Sunday, April 05, 2009

Sobre nós e laços

Lembro de quando tudo o que eu queria da vida era ser um grande jogador de bolinhas de gude. Não o melhor jogador de bolinhas de gude do mundo, queria apenas ser melhor que o Clóvis. Ele, sim, era o melhor jogador de bolinhas de gude do mundo. Mas isso não importava, pois eu só queria ser melhor que o Clóvis. Foi ele quem rapelou todas as bolinhas de gude do meu embornal, um saco de pano que servia para guardar bolinhas de gude e os sapotis que enterrávamos para amadurecer. Ficava olhando de longe, comendo sapoti enquanto o Clóvis rapelava alguém que precisava demonstrar ser homem. Quem parava antes de perder tudo era considerado café-com-leite e ninguém jogava com os cafés-com-leite. Às vezes a campainha da escola salvava a vítima, mas normalmente o estrago era irremediável. Eu ficava olhando, de longe, preservando minhas bolinhas de gude e minha reputação.

Quando nos mudamos do Rio perdi o contato com todos os amigos e menos amigos. Novas amizades, novos Clóvis e uma lição a menos para aprender. Muitos dos grandes amigos simplesmente desapareceram. Aliás, foram substituídos, o que é normal para um garoto de 11 anos, mas lembro deles sempre e, às vezes, penso em como estarão hoje.

Na adolescência os laços ganham maior importância, mas também acabei perdendo o contato com grandes novos amigos. Morei em muitos lugares e a cada nova mudança os laços se desfaziam, restando apenas aqueles mais fortes. Com os parentes também foi assim. Por onde andam meus primos? Alguns nem conheci, ainda. Mas lembro sempre. Notícias esparsas e a minha capacidade de ser absurdamente distraído. “Mas já passaram vinte anos?”

Longe. Mais longe do que gostaria de estar neste momento, mas essa é uma daquelas amizades que resiste a tudo. Impotente diante da fatalidade que o risco de viver comporta, solidário na medida do possível, porque a solidariedade de quem está longe se manifesta sem contato físico, e um forte abraço pode confortar.

Lembro dela como uma moça decidida. Não aquele tipo de pessoa que vai conquistar o mundo, mas o tipo que deixa claro desde o início que irá viver a própria vida buscando as próprias respostas; que não tem medo dessa aventura que é entregar-se às emoções e exigir sempre mais; que olha nos olhos e fala de modo direto; que não tem medo de mudar de rumo. Lembro dela com um sorriso que brilhava no rosto e que contagiava.

É isso. Perdemos alguns laços – que podem ser tantos – e os que ficam tornam-se muito importantes. Gozamos e sofremos juntos. Nos resignamos com a vida que continua, apesar das perdas. Às vezes, nem mesmo um abraço conforta.

19 comments:

Claudio Costa said...

Sua "crônica" de hoje me emocionou e, com certeza, tocará o coração de tantos que o lerem. É exagero igualar todos os laços sociais ao amor, mas há um quê de amorosidade neles, um desejo de permanência dos prazerosos e úteis e o afastamento rápido daqueles que nos causam mal. O sofrimento da perda é quase sempre superado pelo prazer de novas alianças, mas há sempre algumas marcas indeléveis, cuja dor constitui o tal "doce pungir de acerbo espinho", ou seja, a saudade.

Leila Silva said...

Eita, Allan!
Você escrevinha bonito mesmo.

Que lindo texto, sério, me fez pensar muito aqui neste domingo de manhã.

abraço

Manoel Carlos said...

Pois é... cada lugar uma vida nova, no antigo lugar uma vida nova para os que permaneceram e os que chegaram, por isto recorro sempre à frase de Paulinho da Viola: "voltar, quase sempre é partir para um outro lugar"
Manoel Carlos

Unknown said...

Allan, me emocionei, belo texto.

parece que vc me descreve:

Lembro dela como uma moça decidida. Não aquele tipo de pessoa que vai conquistar o mundo, mas o tipo que deixa claro desde o início que irá viver a própria vida buscando as próprias respostas; que não tem medo dessa aventura que é entregar-se às emoções e exigir sempre mais; que olha nos olhos e fala de modo direto; que não tem medo de mudar de rumo.


sou eu!

um beijo carinhoso
Ju

maray said...

eu colecionava bolinhas de gude que achava e/ou roubava dos meus irmãos. Tinha que esconder, pra não brigarem. Desde aquela época, adoro vidro. hoje coleciono bolas de vidro, mas gosto mesmo é daquelas de gude, que a gente achava no armazém da esquina...ainda bem que a gente lembra, né? Enquanto lembrar, a coisa vive. Dentro da gente, mas vive.
beijão

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ said...

Oi Allan, como está a Itália depois desse terremoto?

Olha, sinto saudades também. Ainda na semana passada fiquei pensando nas minhas amigas do grupo escolar. É uma pena que eles e nós nos vamos e nao temos mais como saber na maioria das vezes.

Nem sei se alguns se lembrariam de mim como eu me lembro deles, até porque eu tenho uma memória de elefante, diferente da sua.

Mas a vida é um vai e vem tremendo, nem te conto.

Boa semana

Lindo o teu post. Eu tb joguei muita bolinha de gude e "a vera", rs.

Abracos

Claudio Costa said...

Estou sabendo agora do terremoto que atingiu a região central da Itália. Tudo bem por aí?

Maria Augusta said...

Alain, a menos que estivesse programado, este post de hoje à tarde deve significar que está tudo bem com você...assim espero.
As contínuas mudanças sempre nos fazem ir perdendo amigos e ganhando outros, mas estes que resistem ao tempo e às mudanças são os melhores. Muito bonita esta tua crônica.
Abraços.

Anonymous said...

Ah, poxa!

:(

Perdi muita gente pela vida e ganhei outras, mas nenhuma substituiu aquelas. As pessoas somam tristezas e alegrias e associamos amigos com alegrias. Ninguém sente saudades de coisas tristes!

Mande notícias!! Beijus

Segunda impressão said...

"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te." (William Shakespeare).
Laços de amor, de amizade, de momentos vividos... Criar laços, eu penso que é uma forma de dar continuidade a vida acalentando o coração.
Abraço.

anamaria said...

caro Allan. Seu post de hoje é muito melancólico, mas gostei imensamente já que todos que passam de uma certa idade sente nostalgia de tantas coisas vividas. Gostei. Abçs.

Anonymous said...

Nossa moço, eu já senti isso tantas vezes, foram tantas as mudanças. As idas e vindas... Agora fiquei eu aqui com um nó apertado na garganta.
Sabe? Quando vim para o Brasil logo após a morte dos meus pais sentia falta dos meus amigos (de verdade) da minha casa, da minha vida e pensava que seria mais fácil ter morrido com eles.
Então conquistei tudo de novo e perdi novamente quando pude enfim voltar para casa com a maioridade. Mas nessa altura já tinha entendido que não havia perdido absolutamente nada, muito pelo contrário.
Bacio en tuo cuore carissimo, grazzie

Madureira said...

ah, como sempre, veio uma inspiração por parágrafo, desse teu post. que coisa boa que é ler isso tudo.
satisfação!

Maria Augusta said...

Alain, passei para te desejar uma Feliz Páscoa!
Um grande abraço.

Dentro da Bota said...

Ola...
Passando para desejar uma otima Pascoa!!!!

Gi!!!!!

Segunda impressão said...

Ciao!
Te desejo uma doce páscoa!!!
Abraço!

Meire said...

Bom dia Allna e Boa Pasquetta!
Eu tb recordo com saudades dos amigos da minha infancia, nao sei por onde andam, o que fazem, se venceram ou nao, mas é a vida.
Bjs
Meire

Movimento Natureza said...

Allan, as primeiras árvores para o nosso Movimento Natureza já estao sendo plantadas e de um modo super especial. Veja quem foi a primeira a plantar sua árvore e de um modo bem especial. http://novitazinha.blogspot.com/2009/04/quase-um-conto-de-fadas.html

Um abraco Georgia

Martinha said...

Uauuuu..
Que texto lindo..
Amei..
Otimo fim de semana..
=)