Sunday, July 25, 2004

Pobreza diferente

Caros e Caras,
Paz e saúde!

A senhora da limpeza me pergunta se eu poderia indicar alguém disposto a lhe alugar um apartamento por um curto período. Instintivamente puxo o canto direito da boca, mas consigo evitar o sorriso. Ela é italiana, do tipo que sabe se virar. Prova disso é o fato de ter conseguido os pontos necessários para ter direito a uma casa popular (imóvel do Governo com aluguel reduzido). Tudo por ser mãe solteira de dois filhos, cujos estudos são pagos pelo Estado Italiano. Graças à sua maternidade, recebe, ainda, uma ajuda financeira mensal da prefeitura de Nápoles, sua cidade, mesmo convivendo (sem declarar) com o pai do segundo filho. E mais: a prefeitura de Piacenza cobre metade do aluguel de quem conta com um salário insuficiente para manter a própria família. Devo reconhecer que o fato de a senhora ser napolitana conta negativamente no norte italiano. Mesmo assim, ela está hierarquicamente superior à situação dos extra-comunitários, que, na escala social italiana, estão abaixo dos caipiras do sul, dos gatos, dos cães e dos carabinieri (a PM italiana). Eu sou extra-comunitário (alguém que não nasceu em um dos países da Comunidade Européia), mas, por ser brasileiro, branco, elogiar o vinho deles e gostar de futebol, estou em uma faixa intermediária, entre os cães e os gatos. Talvez não seja a pessoa mais indicada para providenciar-lhe um apartamento.

O amigo de direita me pergunta porque o governo Lula não resolve o problema da pobreza no Brasil, e eu, já sem tanta paciência, tento explicar-lhe que entre a boa vontade e a capacidade existe um enorme fosso repleto de interesses escusos, corrupção, falta de vontade política e uma enorme necessidade de dinheiro. Ele me responde que se o governo brasileiro utilizasse o dinheiro gasto anualmente em publicidade na construção de casa populares, ao menos terminaria o mandato com algum saldo positivo e algumas desculpas a menos. Um sorriso amarelo toma conta de mim, enquanto tento mudar de assunto, elogiando o vinho que ele trouxe. Mas consigo a pequena vingança de vê-lo dizer que alguém de extrema-direita jamais deveria ter se metido em uma instituição tão comunista como uma cooperativa. Muito menos aceitar tornar-se presidente da associação e assinar todos os papéis, assumindo toda a responsabilidade. Só poderia mesmo ir à falência e o presidente perder tudo e tornar-se pobre, como no caso dele. (Risinhos).

A menina cigana abre um sorriso quando o semáforo fica verde e os carros partem. A estória foi bem encenada. Entre as mãos há uma nota entre as muitas moedas que conseguiu recolher. Seis e quinze, hora de ir para a casa, ou melhor: para o camper onde mora com os pais e que no dia seguinte estará na estrada rumo ao sul, onde os turistas do norte europeu invadem as praias e costumam ser mais generosos. Com hábitos diferentes, eles não vão ao cinema nem a restaurantes. Mas as roupas de seda, campers e trailers sempre equipados e o ouro em volta do pescoço (quando longe dos semáforos), dão a exata medida da lucratividade da atividade deles.

A risada é a principal característica do Fulano (é um nome fictício, acreditem) que aparece de vez em quando no restaurante para almoçar de graça. Aproveitando-se de uma relativa amizade com os proprietários, conta a mesma lenga-lenga triste de que está esperando para ser operado, que tem casa não sei onde, mas o hospital de lá não possui os mesmos recursos do daqui. Assim, deve poder contar com a boa vontade dos amigos, uma vez que a comida do hospital não é lá grandes coisas. Ajudar no restaurante, que é bom…

O proprietário diz que não pode esperar e exige receber o aluguel em dia, sob pena de despejo. Nos dois cômodos pequenos moram um marroquino e um albanês, ambos em situação irregular, vivendo de biscates enquanto um empreiteiro não puder contratá-los e legalizar a situação deles. O apartamento também é irregular: não tem instalação elétrica, falta acabamento, piso e janelas de vidro. Também não tem aquecimento, pois a obra foi paralisada antes do fim. O proprietário alugou assim mesmo. No inverno a temperatura chega a …bom, deixa pra lá! O proprietário pergunta porque eles não voltam pra casa. Eles respondem que existem situações piores, trocam um olhar resignado e juntam todos os trocados reservados para as compras. O proprietário mete o dinheiro no bolso sem contar, solta uma gargalhada e vai embora.

O Parlamento Alemão está discutindo um projeto de lei que prevê uma ajuda do governo aos pobres por opção. E antes que alguém ache graça, devo esclarecer que é sério! Uma pequena parte da população alemã (desconheço o percentual, mas deve ser mesmo muito reduzida) defende a idéia de que o governo deve sustentar aqueles que optam por não ter bens, não trabalhar e não contribuir de alguma forma para o próprio sustento. Segundo essas pessoas, a democracia deve permitir a opção de tornar-se um ônus e o estado democrático deve providenciar a subsistência do cidadão. Não apenas oferecendo cama, comida e roupa lavada, mas garantindo o direito de gozar a vida, ter férias(?) e poder ser nômade, se assim o desejar.

A essa altura eu deveria pular de costas no chão, jogar as pernas para o alto e urrar histericamente, mas não acho graça na institucionalização da pobreza. Não consigo não me revoltar com a exploração da solidariedade alheia, nem me diverte ver a miséria como instrumento de manobra ou gerando corrupção.

No fundo, são todos uns pobres diabos.

Ciao.

5 comments:

Anonymous said...

Sempre tive uma imensa vontade de conhecer a Italia,e espero ansiosamente por este dia. Muitas sao as coisas que a gente escuta sobre os outros paises e acabamos formando uma determinada impressao. Lendo o que voce escreveu cabe dizer que as diferenças entre os paises existem, mas nao sao tao grandes assim, bem diferente do que eu pensava. Passo a acreditar que o que existe realmente eh a forma como cada pais se mostra para o mundo.
Arriverdecci, ragazzo!
Sabrina Bonzi - Brasil
prana_felicidade@yahoo.com.br

Anonymous said...

Olá Allan, de cara notamos que o assistencialismo é irmão da corrupção e do favorecimento. E assistencialismo é outra forma de formalizar a miséria, tanto como na tentativa alemã. A cada dia mais os defeitos italianos se parecem com os nossos. Triste comunhão. Abraços.
Naldinho www.mblog.com/singrando

Anonymous said...

Allan, é um verdadeiro pecado que alguns maus hábitos sejam tão comuns aqui como lá. Mas, honestamente, nós caimos de costas no chão e jogamos as pernas pro ar, histericamente, com a notícia sobre a lei que corre no parlamento alemão.

Frank & Gaia

Anonymous said...

Allan,
Genial esse seu modo de nos mostrar as diferenças e igualdades de dois países tão diferentes e tão parecidos. As suas provocações nos obriga a ponderar se somos tão terceiro mundo assim, e desmistifica o sentimento ufanista sobre o que poderiam ser as nossas qualidades. As vezes é difícil acreditar que exista uma pobreza na Europa, mas a realidade é outra. E a pobreza também!!! Quanto ganha um "pobre" italiano? No brasil essa pergunta não tem nem sentido: pobre não ganha, só perde. A notícia sobre a (provável) lei alemã é revoltante. E quem consegue imaginar a cena da carta anterior? Trinta e seis graus??? Aqui tá um frio do cão!
Abraços, Luis Becker

Anonymous said...

Allan,
A senhora da limpeza que dá um jeitinho de viver bem; a comparação da escala social italiana, onde os extra-comunitários estão abaixo de cães e gatos, mas o brasileiro dá o jeitinho dele para subir na escala; o amigo de direita que entra numa fria de esquerda, apesar de sacanear o nosso governo; a menina no semáforo que pede dinheiro; o Fulano boca livre; o proprietário que explora os clandestinos e ri como num filme de cinema mudo; o parlamento alemão levando a sério o que deveria ser uma piada provocatória. Triste e pateticamente divertido!
Sutil o seu modo de comparar: "sorrir com o canto da boca", "risinhos", "dar uma risada", "gargalhar" e, por fim, ter uma convulsão histérica. Demonstra bem a sua insatisfação e desilusão.

PARABE'NS !!!


Diogo diogom@uol.com.br