Apesar da existência de alguns registros da época do Império Romano que aludem ao nobre produto, o primeiro documento sobre o uso quotidiano do queijo é de Giovanni Boccaccio, na célebre obra “O Decamerão”, quando narra um personagem que sonhava em viver no país de Bengodi (um lugar imaginário, onde reinava a abundância). Lá existiria “una montagna tutta di formaggio grattugiato, sopra la quale stavan genti che niuna altra cosa facevan che far maccheroni e ravioli, e cuocerli in brodo di capponi” (“uma montanha feita de queijo ralado, sobre a qual havia gente que não fazia nada além de macarrão e ravioli, para depois cozinhá-los em caldo de galo capão”).
Já no século XII surgiram os primeiros caseifícios (locais onde se produz queijo), em pequenas construções anexas a monastérios e castelos. Os quatro principais caseifícios se encontravam nos monastérios de San Prospero, em Reggio Emilia, e nos monastérios de San Giovanni, San Martino di Valserena e Fontevivo, na província de Parma. Não por acaso, terras com abundância de água para banhar os campos que produziam a forragem necessária para alimentar o gado. À diferença de outras regiões, na região parmense havia, ainda, a disponibilidade de sal, vizinho que é das minas de sal de Salsomaggiore, na província de Parma. A produção difundiu-se na área ao sul do rio Po, nas províncias de Parma, Reggio Emilia e Modena, e em parte das províncias de Bolonha e Mântua.
Atualmente a maior parte da produção é feita com o leite de vacas holandesas, levadas para a região por volta de 1900. Mas o melhor leite é o da raça reggiana – provavelmente introduzidas pelos longobardos séculos antes – que produz apenas metade do leite das holandesas. Ainda hoje, alguns pequenos produtores usam o leite das vacas reggianas para produzir um queijo de qualidade superior. Para cada quilo de queijo Parmigiano Reggiano são necessários 16 litros de leite.
O Parmigiano Reggiano é um produto DOP (Denominação de Origem Protegida), o que significa que tem a sua produção regulamentada por uma normativa europeia, cujo teor é preciso e detalhado, estipulando até mesmo o que as vacas podem ou não consumir. Rigorosíssimo na aplicação e vigilância do regulamento, o Consorzio del Formaggio Parmigiano Reggiano DOP – que representa o conjunto dos produtores autorizados – luta para combater as imitações espalhadas pelo mundo, como no caso brasileiro do “queijo tipo parmesão”. Na União Europeia é proibido o uso de qualquer nome que faça menção ao produto. Já não é possível encontrar nos supermercados dos países da UE o “parmesan cheese” de um tempo.
Trata-se, na realidade, de um queijo do tipo “grana”, mas de qualidade superior. A zona de produção encontra-se em uma área com fatores climáticos determinantes e o longo período de maturação influi no preço, também superior aos concorrentes. Sim, concorrentes, pois Parmigiano Reggiano é uma marca registrada. Cada forma pesa, em média, 40 quilos; a coloração interna deve ser “paglierina” (cor de palha), massa granulosa e consistente com um mínimo de 32% de gordura; sabor marcante mas não picante. E nenhum, absolutamente nenhum produto químico. Do capim ao prato.
Capim é basicamente o que as vacas podem comer. Nada de ureia, alimentos de origem animal ou restos de culturas. O capim, é óbvio, também não pode ser adubado com produtos químicos. E é todo esse cuidado, aliado ao clima particular, a garantir a qualidade de um produto genuíno e inigualável, numa tradição nascida há séculos.
O leite da ordenha da tarde é guardado até a manhã seguinte, quando é misturado ao leite da ordenha matinal. Dentro de imensos tachos de cobre, adiciona-se ao leite coalho de vitelo e parte do soro separado no processo de produção do dia anterior, iniciando o processo de cozimento para a coagulação. No final do dia a massa terá sido quebrada/partida manualmente, com o auxílio de uma espécie de escumadeira gigante, após a sedimentação, separada do soro e transferida para as formas já com as marcas externas que identificam o queijo. Em seguida a forma passa por uma pré-maturação, quando acontece o processo de salgadura por imersão em salmoura e inicia-se a maturação que, no caso do Parmigiano Reggiano, é de dois anos, em média; a maturação mínima para poder receber o selo do produto é de doze meses. Durante todo o período de pré-maturação e de maturação as formas são giradas diversas vezes, sistematicamente, o que contribui para a maturação homogênea do produto. O resultado de todo esse empenho tem um diâmetro de 35 a 45 cm e altura de 20 a 26 cm, com um peso mínimo de 30 quilos.
Todo processo de produção comporta riscos. Para evitar oferecer ao consumidor um produto fora dos padrões, cada forma é selecionada e classificada. Uma forma por lote será cortada para um minucioso exame organolético. Todas as formas recebem suaves marteladas num ritual de controle auditivo; pequenos furos são produzidos na extração de amostras para análises; uma por uma, passam por uma avaliação visual da parte externa e só depois serão classificadas como “scelto sperlato”, “zero” e “uno”, indicadas para comercialização inteiras; “mezzano”, para comercialização em pedaços – que permite descartar as pequenas marcas na crosta; “scarto” e “scartone” são as formas com defeitos considerados graves que serão raladas, após eliminação da parte danificada e comercializadas em embalagens take away – aqueles saquinhos de queijo ralado de qualquer supermercado, mas com a marca Parmigiano Reggiano.
Na Itália, rala-se sobre a massa outros tipos de queijos, além do Parmigiano Reggiano, dependendo do prato e do gosto pessoal de cada consumidor: pecorino – queijo de leite de ovelha – diversos queijos de leite de vaca e até mesmo a ricota, depois de prensada e seca ao forno, mas a grande maioria não abre mão da tradição. Da mesma forma, o Parmigiano Reggiano não serve apenas para ralar sobre o macarrão nosso de cada domingo. Ele entra como ingrediente em muitas receitas; é usado como recheio de massas; pode ser adicionado como cobertura de pizzas ou consumido aos pedaços/escamas, acompanhado por um copo de cerveja ou de vinho. Os médicos italianos aconselham o consumo – sem a cerveja ou o vinho – na maioria das dietas, inclusive na papinha de bebês.
A minha sugestão é escolher um pedaço de queijo considerando a quantidade de porções a serem servidas – ou você não terá o que fazer com 40 quilos de queijo – e ralar o queijo no momento em que for usar. Caso seja embalado a vácuo, retire-o da embalagem um dia antes do consumo; um bom gourmet irá deixar o queijo – qualquer queijo – à temperatura ambiente uma hora antes do consumo.
Compare com outros queijos para ralar, degustando os produtos em um mesmo momento. Experimente puro, sinta o aroma particular e explore os seus sentidos para perceber as diferenças. No final você irá entender porque o Parmigiano Reggiano é o rei dos queijos.
No próximo post, brodo e sofritto. Os segredos do risotto.
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Fora a sensacional cobertura jornalística de como é feito, ficou na boca a vontade de provar esse queijo... Manda para mim, manda???
ReplyDeletebeijos
Allan, parabéns pelo post tao esclarecedor e rico em conteúdos. Você sabe que eu fui até a minha geladeira para ver que tipo de parmesao eu tenho. E sabe que fui surpreendida? Eu tenho aqui: "Cucina Originale Italiana" Parmigiano Reggiano 32% de gordura e 2 anos de idade. Eu o compro num mercado que nao sei se tem ai na Itália que se chama "ALDI" e ele tem diversos produtos italianos. A Viviane minha filha o come em escamas, pois ela o adora. Ontem na pasta metade do pedaco que comprei foi ralado. Da próxima vez vou tirá-lo da geladeira com antecedência.
ReplyDeleteValeu tao rica informacao.
Boa semana grande abraco pra você
Aí você mata a gente. Agora são 11:30... só vou sair pra almoçar as 13:00... tenho um pedaço do dito cujo em casa, mas a essa hora só posso lembrar do gosto.
ReplyDeleteDevo voltar pra casa semana que vem. Vai bater uma saudade incrível dos queijos e dos presuntos... Aliás, obrigado pela pequena aula em Riva... agora tenho mais atenção na hora de comprar essas delícias.
Abraços
Em minhas viagens, mesmo a trabalho, procuro fazer o chamado turismo cultural e a culinária faz parte da história e da cultura dos povos, como você muito bem habitualmente demonstra; o duro é descobrir que cultura não enche barriga, mas engorda.
ReplyDeleteAllam, sua aula foi simplesmente ótima. Adorei saber isso tudo. Beijocas
ReplyDeleteSério mesmo que os médicos italianos recomendam?? Agora mesmo vou sair por aqui procurando não um parmesão mas um médico italiano...( que meu algoz, o bom Fred- espanhol, por sinal, não me ouça) !!
ReplyDeletebeijos
Allan, sem comentários. Esse post está tão perfeito q eu vou dar um copy/paste básico e guardá-lo no meu folder de culinária aqui em casa. Vai pro arquivo de receitas! Muitíssimo obrigada por escrevê-lo, ficou supimpa.
ReplyDeleteNão fiquei com inveja porque tia Arina traz sempre que vem da Itália. Por aqui também tem, mas ela insisti em trazer o queijo, grappa, tomate em conserva, um monte de coisinhas. Mas acho que conservo errado, coloco no freezer em pedaços e vou tirando conforme a necessidade.
ReplyDeleteBem, acho que vou abrir um vinho!
Bom fim de semana! Beijus
Preciso ir à Itália conhecer o Rei dos Queijos. Basta de imitações. Agora eu faço questão do original, do verdadeiro, do imcomparável Parmigiano Reggiano. :-)
ReplyDeleteme deu vontade de largar tudo e sair pra comprar o queijo!
ReplyDeleteOlá Allan. Sei que "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa", mas aqui no Sul se faz um "Grana Padano" bem gostoso e que inclusive deixou os Italianos que vieram conferir de bôca aberta (literalmente), é fabricado pela Randon Agrosilvopastoril, por conta do empreendendorismo do seu dono. Vale a pena experimentar.
ReplyDeletehttp://gula.ig.com.br/entrevista/158.shtml
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