Wednesday, January 05, 2005

Cadê o Mordomo?

Caros e Caras,
Paz e saúde!

Num dos departamentos da empresa onde trabalho havia (passado imperfeito) um chefe maluco. Seu comportamento viajava de um extremo a outro com um gesto, uma palavra. Apesar de tudo era uma pessoa divertida. Os mais experientes evitavam confrontá-lo nos momentos de combustão, ou, quando o faziam, era para mostrar que o culpado era ele, o chefe. Quando o chefe encontrava algo errado procurava o culpado e partia pra cima berrando por explicações. Como a primeira reação é aquela de se defender, o infeliz pagava um preço muito alto pelo deslize e deveria suportar a ira e as acusações do chefe por todo o dia. Porém, se o culpado abaixava a cabeça e reconhecia o erro, o chefe o abraçava, beijava e procurava consolá-lo, dizendo que todos erram e isso não era o fim do mundo. Não raro, passava o dia certificando-se que o funcionário tivesse um dia positivo, presenteando-lhe com balas, contando piadas, fazendo palhaçadas e até strip tease. Para ele (o chefe) o importante era encontrar o culpado. E quando o encontrava, a paz reinava.

Num episódio mais recente, no ano passado, o gnomo do inverno fez girar mais veloz a máquina da neve e bloqueou toda a Itália por dois dias, com cenas de pessoas que saíam de casa pela janela do primeiro andar porque a porta havia sido coberta pela neve. O trecho da Autostrada A1 entre Bolonha e Piacenza foi interrompido e a Defesa Civil distribuiu cobertores, água e alimentos às pessoas presas nos veículos sob a neve. Os caminhões que limpam as estradas e jogam sal no asfalto trabalharam sem parar. Felizmente a situação não teve consequências mais graves. Óbvio e inútil informar que o gnomo que cuida de Piacenza não permitiu que a neve nos atingisse, mas bastava sair de Piacenza para encontrar toda a neve do mundo.

Voltando ao episódio das estradas, uma vez passada a emergência, os órgãos públicos e a Defesa Civil iniciaram uma longa (creio que infindável) troca de acusações e a discussão sobre os possíveis culpados…

Pesquisando no tempo até meados dos anos noventa, encontramos um ciclista que se tornaria uma lenda. Enfrentando muitas dificuldades pessoais e uma respeitável coleção de quedas, como nos contos de fada, Marco Pantani tornou-se o ídolo em um esporte muito disputado na Europa. Numa das muitas corridas que fez, foi atropelado por um carro de uma equipe de jornalistas que não deveria estar dentro do circuito de ruas e estradas fechado para o evento. Do hospital, informou que iria contrariar a solicitação dos organizadores e que iria, sim, processar os jornalistas que causaram o acidente. E o fez.

Precisou ser operado de ambas as pernas, fez uma longa recuperação e voltou triunfalmente, vencendo o Giro d’Italia. Tempos depois, quando Pantani estava próximo de tornar-se bicampeão do evento, numa das últimas etapas, na localidade de Madona di Campiglio, uma blitz policial invadiu o hotel em que ele estava hospedado e o levou preso, sob acusação de uso de substâncias dopantes. Numa situação que até hoje não foi esclarecida, com parte da imprensa que o acusava enquanto outra sugeria a participação de uma máfia das casas de apostas (muito comuns por aqui - as casas de apostas e as máfias), o campeão protestou e jurou inocência. Era o ano de 1999 e Pantani disse: “Sempre soube levantar e me recuperar das quedas. Sei que desta vez não conseguirei me reerguer.” Como profecia ou por ser o único a ter conhecimento de todos os fatos, nunca mais se reergueu. Treinava, tentava e… nada! Nunca mais um outro título. Os jornais vendiam como água quando conseguiam uma entrevista ou tinham alguma atualização do “Caso Pantani”. Numa outra edição do Giro d’Italia, uma nova blitz encontrou uma seringa com resíduos de substância de uso proibido, em um quarto de hotel que a polícia suspeita mas não conseguiu provar que fosse ocupado pelo ex-campeão. Outro processo interminável na justiça. Outra montanha de jornais vendidos.

Pantani começou a evitar jornalistas, olhares diretos, lugares públicos e velhos amigos. Por mais de uma vez internou-se espontaneamente em clínicas de desintoxicação. Soube-se, depois, que o pai havia sequestrado todos os seus bens e o dinheiro que ganhou como profissional, para evitar que o filho torrasse tudo. Vivia de mesada. No início do ano passado interrompeu os treinamentos para uma viagem de repouso a Cuba, onde encontrou-se com Maradona. Dias depois, o consulado italiano na Ilha chamou os familiares: “venham buscá-lo!”

Os pais, abatidos pelo desgaste de ver o filho que não conseguia se reerguer (desde Madona de Campiglio) pedem uma trégua e tiram uma semana de férias, num cruzeiro nas ilhas gregas – paga com dinheiro próprio, e não aquele do filho famoso. Pantani aproveita a folga e some. Deixa em Milão o carro e o celular. Não quer ser encontrado. Hospeda-se em um apart hotel em Rimini, cidade de praia. Passa o tempo trancado e com poucas saídas. Tem os olhos estáticos e o rosto inexpressivo. É cordial, breve mas simpático com o porteiro e as poucas pessoas que cumprimenta. No dia 14 de Fevereiro sofre a última queda de sua breve vida de trinta e quatro anos: é encontrado morto no chão do pequeno apartamento. Os exames divulgados informaram que morreu por overdose de medicamentos e cocaína ou crac. A polícia iniciou uma desesperada busca pelo traficante que teria vendido a Pantani a última dose. Como sempre ocorre nesses casos, numa coletiva de imprensa sobre a investigação, oficiais da polícia pediram a ajuda, ainda que anônima, de qualquer um que pudesse apontar quem vendeu a droga ao campeão. Precisavam desesperadamente encontrar o culpado…

Quando fiz um curso de piloto privado, ministrado por integrantes da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes da Base Aérea do Salvador, aprendi que após um acidente, o que eles mais temiam era descobrir uma falha humana como causa. Mais que preservar a imagem dos pilotos, perdia-se a oportunidade de se prevenir novos acidentes, numa prática internacional de troca de informações, com novas normas que surgem após cada acidente aéreo. É por isso que o avião é, ainda, o meio mais seguro que havemos. O que conta é o que se pode aprender com os erros.

Como num conto policial, o italiano tem necessidade de encontrar um culpado para todos os males. Acho que é por isso que a instituição dos mordomos não vingou neste país.

Ciao.

7 comments:

Claudio Costa said...

Além de confessar meu gozo ao ler sua crônica de hoje, ainda cometo uma reflexão: A "Culpa" é o flagelo do ser humano, pois é acompahada, sempre, de auto-depreciação e auto-agressão. O culpado se sente desprezível e, mesmo pedindo perdão, reclama um castigo: "eu mereço, eu mereço". A punição pode vir do outro ou de si mesmo, o que alimenta a auto-agressão: às vezes explícita, quase sempre sub-reptícia, inconsciente (esquecimentos, adoecimentos, provocações que desencadeiam problemas, etc.). Daí, todos tendemos a "jogar a culpa no outro", "achar um culpado".
Se dermos crédito à Bíblia, tudo começou lá no Jardim do Éden, quando o Criador pegou Adão no flagra: "- Não foi culpa minha, Senhor, foi a Eva que me deu a maçã". E Eva: "- Não, não, foi a serpente..." Conclusão: aqui estamos, neste vale de lágrimas, cavando o sustento com o suor de nossos corpos e parindo na dor... Bom, mas a culpa, mesmo, é do capeta. Ô diabo, sô!
[isso aqui acabou virando um post... culpa sua, Allan!!!]

Anonymous said...

olha, fui criada na igreja católica. Neta de italianos. Quando pequena, tinha verdadeiro pavor de deus. Por que? Porque os padres me ensinavam que ele tudo vê, que ele é infalível, que ele pode tudo. enfim: um deus! E eu, que tímida, só queria alguém como eu para que pudesse amar: alguém que errasse, que fizesse bobagem, que não visse nem a pedra no caminho, que soubesse muito pouco. Nunca pude amar um deus. Só consigo amar gente. Gente cheia de falhas como eu.
Digo isso porque acho que esse lance de culpa é religioso. No mau sentido. Se as pessoas se soubessem falíveis e não "filhas de deus" talvez encarassem a vida duma forma mais sadia, não acha?
abração

maray

Anonymous said...

De culpas é edificado o mundo e é bom a consciência que gostamos mais de aponta-la que reconhecê-la. É grande também o hábito de tentar transmitir culpa. Quando Getúlio se matou, era sua intenção punir a todos nós com a culpa. Eu coleciono as minhas, e sei que todos têm as suas. Eu só quero saber uma coisa: DE QUEM É A CULPA DO TSUNAMI!

Rafael Galvão said...

Eu só queria lembrar que há outra síndrome, além da do culpado: "A Síndrome do Não-Fui-Eu." Acho que essa tem mais adeptos, aliás. ;)

Leila Silva said...

Esse chefe corresponde um pouco mesmo ao cliche italiano mas e' verdade que a maioria das pessoas (a gente mesmo aas vezes), numa dada situacao, so quer um culpado....como se isso fosse resolver todos os problemas. Allan, voce e' um cronista e tanto. SERIO. Abracos
Leila

Anonymous said...

Não sei o que seria de mim na Itália, com a mania que tenho de achar que tudo é culpa minha. Adorei o texto, Allan.
Beijo,
Mônica.

Leila Silva said...

Allan,
Ca estou eu de novo para 'falar' do seu comentario no meu blog sobre o tal artigo da Digestivo...Eu acho que o Julio estava realmente tentando bancar o advodago do diabo. Inclusive ele me escreveu diretamente (eu tampouco tinha entendido o fato de ele ter deixado o comentario la)e me disse que ja mudou a sua posicao sobre os blogs depois daquele artigo. Esta' claro que ele nao abordou tudo naquele artigo, os objetivos de um blog sao varios, inclusive fazer amigos, nao? Eu estou contente com os que tenho feito atraves dos meus cadernos. Fica o meu abraco.