Sunday, December 19, 2004

Nas Terras do Saci

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Os anos sessenta foram tempos duros. Lembro que minha mãe mandou-nos para a casa dos nossos avós, em Itaquira, um lugarejo perdido entre Macaé e Campos, no interior do Rio de Janeiro. O único modo de chegar em Itaquira era de trem, e o trem só parava ali uma vez por dia. Se houvesse necessidade de sair em horário diferente, precisaria ir até Carapebus, um vilarejo pouco maior que Itaquira e algumas horas de distância a cavalo.

A casa da minha avó ficava próxima à linha do trem, que servia de estrada para nossas caminhadas até a escola. Antes da aula, porém, eu e meu irmão Cecil íamos até a fazenda vizinha pegar leite, e ele aproveitava para provocar a vaca vermelha, obrigando-a a correr atrás dele. E ele, gargalhando, driblava os chifres da vaca. Depois, leite quente, pão caseiro com manteiga idem, aipim, farofa de gergelim socada no pilão, um gole do café ralo típico da região e escola. O trilho do trem cortava o longo e ininterrupto canavial. Nos passeios de trem com minha avó, eu sentava na janela e observava o que parecia um imenso mar verde, ondulante sob o vento. Pois bem, é em Itaquira que mora o Saci. Um negrinho de uma perna só, com um barrete vermelho e um cachimbo de barro na boca. Adora estripulias como destelhar casas e assustar os animais. O seu sinal é o vento: se o canavial atrás da gente começa a balançar, não se deve olhar pra trás, ou o danado nos joga no chão com um tapa na cara. O único modo de capturar um saci é jogando uma peneira na base de um redemoinho e, com cuidado, colocá-lo dentro de uma garrafa. Mas o tinhoso é ágil e não se deixa apanhar. Meu avô me deu uma peneira, fingindo não saber que era pra pegar saci, pois ele era contra essa convivência estreita com as lendas e superstições. Creio que a peneira ficou por lá, quando ele vendeu a fazenda para ir morar em Macaé. Quem sabe alguém conseguiu engarrafar um saci com ela. Quem sabe…

Ontem, sábado, fui à reunião na escola da Luiza. Os elogios de sempre, uma rasgação de seda com os resultados e o comportamento responsável da menina, um sincero orgulho das professoras pelo privilégio de tê-la como aluna, e toda aquela ladainha que fazem quando se referem à melhor aluna da classe. Nada disso desviou-me do meu objetivo: falar com a professora de matemática que ela havia sobrecarregado a Luiza de responsabilidades, provocando ciúmes nos outros alunos. Mas como afrontar a fera? Ela é daquelas pessoas que se altera quando fala, esbugalha os olhos pra fora, gesticula e dispara a falar numa velocidade de deixar locutor de futebol de boca aberta. E mudo. Além disso, meu irmão Cecil nem está por perto para ensinar-me como dribla-la. Bom, a técnica usada foi a de sempre: jamais dizer qualquer coisa que possa soar como cobrança ou agressão, o que só provoca reações defensivas e não resolve o problema. O truque é sorrir sempre e criar uma situação onde o outro assuma a responsabilidade de resolver o problema, como um salvador da pátria. Expliquei a ela que a menina tem o hábito de assumir responsabilidades (não, não é culpa da professora se ela apaga a lousa, vai chamar a bedel, ou auxilia os colegas quando a professora pede, é ela que é assim) e que isso estaria provocando uma reação no resto da classe. Esclareci o quanto me sinto impotente para resolver o assunto e de não ter a mesma experiência de uma professora com tantos anos de bons serviços prestados. Arranquei dela a promessa de uma especial atenção para o problema, além do compromisso de utilizar também os outros alunos para as pequenas tarefas em classe. Saí de lá com a certeza de ter falado com a pessoa certa. A professora que deixei, sentiu-se dona da responsabilidade e única capaz de resolver todos os problemas, ajudando um pobre pai preocupado com a saúde emocional da própria filha, sob o sorriso cúmplice da professora de italiano, que piscou-me o olho na saída.

Ontem, sábado, foi um dia de vento. Pensei que fosse somente em Piacenza, mas a televisão informou ter ventado forte em toda a Itália. As bicicletas – a algumas lambretas – foram jogadas ao chão, sobre as calçadas. As folhas das árvores neste fim de outono sendo varridas de um lado para outro, uns poucos redemoinhos. Casas destelhadas, animais assustados, e alguém que me assoprava o fogo do isqueiro, impedindo-me de acender o charuto. A temperatura não era das mais baixas, mas o vento gelava tudo.

O mesmo vento que trouxe notícias da Turquia, na comemoração pelo início das negociações para a sua entrada na União Européia, apesar de todos os pareceres contra, apesar de nada estar definido e apesar das tais negociações estarem previstas para iniciarem no longínquo outubro do ano que vem. O mesmo vento que leva para longe as notícias do Iraque, para não estragar o clima de Natal, formando um redemoinho que só permite a divulgação de notícias amenas, do campeonato de esqui, do futebol, do veadinho que invadiu a pista de esqui no momento em que o concorrente italiano fazia sua descida, dos presentes mais procurados. O mundo é um delicioso floco de neve.

Saí da escola com o capote fechado, olhos de camelo protegidos pelos óculos escuro. Repassando a conversa com a professora, observei os pequenos redemoinhos que giravam as folhas, como meu irmão que ria enquanto driblava a vaca vermelha. Imaginei o sorriso do negrinho, quando o policial saiu correndo atrás do quepe.

Ah…!
Que falta me faz a minha peneira.

Ciao.

12 comments:

Claudio Costa said...

Allan, no interior das Minas Gerais, numa cidadezinha banhada pelo rio Piracicaba, também morava um Saci. Seria parente daquele dos canaviais?
Você soube lidar com a professora de olhos esbugalhados, tal um psicanalista com o cliente: que ele assuma e resolva! (rsrsrs)

Anonymous said...

Oi Alan! Afinal, quantos irmãos? E que nomes? Esses seus textos me lembraram Chalie Chan com o filho número 1, filho número dois. Você e seus irmãos! ;-)

Acho que os interiores brasileiros continuam semelhante. Um amigo virtual entra de férias e avisa: já estou no sítio (interior de Minas) e aqui tem um cyber café..quer dizer, uma padaria que tem um computador ligado na internet por linha telefônica. Quando eu vier comprar pão, eu vejo os mails! ;-)

A filha brasileira arrasando no estrangeiro! Por que você acha que isso está ocorrendo? além do mérito da menina, alguma influência do Brasil? Pois é comum nos EUA os alunos brasileiros se destacarem, claro que, em geral, quem vai pra lá é da classe privilegiada que teve 3 refeições por dia, mas , mesmo essa droga de ensino faz com que o povo de pindorama se destaque.

Há diferença no ensino?
Angela

Leila Silva said...

Allan,
Deliciosas mesmo sao essas suas cronicas, meu caro!
Eu nao sabia que o Saci era de la, interessante.
Olha, voce e' um verdadeiro diplomata, tiro o meu chapeu e parabens a Luiza...voce deve ser um pai orgulhoso.
Abracos
Leila

Leila Silva said...

Allan,
Voltei so para 'falar' sobre o seu comentario deixado la no meu blog...eu me lembro bem do seu post sobre o possivel plagio na Divina Comedia. Achei muito interessante e pensei nisso mesmo quando vi esse artigo sobre Moliere. Obrigada pela sugestao de leitura, vou procurar o livro assim que tiver oportunidade.
Abracos

Anonymous said...

Apesar das inúmeras visitas que vc faz ao nosso blog (www.mineirasuai.blogspot.com), confesso que é a primeira vez que leio suas crônicas.
Parabéns pelo blog! Os textos são bem reflexivos... voltar à infância é meu melhor passatempo, viagens inesquecíveis, fábulas incríveis.

Anonymous said...

Allan,

Acho que usaste tua peneira para conseguir "pegar" a tal professora. Cada coisa tem o jeito certo de ser resolvida, e creio que acertaste no caso da professora.

E confesso que fiquei com inveja das tuas histórias de Itaquira...

Beijos,

ninha - http://www.doislados.blogger.com.br

Anonymous said...

Allan, você é um Saci, quando brinca com as palavras. Tenho tido algum problema para fazer meu filho entender o que é preparar o futuro. Vou usar tua tecnica, quem sabe facilita a tarefa. Abraço!
Reginaldo Siqueira - singrando.org

Mineiras, Uai! said...

Allan, quando li seu texto sobre o Saci, lembei-me pequenina e precoce, lendo toda a coleção do Sítio do Pica-pau Amarelo de Monteiro Lobato, que papai me presenteou... Devorei aqueles livros, e tentava como nunca pegar um saci, sempre que via uma redemoinho de vendo (rs). Papai me contava que em Nova Era tinha um Saci muito travesso, que uma vez quase que ele o pegou, mas o danadinho passou foi a perna em todos... hahahaha Gostei do comentário da NIna, que disse que vc pegou com a peneira foi a professora!
Um abraço
Ana Letícia
http://mineirasuai.blogspot.com

Mineiras, Uai! said...

Ai Allan, que delícia de texto! Meu Deus, como me lembro dos meus 17 anos na roça, era muito bom, tudo muito simples, a noite chegava e as histórias vinham com ela, o céu perfeito, o quintal...que saudade disso tudo, garoto!

Bjos da Dô

Anonymous said...

Não vou falar sobre o saci, embora vá falar sobre alguém que também usa um chapéu vermelho...Feliz Natal Allan!

Biajoni said...

mas eu vou dizer uma coisa que acho que vocês não sabem... existe uma ONG, uma sociedade muito séria pois sim, chamada sociedade dos observadores de saci. um amigo meu, jornalista, é que é presidente, tendo avistado já váááários pernetas negruzumes e carapinchos. não crêem? vão lá:
http://www.sosaci.org/
;>)

Anonymous said...

Oi Allan, muito gostosa sua crônica sobre o saci de Itaquira. Meu caro, você me deixou emocionado pois passei várias férias por lá, pegando carona nos carros de boi que levavam cana de açúcar para o alambique (não sei se no seu tempo ainda existia o alambique). Sou da família Gomes de Carapebus.. Hoje Itaquira se resume à escola e a venda de baixo. abrs Manoel (mggomes@brturbo.com