Sunday, May 22, 2005

As Quatro Estações

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Nunca a obra de Vivaldi foi tão mal tratada. As notas parecem saltar na partitura mudando de lugar. Talvez, sopradas pelo vento. Estamos na parte da sinfonia dedicada à primavera e nos damos conta de que alguém mexeu no original. Tem um pedaço de inverno interrompido por traços de verão, salpicado com odores de outono. Executada como está, a orquestra tem provocado oscilações de temperatura enlouquecedoras. No início da estação, em Piacenza, chegamos a uma diferença de trinta e quatro graus em apenas cinco dias, saindo de -3 ºC a 31 ºC. Agora parece ter estabilizado entre os 13 ºC e 26 ºC, se considerarmos uma diferença de dez graus em poucas horas como estabilidade.

A chuva também tem feito das suas, indo e vindo, numa indecisão típica desse fim de governo italiano, onde os aliados de ontem vão pulando do que restou do navio para nadar no mar da barganha do governo de amanhã. O efeito húmido (do clima, não do governo) trouxe um pouco de alívio à saúde humana, eliminando as toneladas de pólen que tomam conta do ar neste período, provocando alergias sem fim. Fico imaginando como as plantas irão se arranjar sem o trabalho da brisa fresca e seca.

Este ano, pela primeira vez, fui contagiado pelo “mal de primavera”, que sempre julguei fricote de país rico. A sensação é a de uma gripe forte: dores no corpo, cansaço permanente, sono e um humor de fazer inveja ao gigante do pé de feijão. Cheguei a dormir dez horas; o dobro da minha média. Mas durou só uma semana e já foi tarde. Saio de camisa pólo e resisto a qualquer temperatura. Evito ao menos de participar do constrangedor desfile de mangas curtas carregando pesados casacos.

As árvores, ao contrário, vestiram suas roupas de festa. Das tulipas, só lembranças. As flores, desesperadas, desafiam chuvas, obras e temperaturas. As máquinas vão cortando o asfalto com o mesmo frenesi das flores, transformando a cidade num canteiro de obras. Tudo deve estar pronto até o fim do verão, que ainda nem começou. Rotatórias no lugar de semáforos, reestruturação da rede de esgoto e da rede elétrica. Tudo ali, a um metro da superfície, para evitar escavações que poderiam deparar com restos arqueológicos, o que paralisaria a obra por anos, causando transtornos em todo o centro histórico. As flores, indiferentes à poeira e ao barulho, crescem e desabrocham, colorindo a cidade.

Na maior parte do Brasil não se sente a mudança de estação dessa forma tão marcada. Mesmo no Sul, onde a temperatura e o vento frio fazem estágio na Antártida antes de visitar o continente, falta a neve; falta uma temperatura negativa por longos períodos; falta a completa ausência de plantas durante o inverno, típica do norte da Itália, que permite o renascimento na primavera, que provoca essa explosão de cores e perfumes. Outra diferença é a quantidade de horas de sol: no inverno, das oito e meia da manhã às quatro e meia da tarde, é dia, o resto é breu. No verão, o sol nasce quinze para as cinco da manhã e as dez da noite ainda está claro. Alguém precisa inventar uma bateria de lítio para o meu relógio biológico. Mas como o ser humano é capaz de se acostumar até com mordida de cachorro, vamos nos adaptando e observando as flores.

O inverno parece ter entorpecido, também, as cabeças governantes. Depois da surra que a direita do atual governo levou nas urnas, na recente eleição para escolher os governadores das regiões, Berlusconi já tentou de tudo: sugeriu a criação de um partido único; ameaçou retirar-se da política após o término de seu mandato, ano que vem; solicitou o enésimo pacto de governabilidade à oposição (como se governar dependesse da oposição); fez transplante de cabelo (aliás, o transplante foi feito ano passado, no verão. O efeito é que está aparecendo só agora); auto-proclamou-se gestor da reaproximação entre Bush e Putin e não perde uma única oportunidade de apresentar-se como principal interlocutor nas importantes decisões da Comunidade Européia, em constantes aparições com outros chefes de governo ou no eterno beija-mão com Bush. Que as relações entre Bush e Putin permaneçam a temperaturas siberianas, ou que os outros governantes europeus não o levem a sério, são apenas efeitos dessa típica alergia de primavera. Só não entendi o silêncio de Silvio Berlusconi, que teve, por mais de uma vez, as costas gentilmente esfaqueadas por ex-aliados, incluindo o ex-vice-primeiro-ministro. Curioso.

Pobre orquestra. Continua a tocar como se nada acontecesse. A figura patética do maestro gesticulando enquanto músicos catam partituras levadas pelo vento fresco dessa parte da sinfonia, cabelos que dançam e lhe entram nos olhos. O barulho indiferente do dia, ônibus e obras atrasadas, serve para cobrir o som da orquestra. O que nos permite imaginar a obra tocada como sempre foi, com cada nota em seu lugar, quando o calor pertencia ao verão e o vento frio, ao inverno. Quando a primavera ainda se escrevia com letra maiúscula, e tinha dias frescos e flores calmas.

Ciao.



PS – Essa carta já estava escrita quando recebi a notícia (ansiosamente esperada) do nascimento da Isabella, filha do Cássio e da Mônica. A situação mudou, em uma semana. A temperatura parece ter-se finalmente estabilizado; pólen e paina (paina?) tiveram oportunidade de fazer vítimas, mas poucas. O governo, milhares. Talvez não tenha sido uma grande mudança, afinal. (À exceção da flor nascida em São Paulo, que será novidade por muito tempo.)

10 comments:

Anonymous said...

E aí Allan, beleza? Pô vim agradecer a sua participação lá no blog na votação. Quer dizer que vc está na Itália, Dio Mio, imagino as gatas que vc ve por aí. Valeu a participação. Volte sempre.

Nora Borges said...

Allan, este ano plantei minha tulipas em torno das árvores do jardim... maravilhosas e fugazes como só elas sabem ser!
Agora me encanto com as amapolas dos campos, as rosas das praças e os gerânios das sacadas das casas...Nordestina ama a mudança das estaçoes!
Agora, quanto ao governo, Zapatero deveria cuidar dos sapatos. Nunca vi tanta incompetência ( nao estou com isso escolhendo entre direita e esquerda. É que o sujeito é uma adolescente perdido que acha que já sabe tudo. Pior, acha que democracia é direito só dele)
Beijos

Leila Silva said...

Allan,
Como vai? Pois 'e, o mundo anda aas avessas, nao?
Eu estava, justamente, no Sul do Brasil e todos me aconselharam a pegar os casacos...que nada! Senti muito mais calor que frio.

Um abraco

Anonymous said...

Já virou lugar comum dizer que o tempo no mundo está maluco. Mas você conseuiu falar deste assunto de forma original e poética. Gostei.

Claudio Costa said...

Sugiro trocar o Vivaldi pelo Strasvinski: "a sagração da primavera". Talvez a música combine mais. Abração.

Luma Rosa said...

Você sofre aí com o mal da primavera e nós sofremos aqui com o mal do Outono. "Mudaram as estações, mas nada mudou". As pessoas continuam as mesmas e danificando cada vez mais a natureza. Beijus, Luma

Anonymous said...

Cá no Brasil temos sofrido umas tais frentes frias, talvez resultado do olhares gelados que temos recebidos de nossos vizinhos argentinos. Água tem caído bastante mas parece que ainda não sabemos o que fazer com ela. Continuamos em tempo binário, afinal nossas bachianas têm quatro movimentos, que afinal não são estações.

Abraços.

Anonymous said...

Oi Allan, estava justamente procurando por curiosidade informações sobre a Itália e me deparei com as sua informações confesso que quando li a primeira carta e me encantei logo com a forma como diserta em seguida li a segunda, terceira, quarta ...... me encantei de uma forma que não consigo parar mais de ficar lendo ...... acho que não preciso mais ficar pesquisando informações sobre a italia, ler suas cartas já me basta....
Sou Ana Cristina, Brasileiro em especial de Salvador Bahia .....moro a 5 minutos da Cira do delicioso acarajé.
Saúde e realizações

Anonymous said...

Ana Cristina
anacris_ss@hotmail.com

Unknown said...

pesquisando sobre a Itália, achei seu blog......sensível....parabéns....
fiquei fã....