Saí do trabalho ao meio-dia, mas não para ir almoçar em casa, como de costume. Precisava passar no banco e pegar o resultado do exame de sangue. Há muito não ia fazer um depósito no banco, pois o salário e as contas entram e saem automaticamente da conta. Mas dessa vez precisava ir pessoalmente: a empresa de telefonia havia enviado um cheque para restituir uma cobrança errada. A moça do caixa ainda perguntou se eu queria que ela me informasse o saldo. “Nem morto!”, respondi. O resultado do exame me tranquilizou, os triglicérides baixaram muito e estão pouco acima do normal, enquanto o colesterol decididamente entrou nos eixos. Não daria tempo de passar em casa e almoçar com as meninas e voltar às duas para o escritório. Decidi comemorar as boas notícias.
Parei a bicicleta na frente de um bar qualquer e pedi um copo de vinho tinto, um sanduíche de coppa piacentina e um de salame felino. Coisas simples, dessas coisas que se encontram em qualquer boteco da região. “Gutturnio?” perguntou o balconista sobre o vinho. “Và bene.” Respondi. Enquanto recuperava um pouco dos triglicérides e muito do colesterol economizados nos meses antes do exame, não pude deixar de ouvir a conversa de um grupo de operários que tomavam café ou o aperitivo antes de voltar ao trabalho. Pelo que entendi, a empresa em que trabalham está enfrentando dificuldades e os rapazes brincavam com um deles, um negro que me pareceu acostumado à brincadeira.
- Escuta Steve, você vai ter que voltar para a Costa do Marfim. Aqui não vai sobrar trabalho nem mesmo para nós, italianos.
- Pode deixar que eu sei me virar. É você quem tem que se preocupar, pois não gosta de pegar no pesado.
- Mas com a empresa fechando, não vai sobrar nem pesado nem leve. Caput! Fim! …
- Fim pra você. Eu vou aproveitar o primeiro mês para passar umas férias no meu país. Depois volto, trabalho uns dois ou três meses in nero (em negro – sem carteira assinada, de forma irregular), somo a grana com o seguro desemprego e só depois é que vou procurar trabalho.
- E que trabalho in nero você vai fazer?
- Fazendo limpeza em escritórios, à noite. São duas horas por dia e quinhentos euros por mês. Trabalhei no verão passado para sair do sufoco com o nascimento do meu filho.
O outro se interessa e começa a falar sério:
- Puxa, Steve, quinhentas pratas por duas horas de trabalho, mais o seguro desemprego? Me arranja uma boca que eu tô nessa…
- Você não pode trabalhar in nero, Beppe.
- Por que…?
- Porque você é branco – responde Steve sorrindo.
- Mas trabalhar in nero não significa que tem que ser negro…
- Não, você não sabe como funciona. Vou te explicar: quando um africano viaja para o seu país, vai na delegacia e diz que perdeu o visto de permanência. Eles dão uma segunda via para permitir o retorno na Itália. O amigo deixa o visto original com alguém, que vai trabalhar no lugar dele, normalmente com cooperativas de mão-de-obra que utilizam muitos estrangeiros. Para quem viaja é bom, pois o INPS continua a ser recolhido e ele sempre terá como provar que não é vagabundo. Para quem trabalha no lugar do outro, o dinheiro extra sempre ajuda.
- Mas como é possível? E na hora de mostrar os documentos?
- Ora, eu entrego o visto do meu amigo, o cidadão olha para o documento e vê a foto de um preto, olha para mim e vê diante dele um preto. Que dúvida pode haver?
Não resisti e perguntei: “E os negros têm a mesma dificuldade em diferenciar os brancos?”
“Identifico melhor um negro que um branco, mas com japonês é impossível. Japonês é tudo igual.”, respondeu balançando a cabeça.
Tinha acabado a hora do recreio. Tomei um café, paguei minha conta, cumprimentei os que ficaram no bar e fui pedalando lentamente em direção ao trabalho. Pedalando e refletindo.
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Belo texto, bela crônica. E não obstante a reflexão em si, é muito bom poder passear por outros países, outras culturas e outras formas de ver a vida. Parabéns, caríssimo. Seus textos são sempre ótimos.
ReplyDeleteallan, bom saber que a saúde está em dia. nascer em país pobre tem lá suas vantagens. o povo aprende a se virar e está pronto pro que der e vier.
ReplyDeletequanto ao saldo bancário, também dispensaria me informar sobre a situação crítica do meu. ;-)
Allan, bom saber que está tudo bem com vc.
ReplyDeleteMinha mae tem esse tal de triglicérides, quer me dar uma dica de como ele pode ser abaixado?
O conto do negro é ótimo.
E a laranja vermelha é muito boa mesmo. O suco uma maravilha.
Boa semana
Carissimo, se você tem pique para andar de bicicleta e depois ainda tomar vinho, fico mais tranquila. Bom saber que você "vai levando", viu. A vida é cheia de tropeços mas, sempre digo: preferisco badare a me. Mil beijos!
ReplyDeleteUm amigo meu é alemão e estava num congresso na China, estava conversando com um estudante chines qdo descobriu q era aluno de uma professora q ele ajudou e queria conhece-la. O aluno se prontificou a buscar a professora e falou para o meu amigo: num sai daqui nao, vcs brancos sao todos iguais e se vc sair daqui eu posso nao te reconhecer, ta?
ReplyDeleteAllan, deliciosa crônica, como sempre. Interessante este ponto de vista, dos negros para com os brancos e vice-versa, não? Será que os japoneses se identificam bem? Aposto que sim! hahahaha
ReplyDeleteBeijo
Ana
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