda menina. Depois, vieram o casal de gêmeos e o caçula. Pronto. Os cinquenta se apresentaram depressa e ela nem viu o tempo passar. Só quando o caçula deu aquele sorriso satisfeito, ao sair pela última vez da casa dos pais, ela se deu conta do tempo.

Não era muito curiosa, mas aprendia fácil. No computador descobriu como procurar velhos amigos, os parentes na Sicília e chegou a montar uma página sua, com a foto do dia da formatura do Istituto di Ragioneria di Licata. Relembrou velhos amores e, só por curiosidade, deixou um recado na página daquele cinquentão vistoso, que um dia fora o seu grande amor. Seguiram-se trocas cordiais de velhas fotos, novas piadas e a chama parecia reacender.

O jantar começou a atrasar, a casa já não brilhava, a tv sempre desligada. Nem na vizinha aparecia com a mesma frequência. “Depressão”, comentava-se. A gota d’água aconteceu quando o filho gêmeo avisou que passaria o Natal na casa dos sogros, em Nápoles. “Aquela puttana vem tentando separar você da sua mãe e você acha isso a coisa mais normal do mundo?” berrou ela no meio do almoço do domingo, um dos raros momentos em que a família ainda se encontrava. E “aquela puttana” estava sentada do lado oposto da mesa. O que seguiu foi uma cena digna de um filme italiano sobre uma família italiana. O pior é que ninguém ficou do lado dela. Quer dizer, todos tentavam acalmar a situação, mas ninguém lhe disse “tens razão” e isso foi o que mais doeu. A discussão durou mais de uma hora, com ela se lamentando pela ingratidão dos filhos, pela frieza e distância do marido e a cada nova “puttana” que ela gritava a confusão recomeçava.

Mas o tempo tem o poder de mudar tudo e, em uma semana, lá estava ela, de vestido preto – como manda a tradição siciliana – batendo à porta daquele cinquentão vistoso, queimado pelo sol de Licata em horas e horas de mar. Entrou na casa simples com as portas que mostravam o mar da Sicília, aceitou o chá, conversaram sobre filhos, casamentos desfeitos e sonhos que ficaram. Mas aquele lobo de mar deixou claro que preferia continuar assim, sem ninguém que o esperasse. E que o amor que um dia existiu, era por aquela garota da foto do Istituto di Ragioneria di Licata, não por aquela senhora gordinha, de mãos pequenas e grossas, cabelos curtos e olhar triste. Não, ela também se tornara um sonho amarelado naquela foto. Se despediram amigavelmente e ela decidiu que nunca mais voltaria à Sicília. Já nem havia lágrima ou vontade de chorar.

Aceitou viver de favor com a irmã, na mesma Milão que tinha deixado dias antes. Trabalhava de noite, fazendo limpeza em shopping centers e foi assim que acabou no jornal, na foto anônima que ilustrava uma matéria sobre trabalhadores na noite de Natal. Um grande suspiro ao ver a foto no dia seguinte, no jornal que ela apertava sobre o colo. O computador e o diploma foram deixados lá no quarto do filho caçula, com aqueles cinquenta anos doídos e uma foto velha do Istituto di Ragioneria di Licata.

7 comments:

Juju said...

vc sabe contar uma história Allan, muito bom mesmo, algumas mulheres ainda sofrem o "ninho vazio", crescem pensando em cuidar da casa, dos filhos e do marido, esquecem de se cuidar, fisica, intelectual e emocionalmente.
vi esta triste figura que vc descreve, são tantas...

bem, quanto ao maracujá, logo teremos muitos por aqui, vem pra Salvador prová-los!

bjs
Ju

Anonymous said...

Oi Allan.

Que história mais triste.
Mas é a realidade de muitas mulheres, infelizmente.

Bjs.
Elvira

denise rangel said...

É a realidade de mulheres que entregam a responsabilidade de ser feliz a outra pessoa. Cada um deve ser responsável por sua própria felicidade. Marido e filhos se vão. Cabe a nós decidirmos que tipo de vida iremos ter. História muito boa, embora triste. Já fiz meus cinquenta, todos já se foram, a casa está vazia, mas o coração está cheio de esperança, planos e muita vida.
abraço, garoto

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ said...

Allan um belo e real conto.
No ano passado assisti um documentário bem parecido de pessoas que trabalham à noite limpando os banheiros públicos. E de suas novas amizades noturnas com pessoas que passam ali toda semana;
Mas no fundo com certeza cada um sofre de solidao.

Boa semana, parabéns pelo conto.

Anonymous said...

Triste e belo.
Manoel Carlos

Vivien Morgato : said...

O texto mais cru e real que já li nos útlimos tempos. Triste de cortar os pulsos, Allan.
Tõ linkando o texto no twitter, beijos.

Segunda impressão said...

Saudades daqui!
Adoro filme italiano e família italiana!
Coitada desta senhora...