Friday, August 19, 2005

Quinta-feira

Caros e Caras,
Paz e saúde!

A noite de ontem terminou tarde; por volta das duas da manhã. Convidamos uns amigos italianos para um jantar brasileiro, à base de moqueca de camarão, um dos pratos do vasto cardápio deste imodesto cozinheiro que vos escreve. Depois da mousse de maracujá, os convidados ainda tiveram a oportunidade de saborear (e terminar de se embriagarem) a minha Gabriela, licor caseiro feito com cravo e canela. [Suspiro…]

O dia começa cedo, com um doce aroma de dendê e leite de coco na cozinha já limpa. A brisa quente da janela e um suave perfume de mulher me despertam devagar. Preguiçosamente decidimos o fim-de-semana, escolhendo um lugar nas redondezas de clima fresco. A noite só chega por volta das oito e meia e eu quase perco o espetáculo, entregue ao cansaço e ao sono.

A Stradone Farnese, a avenida onde moramos, é a principal via do centro de Piacenza. O movimento é intenso, mas não nessa manhã de agosto. Da janela vejo as pessoas que lotam a sorveteria do outro lado da rua e desço para fumar. Meia-noite.

A vinte metros de casa, entro na Corso Emanuelle, rua chique de lojas idem. Sem movimento de carros, as mesas dos bares e cafés tomam conta dos espaços. Parece que toda a cidade acabou de acordar e resolveu fazer-me companhia, apesar da hora. Vejo três rapazes que brigam com a máquina de venda automática de cigarros.

Sigo pela Corso até a Piazza Cavalli, no centro histórico, onde acontecem apresentações musicais dos mais variados estilos: de música cubana a obras de Giuseppe Verdi, ex-morador ilustre da cidade. Funcionários da prefeitura recolhem as barreiras que impediam o trânsito na área. As vetrines expõem as últimas roupas coloridas que se vêem pelas ruas. Descubro que o laranja, o ocre e cores vizinhas comandaram a estação. O Teatro Municipal, no final da Via Verdi, está concluindo o espetáculo e, em breve, as pessoas lotarão a Antica Osteria del Teatro, um dos cinco melhores restaurantes da Itália, segundo os três mais conceituados guias gastronômicos italianos.

A cidade vive. Pulsa, cresce, se move e envelhece. As ruas são veias, e não simples artérias; por onde corre o sangue quente nos passos da gente. São homens, mulheres, velhos, crianças, bicicletas e um ou outro carro de polícia que seguem no ritmo lento do verão piacentino. A livraria que reabre às nove da noite lembra uma loja de saldos. O mendigo do centro (não sei o nome dele) montou uma banca de camelô com uma caixa de papelão e oferece aos passantes diversos panfletos que lhe dão para distribuir. É uma pessoa tranquila, que vive da caridade abundante dos comerciantes locais, transferindo sua casa sobre a bicicleta de uma marquise a outra.

Vencidas pelo calor, algumas pessoas observam silenciosamente o movimento das sacadas, na rica arquitetura do centro antigo. Em frente aos cinemas o movimento é grande, com pessoas que saem da sessão das dez e outras que entram para a da meia-noite; um luxo que só existe nesta época. Os celulares já não tocam. Poucos cães passeiam com seus donos. Poucos, também, são os estrangeiros pela rua, mais habituados aos próprios costumes de recolherem-se com a família ou de procurar companhia em lugares fechados.

As notícias também são mornas. O primeiro-ministro inglês que demonstra impaciência pela demora na extradição do terrorista de Londres preso em Roma, enquanto o nosso (deles) Berlusconi que não perde a oportunidade para outra gafe. Mais clandestinos que desembarcam na Sicília e mais um ou outro Umberto Bossi pedindo leis mais duras contra eles. O Papa pede tolerância ao voltar das férias em uma localidade com uma temperatura menos hostil e vai para a Alemanha. Vocês sabiam que Papa tira férias? A moça inteligente (aquela que presenteou com livros) me pergunta porque no Brasil é Inverno com um calor desses. [Suspiro]. Ecos do Bush. Somente ecos. A estagnação econômica da Europa preocupa, mas eles preferem deixar para discutir depois do Verão. Só falta o Carnaval. Um milionário siberiano tenta, sem sucesso, comprar os grandes jogadores dos times europeus. A Tv mostra as férias dos famosos; o Tour de France, que terminou há dias…

A quinta-feira está terminando. Ou apenas começando…

Volto para casa olhando a face da lua cheia, que começa a se esconder atrás da igreja de Santa Clara, bem em frente a minha janela. Lampone, o cão alegre da vizinha, sai para o passeio noturno com a mãe da sua dona. Me faz festa. Faz festa à senhora de bicicleta, à moto em cima da calçada e à cabine telefônica. Parece fazer festa à lua, com a cauda sempre em movimento. Lembro de uma música do amigo Jorginho: “Alto e contínuo / Alta madrugada / Ouvi um menino / Um uivo pra lua / Alva lá no céu éu éu / A alva lua / Abana a cauda / Pros cães da rua / Cantarem em coral au au / Au au pra lua…”

Da janela ouço o caminhão de lixo que trabalha com rumor. A sorveteria acaba de fechar. O sistema de irrigação, programado para este horário, rega o pequeno jardim do monumento à libertação da Itália, em frente à sorveteria. Vou até o quarto trocar de roupa e dar um beijo de boa noite. Que pode ser o último, que pode ser o primeiro...
É quinta-feira. Aliás, já é sexta.

Ciao.

7 comments:

Anonymous said...

Olá... que post delicioso de ler. Parece possível acompanhar a cena e o passeio, sentir cheiros e sabores.
O verão daqui parece ter as mesmas cores, sabores e horários que o seu.
Ps. Quanto à Arraes, não sei se viveremos para ver o seu resgate. O Brasil não olha para trás, pelo menos não na direção onde estarão a memória e as açoes daquele homem.

Anonymous said...

Que delícia, Allan, pude passear com você por Piacenza!

Anonymous said...

Sabe o que me chama mais atenção? Quando você fala n"o" mendigo do centro. Um (!) mendigo! Tanto que é "o" mendigo. Que tem nome, lugar pra ficar, panfletos pra distribuir e com certeza, comida e um canto pra dormir. Cada vez mais aqui (SP) existem sem-teto. Ontem mesmo a polícia desocupou com a violência de sempre um prédio abandonado perto do mercado central, sem dar nenhuma alternativa pras pessoas. Temos centenas de prédios abandonados. Outros tantos terrenos parados, esperando a especulação imobiliária tornar os preços atraentes. E milhares de sem-teto, sem escola, sem comida, sem cidadania. Morro de inveja desse teu mendigo. Imagine só: "um" mendigo!!!

Anonymous said...

Pois é, além d'O Mendigo, chama a atenção morar numa cidade que se conhece o cachorro dos vizinhos pelo nome (hehehe, tive que usar o plural). Que bom isso: se a gente não pode morar num lugar assim, pelo menos pode ler posts como esse. abs

Anonymous said...

Caro Allan
Fico impresionado com sua cultura sobre a Italia. Até de Verdi vc falou ...Coisas da vida ...enquanto aqui fazemos piadas do mensalão e de uma cultura de coroneis que nao querem largar o osso, vc nos mostra uma outra realidade que poderia estar se passando aqui tb ...Poderia ...
Passear aqui, como vc faz ai? nem pensar! No sorvete pode passar uma bala perdida que como diz o Millor já nao assusta entra por um ouvido e sai pelo outro ...E falando em gastronomia o Brasil superou a Italia em materia de pizza pois pode acontecer o que for tudo aqui acaba em uma grande PIZZA ...to até sentindo o cheiro ...
bons passeios pra vc e parabens pelos lindos momentos que nos descreve tao bem ...
um forte abbraccio
Walter

Anonymous said...

Caro Allan
Fico impresionado com sua cultura sobre a Italia. Até de Verdi vc falou ...Coisas da vida ...enquanto aqui fazemos piadas do mensalão e de uma cultura de coroneis que nao querem largar o osso, vc nos mostra uma outra realidade que poderia estar se passando aqui tb ...Poderia ...
Passear aqui, como vc faz ai? nem pensar! No sorvete pode passar uma bala perdida que como diz o Millor já nao assusta entra por um ouvido e sai pelo outro ...E falando em gastronomia o Brasil superou a Italia em materia de pizza pois pode acontecer o que for tudo aqui acaba em uma grande PIZZA ...to até sentindo o cheiro ...
bons passeios pra vc e parabens pelos lindos momentos que nos descreve tao bem ...
um forte abbraccio
Walter

Rafael Reinehr said...

Allan, além da fome com que me deixastes, deu uma vontade de já ser gente grande e poder passear tranqüilamente por estas vielas que citastes, sentindo os aromas, escutando os barulhos, sentindo as brisas...

Enquanto isso, enquanto não fico grandão, passo aqui para "saborear" um pouco da sua leitura...