Saturday, April 16, 2005

Caros e Caras,
Paz e saúde!

- Ai…! Eu tô morrendo!
- Tá nada, vô. Sossega e deixa ler meu jornal em paz.
- Mas eu tô morrendo e você não faz nada. Fica aí lendo esse jornal que só fala de políticos comunistas e de futebol de merda, que é a única coisa que sobrou na Itália.
- Sossega…

- Ai…
- Vô, se você não sossegar eu não venho mais aqui ficar com você.
- Mas você não está comigo. Você está aí em baixo e eu, aqui em cima. Eu tô sozinho…
- ‘Cê tá precisando de alguma coisa? Quer um chá? Mais cobertas? Quer ajuda pra descer as escadas?
- Não. Eu tô quentinho embaixo das cobertas.
- Então me deixa ler.

- Me dá um pedaço desse jornal?
- Que pedaço? O que fala dos políticos comunistas ou o que fala do futebol de merda?
- Me dá um pedaço desse jornal?
- Tá bom…

- Senta aí, Marco.
- Toma. Lê sobre os eventos da semana.
- Nossa! Parece que você cresceu e engordou ainda mais.
- Vô, deixa disso! Você me viu dez minutos atrás.
- É, mas não tinha reparado. Tá parecendo um boi. Você é grande e gordo como um boi.
- Toma, lê sobre ciclismo. Você gosta de ciclismo.
- Eu também já fui grande e gordo como um boi. Hoje, pareço mais um bode.
- Você vai querer o jornal ou não?
- Só se você sentar aí na poltrona.
- Só se você deixar eu ler o jornal em paz.
- Béé…

- Quem é esse menino?
- Qual?
- Esse que está sorrindo. Não é o Armstrong. O Armstrong não sabe rir. Parece que a doença deixou ele triste.
- É o Cunego, aquele que ganhou o Giro ano passado.
- Se o Armstrong vier, ele vai ganhar. O Cipollini tá desanimado e além dele o único italiano que poderia bater o Armstrong era o Pantani. O Ulrich também pode ganhar dele, mas o Ulrich é alemão, não devia correr aqui.
- Vô, o Armstrong é americano, o Pantani era italiano e podia ganhar nos outros países. Então, o Ulrich também pode.
- Eu gostaria de ver um italiano ganhando corridas novamente. Gostaria que o futebol não monopolizasse tudo e que a Itália voltasse a ter nomes como Bartalli…
- O Cipollini deve correr…
- Todo ano o Cipollini diz que vai se aposentar e todo ano ele corre.
- É a grana que convence ele, vô.
- Porque ele não se aposenta? Será que ele vai correr até ficar velho?
- Quando ele tiver um neto ele se aposenta.

- Marco…?
- Vô…
- Porque você não põe o Filippo no ciclismo?
- O Pippo ainda é criança e ele gosta é de futebol.
- Se fosse meu filho, já estaria disputando…
- O Pippo vai ser grande como um boi, igual ao pai, ao avô e ao bisavô dele.
- Eu era grande como um boi…
- O Pippo já é um bezerro.
- Marco, ‘cê acha que o Armstrong vem?
- O Armstrong gosta de correr é o Tour de France, além do que ele tá velho.
- Velho sou eu, o Armstrong é um menino!
- Vô…!
- Eu tenho uma foto com o Bartalli. Pega meu álbum lá em baixo…?
- Vô, ‘cê decidiu que hoje eu não vou ler o jornal.
- Foi você que mandou eu ler sobre o ciclismo. E aproveita pra ver se o meu chá tá pronto.
- Que chá…?
- O que você me ofereceu. Eu não disse que não queria.
- …

- Tá aqui o álbum. Vou deixar o chá esfriando na cômoda.
- Põe um pouco de grapa que esfria mais depressa.
- Cadê a grapa?
- Tá em baixo da cama.
- Vô, ‘cê tá escondendo a grapa da vó…?
- Não. Foi ela quem colocou aí pra eu não chutar. Semana passada eu chutei a garrafa e esparramou grapa pelo quarto todo. Levou três dias pra sair o cheiro.
- Olha o que eu trouxe
- Quem fez esse queijo?
- Foi o Roberto, meu irmão.
- Então dá um pedaço grande.
- Metade?
- Metade.
- Béé…
- Béé…

Ciao.

13 comments:

Rafael Galvão said...

E assim eu fico sabendo um pouco mais sobre a Itália... Perfeito. ;)

Anonymous said...

Allan, eu espero suprir a pobreza do comentário com a minha sinceridade: eu gostei muito, muito, desse diálogo. De verdade. Vou treler.

Biajoni said...

super!

Anonymous said...

Muito bom.
Adorei!

Leila Silva said...

Allan,

Mas que avo! Grapa no cha? Nunca tomei...
Meu caro, sei que voce nao gosta so de elogios, rasgacao de sedas, como vc diz, mas como? O dialogo esta excelente. Olha que nem sempre 'e facil acertar com os dialogos, muitas vezes fica enfadonho. Aqui esta na medida certa, com sal, pimenta, oleo de oliva...parabens!
Abracos

Anonymous said...

"Ó miúdas, não vão à chuva!"
E brilhava um lindo sol no Rio de Janeiro...
Meu avô já demenciado e nós com 5 e 6 anos. Morreu em seguida.
Lendo seu texto me enchi de saudade.Que falta fazem os nossos avós. Lembrei da cena final do filme "A Família" do Ettore Scola. Do neto com o avô, quando ele retira o mingau do velho e dá a ele um prato de massa com molho de tomate.

Anonymous said...

Muito bom mesmo.
Dá uma certa melancolia na gente
inquieta

Luma Rosa said...

A vida é cíclica. E pensar que daqui a pouco vc vai estar no lugar do pai e o filho no lugar do pai...nâo quero pensar. Boa semana! Beijus, Luma

Anonymous said...

Vindo pelas "mãos" de Manoel Carlos, nenhuma surpresa ao deparar-me com excelente texto. Fez-me lembrar a final da copa de 70, eu menino indago ao vô Mancino (calabrês de Cosensa): "Vai torcer pra quem, vô?". "Para o Brasil, bambino, mas se a Azurra vencer vou ficar muito feliz. O vinho está gelado?"... Grande abraço.

Rafael Reinehr said...

Ho ho ho!

Esse vô é uma parada!

Em geral não entende nada

Que tiradas bem sacadas!

Ho ho ho!

Anonymous said...

muito bom. Geralmente você prefere as descrições ou divagações. Acho diálogo é difícil paca.

Anonymous said...

muito bom. Geralmente você prefere as descrições ou divagações. Acho diálogo difícil paca.

Anonymous said...

Adorei o dedo de prosa com o vô, mas me surpreendi ao saber que o final dos boi dá em bode rsrsrs

Não sou assídua, mas sou presente

Abraços caro