Caros e Caras,
Paz e saúde!
Uma velha piada sobre os equívocos da humanidade:
Um homem e uma mulher se encontram no fim do mundo. Nada está inteiro, só ruínas. As formigas tomam conta de tudo, estão por toda a parte. O homem está sentado sobre os escombros de uma construção, nu. A mulher, também nua, se senta perto dele. Não dizem uma palavra, mas têm a consciência de serem os únicos sobreviventes humanos. Juntos observam as formigas. Milhões de formigas. De repente, uma voz que parece vir das nuvens fala num tom amigável:
- Um dia eu lhes disse que vocês herdariam a Terra…
O homem e a mulher se olham, se reconhecem, reconhecem o local e dizem:
- É verdade! Mas olhe o que nós fizemos. Isso aqui antes era o paraíso e nós o destruímos.
- …Sim, mas agora sabemos onde erramos e o que devemos evitar. Se pudéssemos haver uma outra chance…
A voz, constrangida, responde:
- Desculpem, deve haver algum engano. Eu me referia às formigas.
Comparar um estádio de futebol aos domingos, ou o Coliseu, séculos atrás, com um formigueiro é natural. A saída do supermercado como formigas em volta de um torrão de açucar. Na realidade (mesmo que alguns tenham dificuldade em lembrar) somos animais e temos comportamentos similares, nada de estranho. A analogia poderia ser com as abelhas, uma manada de búfalos ou um cardume de peixes. Ou um grupo de baleias (um meio-termo entre peixe e búfalo).
Não me surpreende o movimento frenético do ser humano, nem a movimentação constante de material e alimentos. Observo sem muita admiração as nossas proezas arquitetônicas em cavar túneis ou construir prédios. As formigas fazem o mesmo sem máquinas ou equipamentos. Nossas estradas são cópias mal feitas das trilhas produzidas pelo movimento organizado delas, que, mais práticas, se adaptam às mudanças geográficas e não perdem tempo com cimento, asfalto e escoamento pluvial. Quando há necessidade, abandonam a velha trilha e partem em outra direção.
O que diferencia o homem dos animais é a capacidade de pensar (que poderia ter sido distribuída de forma mais homogênea, devo concordar), ter consciência da própria existência e modificar o ambiente para satisfazer às suas necessidades. E rir. (Tínhamos um cachorro que ria e tomava cerveja, mas era somente uma exceção que confirmava a regra.) Mas até essas diferenças começam a ser questionadas.
Depois de uma certa idade todos concordam que a vida é curta demais para ocupar-se de profundos conceitos filosóficos, mas não podemos perder de vista os valores que formaram e organizaram a nossa consciência, e permitiram que a aventura humana se prolongasse até os dias atuais (mesmo que um jus-naturalista acredite que tais valores compõem a natureza humana). É essa a questão que tem passado despercebida e que atrai a minha curiosidade.
Lembro que tentaram ensinar-me sobre céu, inferno e purgatório quando era criança. Sinto-me velho como um esqueleto de dinossauro quando ouço alguém falar de céu e inferno hoje, pois há muito aboliram o purgatório. O que se aprende hoje é que quem é bom vai pro céu e quem é mau vai pro inferno. Não há meio-termo nem um lugar onde purificar a alma antes de merecer o paraíso. O resultado é que após cometer o primeiro erro, o jovem desiste de preocupar-se com o céu e opta por tirar o maior proveito possível deste mundo e de quem nele habita.
Como numa colônia, cada um tem uma função: operários vão em busca não só de alimentos, mas tudo aquilo que pareça ser necessário à manutenção e o crescimento do formigueiro. Uma casta especial de machos disputa entre si para fecundar a rainha, que irá gerar os novos operários, que irão manter tudo funcionando. Quando a rainha não produz operários na velocidade desejada, constrói-se uma janela no formigueiro, defenestra-se a velha matriarca e dá-se lugar a uma nova rainha. Esse é um conceito que ainda não assimilamos, mas que poderia nos ser útil.
Quando uma catástrofe se abate sobre o formigueiro, as operárias combatem até o último grão de areia. Ou enquanto tamanduá não saciar a sua fome. Logo depois as formigas reconstroem o formigueiro e a rotina se refaz. Formigas são incapazes de prever o apetite dos tamanduás ou de montar estratégias para desestimulá-los (colocar uma formiga envenenada na entrada, por exemplo). Apenas reagem quando há necessidade ou quando aparece o tamanduá.
Os jornais e TVs italianos despejam diariamente as imagens de uma guerra que ameaçou se alastrar. Madrid e Bagdá, no entanto, continuam realidades longe demais. As pessoas só têm se preocupado com o roteiro das férias que se aproximam. O retorno a uma determinada cidade será descartado porque o hotel não tinha ar-condicionado, assim como o paraíso no Mar Vermelho, montado para os milhares de turistas europeus corre o risco de ficar vazio, por estar mais próximo à zona de conflito (considerando que turistas italianos não abriram mão das férias de janeiro, antecipadamente programadas e pagas, na região do tsunami, posso estar redondamente equivocado).
A guerra e as partidas de futebol são distantes da maioria das pessoas. Confundem-se com as outras ficções apresentadas pela Tv e provocam efeitos similares: você pode ser contra ou a favor. Participar é para poucos.
A movimentação alegórica criada pelo Coliseu, pelos estádios, estradas e supermercados lotados, oferecem a ilusão de que o formigueiro é eterno. Passada a catástrofe basta reconstrui-lo e a rotina será retomada. Me divirto quando penso que estamos cada dia mais parecidos com as formigas, que não têm céu nem inferno, mas têm o tamanduá. Ou parecidos com um grupo de baleias, em constante mutação genética cada vez mais gordos.
Só perde a graça quando percebo que o ser humano começa a diferenciar-se cada vez mais do ser humano.
Ciao.
11 comments:
eu, PARTICULARMENTE, odeio aglomerações!
Lindo texto, Allan.
Eu adoro um formigueiro...
Como prometi, coloquei lá no blog a minha opinião sobre o "politicamente correto" :)
Beijos pra familia toda!
Filosófico e político, este texto, nos sentidos mais sublimes. Gostaria de tê-lo escrito. Para me consolar, acabo de recomendá-lo, pois o que você disse é bom "pras cabeças". Abraços.
Há tempos não aparecia por aqui. Em boa hora o Cláudio Costa deu a dica.
Será que o ser humano tem cura?
Cheguei aqui via Pras Cabeças e gostei muito do seu texto, nunca havia parado para pensar dessa forma e é sobre o nosso próprio comportamento. Eu volto. Abraços!
Allan, voce me fez grandes revelaçoes hoje. Eu sempre pensei que nós eramos formigas subdesenvolvidas nas questoes organização e cooperação. Se o problema maior a se esperar é o grande tamanduá final, entao ta de bom tamanho. Mas acho que temos mesmo que aprender muito ainda nao so com as formigas, mas com os insetos em geral.
Allan, você conhece a história infantil "A Formiguinha e a Neve"? Aquela que tinha (no meu tempo de mãe de filhos pequenos)disco com a voz da "pobre fomiguinha"? É assim a vida...Os homens ao invés de aprenderem com elas tentam torná-la frágil e humanizá-la, pedindo a Deus que "derreta a neve que prende o meu pezinho"...
Bárbaro.
Só me diz que 'certa idade" é esta, pois, quanto mais véia fico, mais filosofo e estudo os filósofos, pois aí é que fazem falta.
Angela
Meu amigo, este vou ter que imprimir( já fiz isso com outros textos teus) e ir ler na rede. Uma , duas, três... quantas vezes seja preciso.
Estou com as suites de Bach para violoncelo pelo ar... e seu texto deixa um gosto meio ácido, como se travando a língua.
Beijos
Formigueiro e conflitos. Nos nossos formigueiros cá temos um prenúncio de conflito. Nada preocupante, apenas uma guerrinha de ironias, piadas e ciúmes. Mas as formigas cabeludas estão iradas.
Parecemos formigas sim. Talvez sejamos (e imaginemos que não somos). Borges explicaria. Ou Kafka.
Só não quero ser barata.
Tudo bem, comidas, formigas e nós num texto excelente; só que fixei-me num detalhe: tinhas um cachorro que "ria" e bebia "cerveja"? Ele não teve descendência? Curioso.
Grande abraço.
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