Caros e Caras,
Paz e saúde!
Antigamente as pessoas escreviam cartas. E usavam o telefone com moderação. A surpresa ao encontrar um envelope amigo, um cartão de boas festas ou receber um telefonema inesperado não existe mais. Hoje, com a facilidade do celular sempre à mão, a troca frenética de SMS só é inferior à verificação contínua de e-mail por parte dos internautas ansiosos. Quem não pertence à geração do i-pod ou leva mais tempo para se habituar com as novas tecnologias, como eu, acaba vivendo situações cômicas como esquecer o celular desligado por dias seguidos. Como eu. O pior é o tratamento dado aos e-mails. Esqueço sempre de responder – ou raramente o faço – precavido que sou contra o spam. Ou fico em dúvida quanto ao momento de parar: recebo, respondo, o outro agradece, …e eu? O que faço? Corro o risco de criar uma corrente sem fim se o meu interlocutor tiver as mesmas dúvidas. Mas na maioria das vezes esqueço mesmo de responder. Desculpe, sou esquecido, não mal-educado. É um e-mail esquecido e agora recuperado que respondo com prazer.
Alguém me questionou sobre a existência de uma receita original de tortelli (qualquer massa recheada). E não se referia às massas prontas, pois essas não chegam a ser originais, apesar de muito consumidas. Sim, existe a receita original. Aliás, existem muitas receitas originais. Eu calculo que devam ser algo em torno de trinta milhões de receitas originais de tortelli, pois cada família italiana tem a sua. A que me foi dada é utilizada por algumas famílias de Bolonha. Reconhecendo que se come muito bem em Bolonha e desconsiderando as comerciais, diria que qualquer receita adotada por mais de duas famílias bolonhesas deve ser realmente muito original. Antes, porém, devo esclarecer algumas coisas sobre a farinha de trigo.
Nunca tinha reparado nas diferenças da farinha de trigo. O que tem de diferente? Farinha é farinha, nada de mais. Acontece que na Itália você deve se tornar um expert de farinha, ou acaba cometendo gafes em cascata. O trigo é uma planta herbácea da família das gramíneas. Até aí, nada demais. Acontece que existem dois tipos principais utilizados em produtos alimentares: o Triticum durum e o Triticum vulgaris. Do primeiro tipo se extrai a farinha de trigo duro, de coloração ligeiramente amarelada, mais granuloso ao tato e utilizada na maioria das massas e alguns poucos tipos de pães - e não diga que pão é pão! Na Itália é vendida com a denominação “farina di grano duro”. O segundo tipo produz uma farinha mais branca, mais fina que a primeira e é normalmente utilizada na produção de doces e na maioria dos pães. É a “farina di grano tenero” (de trigo macio). A farinha ainda é dividida em função do processo de moagem: a mais grossa é a integral, que contém todas as partes do grão; grossa é a do tipo 2; a do tipo 1 é um pouco mais fina; do tipo 0 é realmente fina e a farinha do tipo 00 é finíssima, produzida somente com a parte mais interna do grão, mais rica de amido mas pobre em fibras, proteínas, vitaminas, gorduras e enzimas, em relação àquela mais grossa, mas favorece à fermentação e à produção de glúten.
A propriedade mais importante da farinha de trigo é a formação de glúten, criado a partir do contato com a água e sob ação mecânica das proteínas insolúveis glutenina e gliadina. O glúten tem a capacidade de dar elasticidade e consistência à massa, além de reter o gás carbônico proveniente da fermentação, o que provoca o aumento de volume que se deseja aos pães e outros produtos com características esponjosas.
Existem massas com e sem ovos independentemente da qualidade. Algumas receitas pedem massa sem ovos, outras, como os tortelli, exigem massas com ovos. A aula de engenharia alimentar terminou com a farinha, conforme-se em adicionar os ovos à massa e seguir em frente com a receita.
Tortelli clàssici (porção para 12 pessoas)
Massa:
1,2 kg de farinha di grano duro tipo 00;
6 ovos;
Água.
Toda cozinha italiana que se preza tem uma mesa com superfície lisa, não porosa, para a produção de massas. Providencie a sua também. No centro da mesa deposite a farinha e forme um pequeno vulcão. Quebre os ovos e coloque-os no centro da farinha, rompa as gemas e comece misturando com as pontas dos dedos. A seguir, utilize as duas mãos. A massa deve ficar consistente e quase seca, use um pouco de água somente se a massa ficar dura demais. Passe farinha na mesa e estenda a massa com o rolo de macarrão. Continue abrindo até a massa ficar bem fina.
Recheio:
150 gr. de presunto de Parma (cru);
200 gr. de mortadella;
250 gr. de lombo de porco;
100 gr. de Parmigiano Reggiano;
1 ovo;
1 pitada de noz-moscada.
Moa separadamente o presunto, o queijo, a mortadella e o lombo de porco, pois cada substância possui uma consistência diferente. O presunto, o queijo e a mortadella contêm sal suficiente para todo o recheio. Quando os ingredientes adquirirem uma consistência pastosa homogênea, misture tudo e junte o ovo e a noz-moscada. Misture bem.
Corte a massa aberta sobre a mesa formando o desenho que lhe convier. Use um copo se a quiser redonda, mas lembre-se de que haverá um desperdício de massa. As formas retas (triângulo, losango, quadrado, retângulo, etc.) são as preferidas. Deposite um pouco do recheio no meio de cada pedaço de massa, una as pontas e feche as bordas. A criatividade ajuda a inventar as formas mais originais. Cozinhe em abundante água com sal grosso e um cubinho de caldo de carne. Sirva com o molho de sua preferência, com o caldo onde foi cozido o tortelli (pasta in ùmido) ou com um pouco de manteiga e folhas frescas de sálvia. Já reparou que tem sempre a opção da sálvia fresca? Come-se muita sálvia por aqui.
Eu sou assim, esquecido e desligado. Mas quando dou uma resposta costumo fazer o que minhas filhas e chamam de “resposta científica”. Elas aprenderam a limitar suas perguntas ao estritamente necessário, por temerem uma dessas respostas. Alguns amigos preferem evitar conversar comigo sobre cerveja, só que eles chamam as minhas de “respostas quilométricas”. O risco para amigos e filhas é quando sou eu a puxar o assunto. Não tem escapatória.
Fico aguardando uma carta com fotos sobre o jantar ou do almoço em família. Ainda não fiz essa receita pessoalmente, mas provei e aprovei o resultado mais de uma vez. Depois da surpresa ao encontrar e abrir calmamente o envelope, prometo escolher uma garrafa de vinho, ligar o aparelho de som (ainda não me convenci a comprar um i-pod) e ler sua carta com tranquilidade. Vou tocar e sentir a textura usando o tato das minhas mãos treinadas nas massas. Afinal, sou do tempo do papel.
Ciao.
Uau! Que receitinha bem explicadinha. Isso não é receita, é aula. Muito bom. Hehehe. Gostei de saber das diferenças de farinha, mas, muito provavelmente, não colocarei a mão na massa.
ReplyDeleteBeijo.
Oi Allain,
ReplyDeleteEu sou uma que vive a Bolonha desde 2001, e lhe confesso que "di tortellini ne faccio a meno", nao porque nao goste, e porque os que sao vendidos sao horriveis, e os bons caseiros (vendidos) sao carissimos, alèm do mais, ultimamente nao posso mais comer massa como antes (desenvolvi uam intolerancia a massa e ao tomate...pode???).
Lendo vi que voce è como eu, ADORO receber CARTAS de papel e responde-las LOGO,pois a resposta imediata, conserva o calor da mensagem recebida. Ja, o deixar pra responder dias depois, causa uma frieza e a elaboraçao da resposta, que perde a emoçao...entende? Pois è,...mas, porque voce nao escreve cartas pra's suas filhas e esposa ou pra amigos? Pense que uma vez imaginei escrever cartas pra mim mesma, porèm, acabei nao danto ato a minha imaginaçao.
Olhe se quiser estabelecer uam comunicaçao por papel, podemos criar um grupo, o que vc acha da ideia? Se topar, mando meu endereço, voce manda o seu, veja voce...Nao è uma ideia ruim.
Um abraço a voce e a sua familia
Rosemary de Oliveto-Bolonha
Essa nós vamos fazer aqui em casa. Amélia adora cozinhar e não deixa pra depois. Temos por aqui algumas "massas italianas importadas", todas de grano duro. Não sei distinguir quais as melhores marcas. Tem dica?
ReplyDeleteIsso do grano duro, ao menos, eu sabia! Só o que compro, as massas com essa farinha são mto mais gostosas. Ri muito com o cuidado de suas filhas têm em te fazer perguntas. Em casa percebo um pouquinho isso. Se o assunto me empolga...
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