São sete da manhã e o rádio toca pra me acordar com uma canção triste de roer o coração. O calor espalhado pelo ventilador me encharca e me irrita. Desligo o rádio. A luz embaçada da pequena janela do banheiro me confirma que o dia amanheceu. Me lavo o rosto e me acendo um cigarro, pra me tirar o gosto amargo do vinho barato que me serviu para afogar a tristeza pela derrota de ontem: França 4, Itália 1, nos pênaltis. Franceses de merda! Troco a camiseta suada por outra limpa, me controlo a silhueta barriguda no espelho, me visto uma camisa, a calça e ponho um sapato. Cadê minhas sandálias? Junto a roupa suja pra lavar, saio e vou tomar café na trattoria do Marco, na praça. No caminho deixo o saco de roupa na casa da dona Alba, que já está de pé.
Na trattoria, me espera Giovanni.
- Beppe, tem uma carga pra levar agorinha de manhã para San Giuseppe Vesuviano.
- Engulo o café e vou. Onde pego a mercadoria?
- Em Nola. E depois leva pro Vito, em San Giuseppe.
- Marco, me dá um capuccino, uma brioche e um maço de MS.
- Toma. Salvatore te mandou um envelope extra por você não ter participado da última greve dos transportes.
- Valeu! Sem o Seu Salvatore a vida ia ser difícil, vai dizer?
O sol me castiga as costas e a lembrança do jogo de ontem. Vagueio lentamente longe do caminhão enquanto os rapazes o carregam. É a regra. Me acendo outro cigarro enquanto me repasso as jogadas, os dribles, o empate, todos os penaltis que perdemos e a festa dos franceses. Não posso esquecer de pegar uma garrafa d’água, ou o calor vai acabar me matando. A cabeça me gira e os óculos escuros mal servem pra me proteger desse sol enorme. Meto a mão no bolso da calça e pego o envelope do Seu Salvatore. A nota do diesel vem junto. Uso um toco de lápis pra escrever meu nome no verso dela e coloco dentro do envelope pra não perder. Conto o dinheiro e sorrio: “…por você não ter participado da última greve dos transportes.” Como se alguém participasse de alguma greve por aqui. Nada de paradas durante as entregas e nada de greves. É a regra.
Garrafa d’água na mão, entro no caminhão. Me despeço com um aceno mas não tem ninguém pra me responder. Finjo não notar o carro que me segue à distância enquanto faço o caminho que me leva a San Gennaro Vesuviano. A bola me passeia na cabeça; o cigarro, entre os dedos. O gosto ácido da derrota não me sai da boca e acho que não me sairá nunca. Na saída de Nápoles um comando da Guardia di Finanza pára alguns veículos, mas eles me ignoram. É a regra. Sigo em frente. Faço a curta estrada sem rever meus anjos da guarda. Talvez tenham parado pra um café ou uma água, sei lá.
O estacionamento no depósito do Vito em San Gennaro Vesuviano está deserto. Não encontro ninguém e deixo o caminhão estacionado assim mesmo. Ponho a nota do diesel no pára-sol, escondo a chave debaixo do tapete, mesmo sabendo que aquele caminhão jamais seria roubado e bato a porta. Vou ao oratório de San Gennaro, ali ao lado, pra tradicional oração de agradecimento. Missão cumprida, volto pra casa.
- Marco, um spaghetti ai frutti di mare e um copo de branco, que picada de cobra se cura com veneno de cobra. Vai dizer?
É hora do almoço e a trattoria está cheia, como sempre. O assunto ainda é o mesmo: futebol. As mesas na calçada permitem que o vento do mar refresque um pouco o início da tarde, traz o cheiro de peixe dos barcos no porto e formam a plateia que observa o vai e vem de saias curtas e coxas torneadas. Me acendo um cigarro e uso o prato vazio como cinzeiro. Localizo um par de pernas que gostaria de conhecer melhor, mas um burburinho dentro da trattoria me chama a atenção. Entro e descubro pela tv que o depósito do Vito em San Giuseppe Vesuviano foi invadido pela Finanza.
- San Giuseppe… Puta que pariu! Eu devia ter ido pra San Giuseppe, não pra San Gennaro.
- Beppe… Tudo bem?
- Marco, me dá um copo de grappa… Duplo!
Me viro a grappa num gole e dou longas tragadas no cigarro enquanto acompanho a notícia. A maioria das pessoas na trattoria trabalha direta ou indiretamente pro Seu Salvatore. O suor que escorre nos rostos não tem nada a ver com o calor sufocante da trattoria. A polícia não encontrou nada no depósito e continua investigando. Alguém dedurou que hoje teria uma entrega especial, mas o único motorista que prenderam estava limpo. Nem os dois capangas que pegaram pelo caminho tinham nada. Reconheço o carro deles, que sempre me acompanham nas entregas. Sem querer, acho que me salvei a pele, a do Vito e a do Seu Salvatore. Me acendo outro cigarro e saio, acompanhado por outros rostos assustados, em silêncio e de cabeça baixa.
- Puta que pariu! Eu devia ter ido pra San Giuseppe…
A grappa me começa a fazer efeito. O medo por quase ter sido preso me faz a garganta pulsar e um suor frio me gela a testa, apesar do calor desse verão napolitano. Respiro com dificuldade o ar quente que não me chega a encher os pulmões. Entro em casa com os olhos turvos, me tiro os sapatos, a camisa suada e desabotoo a calça. Me sento na beira da cama e olho em volta, confuso ou bêbado. Cadê minhas sandálias? Me deito e o quarto começa a girar. O braço esquerdo me dói e me vem uma fisgada no peito. Me falta o ar. Abro a boca como um peixe desesperado. A dor aumenta. …Escuro… Tudo escuro…
Uma luz se abre e o corpo me parece flutuar. Tudo é claro e nem preciso dos olhos pra ver em volta. É a mesma Nápoles, que vai clareando até virar outro lugar. Um lugar calmo e branco, como a própria luz. Uma sensação de bem-estar me faz ter vontade de caminhar. E caminho. Caminho longe e tudo me parece familiar e tranquilo. Até o enorme portão na minha frente. Cruzo com pessoas que me conhecem, me sorriem e me acenam com a cabeça. Lá no alto, distante, rostos sérios conversam concentrados. Subo até o grupo e tento falar. Ninguém me nota. Parecem muito ocupados. Alguns têm barba que coçam com ares de filósofos. A brisa fresca folheia calmamente um imenso livro ao lado do grupo.
- Ele vai voltar logo…
- Incrível essa paixão por essas coisas como o futebol.
- Lambe a cria…
- E esse hábito de tirar férias, ir à praia… Parece um menino.
- É, também, um menino.
O grupo me ignora. Ou não me vê. Espero uma pausa pra poder interromper, mas eles continuam falando, falando. Seu Salvatore detesta ser interrompido, mas sabe dar uma pausa pra se dirigir a quem o espera e dar uma satisfação, ou ouvir. Esses, não. Continuam falando pelos cotovelos.
- Mas por que essa insistência de tirar férias com o coisa ruim?
- Sossega! Você sabe que não podemos usar esse tipo de expressão aqui. Diga o nome dele e pronto. E lembre-se de que já foi um dos nossos. Pode acontecer com qualquer um.
- Ele não deixaria acontecer de novo.
- Livre arbítrio, caro. Livre arbítrio.
- É? E a interferência no futebol?
- Interferência, não: torcida. Ele é brasileiro, todos sabem.
- A torcida não funcionou neste ano…
- Ele se irritou com todas aquelas ruas enfeitadas, aquela festa em meio à miséria, a ilusão de que tudo se resolve com um título de Copa. Ficou desgostoso e resolveu tirar férias.
- Desculpe… Alguém me pode explicar tudo isso…?
Ninguém me ouve. É como se eu não existisse. Sei que é um sonho, mas tenho certeza de que é real. Vinho. Sinto gosto de vinho. Me estalo a boca pra me certificar: é vinho. E do bom. Ao lado do livro um velho com longas barbas ronca. Está dormindo abraçado numa enorme garrafa de champanhe. Me aproximo e sinto o cheiro de mar, como nos homens do porto da Nápoles. Cadê a cidade? Olho em volta e descubro que é outro lugar, é lugar nenhum. Não há nada a não ser uma nuvem de luz, como se uma neblina nos separasse de todo o resto. Me pego emprestado o par de sandálias que está ao lado do velho sem interromper o sono dele. Detesto andar descalço. Enquanto me coloco as sandálias, o vento continua a folhear o grande livro. Parece um daqueles que o Vito usa pra contabilidade, só que muito maior. O grupo ao meu lado continua conversando e me ignorando. Observo o livro e descubro que as grandes folhas são datadas. Que dia é hoje? Faço um esforço pra lembrar do jogo de ontem, que me parece um sonho. 9 de julho de 2006, dia da final Itália-França. Então, hoje é dia 10. Procuro a data e encontro um monte de coisas escritas, mas num segundo acho meu nome: “desencarna para avaliação e pode voltar ao purgatório para uma última chance”. Apavorado, me tento apagar com o dedo. Não apaga. Meto a mão no bolso e encontro o toco do lápis, que uso pra modificar nome e sobrenome. Me viro um monte de páginas adiante e reescrevo tudo. Volto pra página de ontem. Tá lá o resultado: França 4 x 1 Itália. Franceses de merda! Com o lápis transformo o 1 em 6 e que se dane, vai dizer? Alguém olha na minha direção. Me escondo o lápis no bolso e me levanto.
- O que você está fazendo? – Pergunta ele.
- Estou folheando o livro…
- Ninguém pode tocá-lo! Você não conhece as regras? Aliás, eu não te conheço…?
Os outros se viram e se aproximam. O velho ao lado do livro continua a dormir. Abaixo a cabeça e me tento explicar, mas ele me interrompe:
- Você sabe que ninguém pode subir aqui. Por que não está com os outros?
- Desculpe, não estou entendendo nada, Seu... Seu...
- Gennaro. San Gennaro. E você corre o risco de uma séria punição.
- Desculpe Seu Gennaro, não queria causar tumulto. Só me perdi, como de costume. Mas pelo menos alguém me deu atenção, vai dizer?
- Volte ao seu lugar! E lembre-se: você tem uma dívida com San Gennaro.
Vou descendo sem jeito, com a sensação de saber o que está acontecendo mas que prefiro não lembrar. Mais em baixo os outros me sorriem e me acenam com a cabeça. Me afasto até encontrar o imenso portão. Passo por ele e a neblina vai ficando mais escassa. O barulho de Nápoles vai crescendo aos poucos, à medida que caminho e me distancio dos outros. Cores pálidas vão se misturando ao branco opaco até colorirem tudo de novo. Sinto o cheiro do porto, do mar. Me estalo a boca e me vem um gosto de grappa. É Nápoles!, reconheço a cidade. Me sinto flutuar, mas estou no meu quarto. A cabeça me gira e me sento na beira da cama. Deito e me sinto uma dor no peito, mas é como se a dor me saísse…
São sete da manhã e o rádio toca pra me acordar com uma canção triste de roer o coração. O calor espalhado pelo ventilador me encharca e me irrita. Desligo o rádio. A luz embaçada da pequena janela do banheiro me confirma que o dia amanheceu. Me lavo o rosto e me acendo um cigarro, pra me tirar o gosto amargo do vinho barato que me serviu para festejar a vitória na final de ontem: Itália 6, França 4, nos penaltis. Somos grandes! Troco a camiseta suada por outra limpa, me controlo a silhueta barriguda no espelho, me visto uma camisa, a calça e ponho a sandália, que não parece ser a minha mas me serve. Junto a roupa suja pra lavar, saio e vou tomar café na trattoria do Marco, na praça. No caminho deixo o saco de roupa na casa da dona Alba, que já está de pé. San Gennaro Vesuviano. Hoje tenho que ir a San Gennaro…
Muito bem escrito. Fiquei pensando cá com os meus botões como o futebol é marcante na vida das pessoas. Gostei muito. Beijocas
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ReplyDeleteItaliano biajoniano? Hahahaha...
ReplyDeleteEle também tem tara pela Hello Kitty???
que post gigante eim
ReplyDeletebeijos e uma ótima semana
"Me acendo outro cigarro enquanto me repasso as jogadas, os dribles, o empate, todos os penaltis que perdemos e a festa dos franceses" - eu adoro esses ME.
ReplyDelete:>)
excelente conto, allan... vamos juntar um povo e publicar o FAMOSO livro?
;>)
abrazo.
e ah, sim, vai dizer?
ReplyDelete:>)))))
passei só pra ver se vc tinha atualizado eu já escrevi no meu
ReplyDeletebeijos
=*
Andrea Camilleri se fumasse uns baseados depois de uma conversa futebolistica com Aldo Biscardi, não faria melhor.
ReplyDeleteSó um problema. Voce é um gande ecritor, mas como não gosta de funghi, perde muitos pontos no meu ranking. :-)
Outra coisa, napolitano dizendo "vai dizer" foi genial, vai dizer?
Allan, obrigadíssima pelas dicas sobre o aterro sanitário lá no blog. Eu sugeri a compostagem, mas o prefeito quer uma solução milagrosa e rápida. Eu sugeri que o aterro fosse feito em outro bairro (mas não sabia esta história dos ventos não)...agora vamos ver.
ReplyDeletea cidade aqui é pequena, mas tem 70 mil habitantes e educar este povo para separar o lixo é complicado. Mas eu tb sugeri isso pro pessoal que trabalha com educação ambiental. Aqui tem mais urubu que gente, e o lixo espalhado em tudo qto é canto é um horror. Depois volto para te contar tudo.
Beijos
Grappa de Napolis marca Vesuvio? Que bode... Mesmo bebado voce escreve bem! Um sopro no lugar do beijo porque tá um calor da peste.
ReplyDeleteÉ o que todos queremos - às vezes, claro: reescrever a história. Pena que a vida não tenha rascunho, como dizia Kundera.
ReplyDeleteAh... Sim, sim! Como bem lembrou o Flavio, o "vai dizer?" merece outro "abrazo" do Bia!!!
ReplyDeleteÓtimo conto! Aliás, o futebol tem rendido textos duca.
ReplyDeletegd ab
Muito bom o texto. Adoro ler algo que deixa de lado o narrador e põe a primeira pessoa a falar. Sou tarado pelo Manual de Pintura e Caligrafia do Saramago, conhece?
ReplyDeleteComo disse o Biajoni, esses MEs dão uma ênfase tremenda ao "egocentrismo" do texto... novamente, muito bom... olha que pra muita gente é impossível ler texto tão longo... mas fomos atraídos.
Allan,
ReplyDeleteExcelente texto, mesmo com o uso de clichês (foi proposital, não?).
Vc criou um clima e linguagem que me transportaram à Nápolis, ao centro industrial de Nola e aos lugarejos da província. Notei que o seu S. Pedro torceu pra França. Quando ele acordar vai ficar puto da vida.
Anônimo uma ova!
ReplyDeleteLenine