Saturday, October 15, 2005

O Lado Bom

Caros e Caras,

Paz e saúde!

A pergunta é: voltamos ou não para o Brasil?

Desde que viemos para a Itália, eu, Eloá e nossas filhas Bianca e Luiza, em novembro de 1999, alguns amigos nos indagam como é ser estrangeiro e quando voltamos. A idéia de escrever estas cartas e enviá-las por e-mail, inicialmente, e de montar este blog, depois, surgiu do volume dessas solicitações e da minha indisposição em responder todas as perguntas diversas vezes. Aos que não me conhecem mais intimamente, devo confessar minha pouca afinidade com canetas e folhas de carta, desde que fiz um curso de datilografia, trinta e três anos atrás e ganhei minha primeira máquina de escrever. A caligrafia, a ortografia e a gramática também não são grandes coisas.

Quase sempre recebo respostas às minhas cartas por e-mail. Tem sempre algum amigo pedindo maiores esclarecimentos, criticando meu ponto de vista, minha ortografia, minha gramática ou fazendo sugestões. Ocasionalmente, recebo também elogios. Esta semana recebi uma análise de um amigo que me suporta há trinta e um anos, e creio que as dúvidas levantadas por ele possam rondar outras cabeças. Nas minhas cartas ele identificou o que imagina ser a resistência a uma completa adaptação à nova cultura. O que pode ser a diferença entre viver bem ou tornar-se um estrangeiro rabugento.

É óbvio que toda ação provoca uma reação – às vezes contrária, ensinava Silo. Quando nos deparamos com informações ou valores diferentes daquilo que aprendemos como verdade, reagimos defensivamente e, normalmente, negamos essa nova realidade. É a tal resistência às mudanças que tanto combatemos nos programas de qualidade. Decidi escrever sobre as agruras que um estrangeiro deve enfrentar (e creio que não somente na Itália) ou, como escreveu um amigo italiano que mora no Brasil, as dificuldades que somente alguém que emigra pode entender. Isso, por achar mais divertido e mais fácil registrar uma visão mais dura que falar positivamente das experiências (a Lei de Murphy explica bem esse lado). Acredito ser um modo rápido para mostrar as diferenças existentes, além de servir para desmistificar a imagem equivocada que alguns amigos possam ter sobre viver fora do país.

Esse meu comportamento não deve, ou não deveria, criar a impressão de que encontramos dificuldades em nos adaptarmos, ou que fazemos algum sacrifício em morarmos aqui. Ao contrário, os amigos italianos se surpreendem em como nos adaptamos bem. E nós dividimos com eles esta opinião. Culturalmente, são poucas as diferenças. O modo discreto que sempre tivemos de levar a vida, se adapta a qualquer situação e a diplomacia no tratar as pessoas, previne de um possível ar arrogante na primeira impressão. A simpatia que as meninas despertam faz o resto.

Se, por um lado, a burocracia e arrogância incomodam (a burocracia é realmente irritante. A arrogância, a conhecíamos do Brasil) e uso os pequenos incômodos para generalizarmesmo ciente de que toda generalização comporta um preconceito – o faço em tom de galhofa e conto com o bom humor de vocês. Por outro lado, conhecemos e aprendemos sobre as novidades e procuramos usufruir do que é bom. Que fique claro: além da saudade, existem pontos negativos nessa não tão nova experiência, mas o saldo é positivo e mais que satisfatório.

Aqui, aprendemos que pessoas idosas (e nãovelhos”) podem e devem ser úteis. É comum encontrar gente produtiva além dos oitenta anos; as instituições sociais e de cidadania funcionam de verdade; existe apoio concreto ao desenvolvimento de novas empresas, micro ou não; verbas públicas financiam o aprimoramento de técnicas que propiciem ganhos de produtividade ou capacitação do quadro funcional. Aprendemos a planejar nossos gastos anualmente – acabamos de receber um cheque de €$ 72,00 como ressarcimento da conta de luz, paga por estimativa e verificada a cada doze meses; a educação é obrigatória e de qualidade; é possível comprar de tudoum carro, uma casacom juros e taxas, que, somados, estão longe de dez por cento ao ano; com a mudança marcante das estações, vivemos em quatro países diferentes sem sair de casa; a história, a arte, a arquitetura e a inovação do design, aplicada nas coisas mais simples e quotidianas, nos transformam em agentes participativos e não somente contemplativos. Isso sem considerar os prazeres à mesa, fartamente citados. Claro que nem tudo funciona sempre, mas eu poderia continuar resumindo o lado bom do nosso novo país por páginas e páginas, sem esgotar a relação, mas vou poupar maiores argumentos que poderiam provocar impulsos a viagens não programadas.

Portanto, caros amigos, não tenham dúvidas: Vivemos muito bem em Piacenza, cidade calma, cercada de muita História e lugares agradáveis, com pouco menos de cem mil almas espalhadas pela Província (cidade e vilarejos). O índice de criminalidade praticamente inexiste e é comum ver pessoas de todas as idades rodarem a cidade de bicicleta às duas da madrugada. Longe setenta quilômetros do burburinho de Milão e sem o charme de uma Florença, a nossa cidade é pouco conhecida fora da Itália, o que a torna ainda mais tranquila. Mas é uma cidade chique sem ser cara. Afinal, é a cidade natal de Giorgio Armani (a médica da Luiza é prima dele!) e uma das cidades européias com maior índice per capita de joalherias e agências bancárias. Terra de gente rica...

Outro ponto de análise da carta do amigo citado acima, que havia aparecido em cartas de outros amigos, sugere (pela segunda vez): “acalente um projeto literário, que certamente lhe dará prazer, provavelmente será bem recebido e talvez lhe dinheiro.” Acredito que haja uma ponta de remorso, pois o amigo em questão, justamente por gozar de ampla amizade e depois de muita insistência minha, tornou-se o meu segundo maior crítico, em uma época em que acreditava que escrever se resumia a botar algumas idéias (criativas ou não) no papel e transformá-las em livro, sem importar-me com detalhes como estilo, técnica, etc. Tranquilizo-o informando que eu apenas ouvi o que desejava ouvir e não tinha coragem de dizer eu mesmo. Eu não possuo a genialidade e tenacidade de um Aldo Pereira nem possuo a veia inteligente e provocatória de um José Arbex (leiam a Caros Amigos!). Como o meu maior crítico sou eu mesmo e, como detesto a mediocridade, decidi que se não pudesse ser um Machado de Assis, não ousaria transformar-me em um Ignácio de Loyola Brandão.

Aprendi a lição. Hoje sou mais leitor que escritor. Devoro com a mesma paixão Emily Dickinson e Cora Coralina; John Donne e Olga Savari; Júlio Cortazar e Rubem Braga; teatro grego e livros técnicos. Confesso concordar com a afirmação de Ezra Pound: “O mau crítico se identifica facilmente quando começa a discutir o poeta e não o poema.” Mas a concepção da obra de um Roland Barthez, por exemplo, muda diante da alegação de que ele seria um homossexual ou um Don Juan. E esse é o maior problema: eu me conheço bem demais para não relacionar a obra com o autor. Prometo pensar no assunto, se conseguir transmitir para o papel um pouco da ironia com que encaro a vida. Não é uma ameaça, mas vou pensar.

Quanto a pergunta inicial, bem… vai ficar sem resposta. Aprendemos a viver o presente, mas sem deixar de sonhar. E ainda temos muito a conhecer e aprender por aqui. Um dia, quem sabe…

Ciao.

8 comments:

Anonymous said...

Olá... há apenas uma semana que leio suas cartas, meio sem jeito pois parece que ando abrindo envelopes que nao sao para mim... mas essa carta devo confessar que, se nao responde a uma pergunta feita a mim mesma desde que nós também chegamos há 3 anos na Espanha, ao menos me fez tomar mais cuidado com meus "balanças" diários se vale ou nao ficar por aqui, tao longe de avós e primos de nossas filhas (nós também temos 2!)Penso que colocar na balança a insegurança e a violência de nosso país é fácil, o difícil, como já disse tantas vezes, é passar anoversários e natais longe de pessoas da família... Mas devo admitir que você está certo: há muito ainda que conhecer e aprender por aqui...
Um grande abraço!

Anonymous said...

"O teu cristo é judeu,
tua máquina é japonesa,
tua pizza é italiana,
tua democracia é grega,
teu café é brasileiro,
teus números são árabes,
tuas feições são latinas (...)
e tu chama o teu vizinho de estrangeiro"
Carlo Giuliani

Hoje em dia parece ser mais fácil adaptar-se em outros países "ocidentais", né? abs

Anonymous said...

Bom dia, Allan,

Cheguei aqui através do "Síndrome De Estocolmo" e "Lixo Tipo Especial" e achei a tua escrita muito boa e as tuas idéias muito interessantes. Gostei também de ver a minha galera (Cortázar, etc...) mencionada por você nesta carta mais recente.
Com certeza vou voltar.
Abraços,
Guilherme.

Leila Silva said...

Allan,

Aodrei esse post, indentifiquei-me muito sobretudo com essa primeira parte, as considerações sobre a vida de imigrante. Faz tempo que venho lendo as suas crônicas, nunca vi nada que eu pudesse considerar rabugice, eu o considero uma pessoa crítica, que analisa as várias faces de uma questão. Ser imigrante é muito enriquecedor, sem dúvida, mas não é tarefa fácil para quem tem posicionamentos, quem tem esse espírito. Esse assunto me toca muito...sempre observei os diferentes imigrantes brasileiros, em diferentes cidades da Europa ou Estados Unidos e é um universo fascinante. Escrevi um pouco sobre isso em jornais da comunidade brasileira na Europa (editado em Londres, na época), nem todo mundo quer refletir sobre essa condição...ou não pode, não sei. Bom, resumindo, nunca veria os seus desabafos, suas belas crônicas/cartas/considerações como rabugice. Acho que entendo bem tudo isso.

Voltar? ufa! Depois falamos mais...é outro desafio.
Beijos

Anonymous said...

Eu, aqui, pasma com a sensibilidade facilmente identificada nesse post, Allan. Mas sabe... Acho que enquanto há a dúvida (voltar ou não?), ainda não é hora de voltar. E que você continue nos presenteando com suas cartas, estando aí ou não. Bacini.

Anonymous said...

Faz o seguinte... Marca umas férias e vem para cá! A gente se reune, vocês matam as saudades daqui mas voltam. Afinal, só a casa do Flávio aí para a gente se alojar é muito pouco!!!! rs....

I said...

Gostei tanto de ler sobre a cidade onde vive! Ainda ha aí lugar para mais um? Gostava de viver num país com essa qualidade de vida. Arrependo-me cada dia que passa de, quando nova, não ter emigrado e se um dia os meus filhos mostrarem vontade em ir embora apoia-los-ei.

Anonymous said...

Nossa...é muita humildade sua Allan, dizer que nao está pronto para por seu genial vocabulario em papel...Mas , fazer o que ? Voce é juiz de vc mesmo nessa hora ...
Voltar ? tudo tem um preço , eu que sempre paguei com muita satisfaçao o preço que aqui se cobra , agora, que a vida nada mais vale e toda ética e moralidade nada vale, digo a voce : pense bem em voltar pois o preço nao vale mais a pena ...nem tanto voce mas suas filhas com certeza vao sentir muito a diferença ...
Um abraço
Walter