Tuesday, July 18, 2006

De Volta Ao Purgatorio

São sete da manhã e o rádio toca pra me acordar com uma canção triste de roer o coração. O calor espalhado pelo ventilador me encharca e me irrita. Desligo o rádio. A luz embaçada da pequena janela do banheiro me confirma que o dia amanheceu. Me lavo o rosto e me acendo um cigarro, pra me tirar o gosto amargo do vinho barato que me serviu para afogar a tristeza pela derrota de ontem: França 4, Itália 1, nos pênaltis. Franceses de merda! Troco a camiseta suada por outra limpa, me controlo a silhueta barriguda no espelho, me visto uma camisa, a calça e ponho um sapato. Cadê minhas sandálias? Junto a roupa suja pra lavar, saio e vou tomar café na trattoria do Marco, na praça. No caminho deixo o saco de roupa na casa da dona Alba, que está de .

Na trattoria, me espera Giovanni.

- Beppe, tem uma carga pra levar agorinha de manhã para San Giuseppe Vesuviano.

- Engulo o café e vou. Onde pego a mercadoria?

- Em Nola. E depois leva pro Vito, em San Giuseppe.

- Marco, meum capuccino, uma brioche e um maço de MS.

- Toma. Salvatore te mandou um envelope extra por você não ter participado da última greve dos transportes.

- Valeu! Sem o Seu Salvatore a vida ia ser difícil, vai dizer?

O sol me castiga as costas e a lembrança do jogo de ontem. Vagueio lentamente longe do caminhão enquanto os rapazes o carregam. É a regra. Me acendo outro cigarro enquanto me repasso as jogadas, os dribles, o empate, todos os penaltis que perdemos e a festa dos franceses. Não posso esquecer de pegar uma garrafa d’água, ou o calor vai acabar me matando. A cabeça me gira e os óculos escuros mal servem pra me proteger desse sol enorme. Meto a mão no bolso da calça e pego o envelope do Seu Salvatore. A nota do diesel vem junto. Uso um toco de lápis pra escrever meu nome no verso dela e coloco dentro do envelope pra não perder. Conto o dinheiro e sorrio: “…por você não ter participado da última greve dos transportes.” Como se alguém participasse de alguma greve por aqui. Nada de paradas durante as entregas e nada de greves. É a regra.

Garrafa d’água na mão, entro no caminhão. Me despeço com um aceno mas não tem ninguém pra me responder. Finjo não notar o carro que me segue à distância enquanto faço o caminho que me leva a San Gennaro Vesuviano. A bola me passeia na cabeça; o cigarro, entre os dedos. O gosto ácido da derrota não me sai da boca e acho que não me sairá nunca. Na saída de Nápoles um comando da Guardia di Finanza pára alguns veículos, mas eles me ignoram. É a regra. Sigo em frente. Faço a curta estrada sem rever meus anjos da guarda. Talvez tenham parado pra um café ou uma água, sei .

O estacionamento no depósito do Vito em San Gennaro Vesuviano está deserto. Não encontro ninguém e deixo o caminhão estacionado assim mesmo. Ponho a nota do diesel no pára-sol, escondo a chave debaixo do tapete, mesmo sabendo que aquele caminhão jamais seria roubado e bato a porta. Vou ao oratório de San Gennaro, ali ao lado, pra tradicional oração de agradecimento. Missão cumprida, volto pra casa.

- Marco, um spaghetti ai frutti di mare e um copo de branco, que picada de cobra se cura com veneno de cobra. Vai dizer?

É hora do almoço e a trattoria está cheia, como sempre. O assunto ainda é o mesmo: futebol. As mesas na calçada permitem que o vento do mar refresque um pouco o início da tarde, traz o cheiro de peixe dos barcos no porto e formam a plateia que observa o vai e vem de saias curtas e coxas torneadas. Me acendo um cigarro e uso o prato vazio como cinzeiro. Localizo um par de pernas que gostaria de conhecer melhor, mas um burburinho dentro da trattoria me chama a atenção. Entro e descubro pela tv que o depósito do Vito em San Giuseppe Vesuviano foi invadido pela Finanza.

- San Giuseppe… Puta que pariu! Eu devia ter ido pra San Giuseppe, não pra San Gennaro.

- Beppe… Tudo bem?

- Marco, meum copo de grappa… Duplo!

Me viro a grappa num gole e dou longas tragadas no cigarro enquanto acompanho a notícia. A maioria das pessoas na trattoria trabalha direta ou indiretamente pro Seu Salvatore. O suor que escorre nos rostos não tem nada a ver com o calor sufocante da trattoria. A polícia não encontrou nada no depósito e continua investigando. Alguém dedurou que hoje teria uma entrega especial, mas o único motorista que prenderam estava limpo. Nem os dois capangas que pegaram pelo caminho tinham nada. Reconheço o carro deles, que sempre me acompanham nas entregas. Sem querer, acho que me salvei a pele, a do Vito e a do Seu Salvatore. Me acendo outro cigarro e saio, acompanhado por outros rostos assustados, em silêncio e de cabeça baixa.

- Puta que pariu! Eu devia ter ido pra San Giuseppe…

A grappa me começa a fazer efeito. O medo por quase ter sido preso me faz a garganta pulsar e um suor frio me gela a testa, apesar do calor desse verão napolitano. Respiro com dificuldade o ar quente que não me chega a encher os pulmões. Entro em casa com os olhos turvos, me tiro os sapatos, a camisa suada e desabotoo a calça. Me sento na beira da cama e olho em volta, confuso ou bêbado. Cadê minhas sandálias? Me deito e o quarto começa a girar. O braço esquerdo me dói e me vem uma fisgada no peito. Me falta o ar. Abro a boca como um peixe desesperado. A dor aumenta. …EscuroTudo escuro

Uma luz se abre e o corpo me parece flutuar. Tudo é claro e nem preciso dos olhos pra ver em volta. É a mesma Nápoles, que vai clareando até virar outro lugar. Um lugar calmo e branco, como a própria luz. Uma sensação de bem-estar me faz ter vontade de caminhar. E caminho. Caminho longe e tudo me parece familiar e tranquilo. Até o enorme portão na minha frente. Cruzo com pessoas que me conhecem, me sorriem e me acenam com a cabeça. no alto, distante, rostos sérios conversam concentrados. Subo até o grupo e tento falar. Ninguém me nota. Parecem muito ocupados. Alguns têm barba que coçam com ares de filósofos. A brisa fresca folheia calmamente um imenso livro ao lado do grupo.

- Ele vai voltar logo

- Incrível essa paixão por essas coisas como o futebol.

- Lambe a cria

- E esse hábito de tirar férias, ir à praia… Parece um menino.

- É, também, um menino.

O grupo me ignora. Ou não me . Espero uma pausa pra poder interromper, mas eles continuam falando, falando. Seu Salvatore detesta ser interrompido, mas sabe dar uma pausa pra se dirigir a quem o espera e dar uma satisfação, ou ouvir. Esses, não. Continuam falando pelos cotovelos.

- Mas por que essa insistência de tirar férias com o coisa ruim?

- Sossega! Você sabe que não podemos usar esse tipo de expressão aqui. Diga o nome dele e pronto. E lembre-se de que foi um dos nossos. Pode acontecer com qualquer um.

- Ele não deixaria acontecer de novo.

- Livre arbítrio, caro. Livre arbítrio.

- É? E a interferência no futebol?

- Interferência, não: torcida. Ele é brasileiro, todos sabem.

- A torcida não funcionou neste ano

- Ele se irritou com todas aquelas ruas enfeitadas, aquela festa em meio à miséria, a ilusão de que tudo se resolve com um título de Copa. Ficou desgostoso e resolveu tirar férias.

- Desculpe… Alguém me pode explicar tudo isso…?

Ninguém me ouve. É como se eu não existisse. Sei que é um sonho, mas tenho certeza de que é real. Vinho. Sinto gosto de vinho. Me estalo a boca pra me certificar: é vinho. E do bom. Ao lado do livro um velho com longas barbas ronca. Está dormindo abraçado numa enorme garrafa de champanhe. Me aproximo e sinto o cheiro de mar, como nos homens do porto da Nápoles. Cadê a cidade? Olho em volta e descubro que é outro lugar, é lugar nenhum. Nãonada a não ser uma nuvem de luz, como se uma neblina nos separasse de todo o resto. Me pego emprestado o par de sandálias que está ao lado do velho sem interromper o sono dele. Detesto andar descalço. Enquanto me coloco as sandálias, o vento continua a folhear o grande livro. Parece um daqueles que o Vito usa pra contabilidade, que muito maior. O grupo ao meu lado continua conversando e me ignorando. Observo o livro e descubro que as grandes folhas são datadas. Que dia é hoje? Faço um esforço pra lembrar do jogo de ontem, que me parece um sonho. 9 de julho de 2006, dia da final Itália-França. Então, hoje é dia 10. Procuro a data e encontro um monte de coisas escritas, mas num segundo acho meu nome: “desencarna para avaliação e pode voltar ao purgatório para uma última chance”. Apavorado, me tento apagar com o dedo. Não apaga. Meto a mão no bolso e encontro o toco do lápis, que uso pra modificar nome e sobrenome. Me viro um monte de páginas adiante e reescrevo tudo. Volto pra página de ontem. Tá o resultado: França 4 x 1 Itália. Franceses de merda! Com o lápis transformo o 1 em 6 e que se dane, vai dizer? Alguém olha na minha direção. Me escondo o lápis no bolso e me levanto.

- O que você está fazendo? – Pergunta ele.

- Estou folheando o livro

- Ninguém pode tocá-lo! Você não conhece as regras? Aliás, eu não te conheço…?

Os outros se viram e se aproximam. O velho ao lado do livro continua a dormir. Abaixo a cabeça e me tento explicar, mas ele me interrompe:

- Você sabe que ninguém pode subir aqui. Por que não está com os outros?

- Desculpe, não estou entendendo nada, Seu... Seu...

- Gennaro. San Gennaro. E você corre o risco de uma séria punição.

- Desculpe Seu Gennaro, não queria causar tumulto. me perdi, como de costume. Mas pelo menos alguém me deu atenção, vai dizer?

- Volte ao seu lugar! E lembre-se: você tem uma dívida com San Gennaro.

Vou descendo sem jeito, com a sensação de saber o que está acontecendo mas que prefiro não lembrar. Mais em baixo os outros me sorriem e me acenam com a cabeça. Me afasto até encontrar o imenso portão. Passo por ele e a neblina vai ficando mais escassa. O barulho de Nápoles vai crescendo aos poucos, à medida que caminho e me distancio dos outros. Cores pálidas vão se misturando ao branco opaco até colorirem tudo de novo. Sinto o cheiro do porto, do mar. Me estalo a boca e me vem um gosto de grappa. É Nápoles!, reconheço a cidade. Me sinto flutuar, mas estou no meu quarto. A cabeça me gira e me sento na beira da cama. Deito e me sinto uma dor no peito, mas é como se a dor me saísse…

São sete da manhã e o rádio toca pra me acordar com uma canção triste de roer o coração. O calor espalhado pelo ventilador me encharca e me irrita. Desligo o rádio. A luz embaçada da pequena janela do banheiro me confirma que o dia amanheceu. Me lavo o rosto e me acendo um cigarro, pra me tirar o gosto amargo do vinho barato que me serviu para festejar a vitória na final de ontem: Itália 6, França 4, nos penaltis. Somos grandes! Troco a camiseta suada por outra limpa, me controlo a silhueta barriguda no espelho, me visto uma camisa, a calça e ponho a sandália, que não parece ser a minha mas me serve. Junto a roupa suja pra lavar, saio e vou tomar café na trattoria do Marco, na praça. No caminho deixo o saco de roupa na casa da dona Alba, que está de . San Gennaro Vesuviano. Hoje tenho que ir a San Gennaro…

16 comments:

  1. Anonymous12:40 PM

    Muito bem escrito. Fiquei pensando cá com os meus botões como o futebol é marcante na vida das pessoas. Gostei muito. Beijocas

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  2. Anonymous3:31 PM

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  3. Anonymous11:07 PM

    Italiano biajoniano? Hahahaha...
    Ele também tem tara pela Hello Kitty???

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  4. que post gigante eim
    beijos e uma ótima semana

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  5. "Me acendo outro cigarro enquanto me repasso as jogadas, os dribles, o empate, todos os penaltis que perdemos e a festa dos franceses" - eu adoro esses ME.
    :>)
    excelente conto, allan... vamos juntar um povo e publicar o FAMOSO livro?
    ;>)
    abrazo.

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  6. e ah, sim, vai dizer?
    :>)))))

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  7. passei só pra ver se vc tinha atualizado eu já escrevi no meu
    beijos
    =*

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  8. Anonymous12:26 PM

    Andrea Camilleri se fumasse uns baseados depois de uma conversa futebolistica com Aldo Biscardi, não faria melhor.

    Só um problema. Voce é um gande ecritor, mas como não gosta de funghi, perde muitos pontos no meu ranking. :-)

    Outra coisa, napolitano dizendo "vai dizer" foi genial, vai dizer?

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  9. Allan, obrigadíssima pelas dicas sobre o aterro sanitário lá no blog. Eu sugeri a compostagem, mas o prefeito quer uma solução milagrosa e rápida. Eu sugeri que o aterro fosse feito em outro bairro (mas não sabia esta história dos ventos não)...agora vamos ver.
    a cidade aqui é pequena, mas tem 70 mil habitantes e educar este povo para separar o lixo é complicado. Mas eu tb sugeri isso pro pessoal que trabalha com educação ambiental. Aqui tem mais urubu que gente, e o lixo espalhado em tudo qto é canto é um horror. Depois volto para te contar tudo.
    Beijos

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  10. Anonymous9:56 PM

    Grappa de Napolis marca Vesuvio? Que bode... Mesmo bebado voce escreve bem! Um sopro no lugar do beijo porque tá um calor da peste.

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  11. É o que todos queremos - às vezes, claro: reescrever a história. Pena que a vida não tenha rascunho, como dizia Kundera.

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  12. Anonymous10:28 PM

    Ah... Sim, sim! Como bem lembrou o Flavio, o "vai dizer?" merece outro "abrazo" do Bia!!!

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  13. Ótimo conto! Aliás, o futebol tem rendido textos duca.
    gd ab

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  14. Anonymous6:32 PM

    Muito bom o texto. Adoro ler algo que deixa de lado o narrador e põe a primeira pessoa a falar. Sou tarado pelo Manual de Pintura e Caligrafia do Saramago, conhece?

    Como disse o Biajoni, esses MEs dão uma ênfase tremenda ao "egocentrismo" do texto... novamente, muito bom... olha que pra muita gente é impossível ler texto tão longo... mas fomos atraídos.

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  15. Anonymous10:18 PM

    Allan,
    Excelente texto, mesmo com o uso de clichês (foi proposital, não?).
    Vc criou um clima e linguagem que me transportaram à Nápolis, ao centro industrial de Nola e aos lugarejos da província. Notei que o seu S. Pedro torceu pra França. Quando ele acordar vai ficar puto da vida.

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  16. Anonymous10:19 PM

    Anônimo uma ova!
    Lenine

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